[publicado a 1 de dezembro de 2015 em criticaeconomica.net]
A poucos dias do início da Cimeira do Clima, em Paris, e após a queda do governo de coligação PSD-CDS, é importante reflectir opções para as políticas públicas que mais se adequam a futuros governos na área da mitigação e adaptação às alterações climáticas. Embora seja uma área relativamente recente e o seu desenvolvimento muito acelerado, este tema tem um impacto tão generalizado que as medidas assumem autênticos programas completos de governo e desígnios quase civilizacionais: do ordenamento do território urbano, florestal e agrícola, ao sistema produtivo industrial, passando pelo comércio nacional e internacional, a produção de energia e todos os transportes. Mais importante, definirá como nos entenderemos de futuro enquanto espécie: em conflito permanente com a natureza ou, pelo contrário, aceitando ser parte da mesma, desenvolvendo sociedades em que os imperativos civilizacionais reconhecem a existência de limites concretos, que não podem ser ultrapassados à base da dinamite e da bala, mas apenas pela inteligência colectiva. Importante rombo em mitos prometeicos, as alterações climáticas devolvem-nos ao materialismo mais puro e objectivo. Os vários futuros cenarizados para a Humanidade têm todos um clima diferente, e em geral muito mais desfavorável do que o actual. O capitalismo e em particular o neoliberalismo manietam a espécie humana de ferramentas cruciais para preparar o planeta e mitigar ao máximo as emissões futuras, ao colocar sempre e em primeiro lugar a contínua expansão da exploração dos recursos e a necessidade de manter taxas de desconto elevadas a curto prazo, para remunerar as transacções mercantis à velocidade da luz. A verdade é que o planeta, o metabolismo natural e o metabolismo social não se movimentam à velocidade da luz e a impressão do ritmo das transacções financeiras ao sistema ameaça fazê-lo colapsar. O processo social decorrente das alterações climáticas implica à esquerda assumirmos a justiça climática como central: não só são os mais pobres na sociedade que sofrerão o máximo impacto das alterações climáticas como os países que menos contribuíram para a emissão de gases com efeito de estufa são aqueles que terão maiores impactos.
O acordo a surgir de Paris, que se revela até ao momento muito insuficiente para sequer atingir a limitação do aumento da temperatura a 2ºC até 2100 (valor convencionado como “seguro” embora a própria noção de aumento de temperatura seguro esteja em causa), não dá qualquer garantia. As propostas voluntárias de redução de emissões já avançadas pelos Estados perfazem um aumento de temperatura perto dos 2,7ºC, mas como muitos países (30) com muitas emissões nem sequer apresentaram as suas propostas, os 3ºC parecem ser o mínimo de aumento de temperatura até 2100. Desenganemo-nos: este valor é catastrófico. E é um valor global, o que significa que em várias regiões do mundo este número será ainda agravado por condições próprias de estrutura geológica, correntes oceânicas e de circulação atmosférica. Uma dessas regiões é o Mediterrâneo. Sendo um hotspot de alterações climáticas, aqui há uma magnificação do impacto à escala global: se o planeta aumentar 3ºC, aqui o valor de aumento deverá estar mais próximo dos 4ºC.
Para Portugal as previsões são claras: as temperaturas médias que já aumentaram 0,5ºC desde a década de 1950 (1ºC no Mediterrâneo desde o início do século) e continuarão a aumentar durante o século XXI. A frequência, duração e intensidade de épocas quentes (até 5ºC mais quente no Verão) e ondas de calor agravar-se-ão. Simultaneamente, a precipitação reduzir-se-á, colocando ainda maior pressão sobre zonas semi-áridas como algumas zonas do Algarve e Alentejo. As secas em grande escala no Mediterrâneo (de que a seca na Síria entre 2005 e 2010 é um excelente exemplo) tenderão a agravar-se, com todos os riscos agrícolas e sociais que lhe estão associados. A precipitação média cairá e a aumentará a variabilidade da precipitação durante a estação seca e quente aumentará. O número de dias com gelo diminuirá e o número de noites tropicais (dias onde a temperatura mínima diária é superior a 20ºC) aumentará. Os fenómenos climáticos extremos agravar-se-ão: tempestades mais violentas, por vezes tempestades tropicais, tornados em pequena escala, violência marítima, cheias rápidas. Em suma, viveremos num território mais seco, muito mais quente e exposto a fenómenos climáticos extremos, com uma pressão crescente no litoral por parte do mar em ascensão. Nada disto é uma novidade. Na verdade, os últimos anos já demonstraram que as alterações climáticas agravaram todas as fragilidades do nosso território e as vulnerabilidades das populações.
A preparação do país para um cenário e um clima diferente e muito mais adverso às actividades desenvolvidas durante as últimas décadas é essencial. O incentivo artificial a actividades insustentáveis, desde a agricultura à floresta, da indústria aos transportes tornar-se-á ainda mais ridículo. A justiça climática será imperativa, porque não existe nenhum modo de adaptar o território e combater o aprofundamento das alterações climáticas que não implique redistribuição de riqueza, quebra de monopólios e a deslocação das actividades daquilo que simplesmente produz lucro para aquilo que é necessário à sociedade. A rejeição macroeconómica de planificar a economia reveste-se neste momento de contornos criminosos, uma vez que a própria teoria da “libertação” das forças produtivas, ignorando a base material da produção, baseou-se massivamente no monopólio e utilidade dos combustíveis fósseis e jamais aceitou reconhecer os efeitos provocados pela sua combustão na composição da atmosfera.
Geralmente as principais medidas de combate às alterações climáticas dividem-se, por conveniência de organização mental, em dois grandes grupos: mitigação e adaptação. A mitigação tem principalmente que ver com redução de emissões de gases com efeito de estufa, assim como com a possibilidade do aumento de sumidouros de carbono (isto é, estruturas ou mecanismos de captura de gases com efeito de estufa para evitar o seu contributo para um aumento da concentração do CO2 e outros gases na atmosfera). A adaptação, por seu lado, tem que ver com a adaptação territorial, produtiva e social a um novo clima, com riscos agravados e maior vulnerabilidade das populações. Há várias medidas que funcionam naturalmente como medidas de mitigação e adaptação – recuperando o conceito de desenvolvimento sustentável que foi capturado para fazer greenwashing e rebranding a tantas marcas que continuaram o seu business as usual, é necessária uma nova sustentabilidade, cuja mensuração não pode ser conceptual, mas material.
Mitigação
No que diz respeito a Portugal, importa destacar os principais emissores de gases com efeito de estufa no país: a produção de energia, de celulose, de cimento e refinarias. As centrais termoeléctricas de Sines, do Pego, de Lares e do Ribatejo, a refinaria de Sines, o Complexo Industrial da Portucel em Setúbal, a Celulose Beira Industrial (Celbi), a Fábrica da Secil do Outão, a Cimpor em Souselas, a Refinaria da Petrogal no Porto, a Soporcel na Figueira da Foz e a Fábrica de Cacia da Portucel são as principais unidades industriais e energéticas responsáveis pelas emissões de gases com efeito de estufa em Portugal. Se juntarmos a estas o sector dos transportes rodoviários (com as viaturas privadas e de transportes), os incêndios florestais, a pecuária, a agricultura e os resíduos sólidos, encontramos o grosso das emissões.
Energia
Nas fontes de produção eléctrica em Portugal, os combustíveis fósseis só aparecem em terceiro lugar, a seguir às grandes hídricas e à energia eólica. O carvão é o principal combustível fóssil consumido, seguido pela cogeração fóssil. As outras renováveis aparecem em quinto lugar e o gás natural em sétimo. Em termos de mitigação, a aposta na desactivação das centrais termoeléctricas a carvão deve ser prioritária. Para colmatar o défice energético, a aposta mais óbvia é na energia solar. Portugal, com um potencial solar enorme, de 2200 a 3000 horas de sol anuais, tem a possibilidade de utilizar a enorme evolução que existiu a nível da tecnologia dos painéis fotovoltaicos para expandir uma rede deslocalizada de produção local, com redução de perdas no transporte e aumento da resiliência dos sistemas locais de produção eléctrica. A sobredimensionada rede eléctrica gerida pela REN e o monopólio rentista da EDP são utilizados actualmente como forma de concentração de riqueza e exercício de coacção por parte da administração da empresa sobre todo o sistema habitacional e produtivo do país. A produção descentralizada, focada em energia solar, coadjuvada com microgeração eólica ou outras combinações, permitiria passar estes actores para segundo plano, como rede de apoio e segurança para eventuais falhas a nível da produção local (nomeadamente períodos de menor insolação e vento, face à dificuldade tecnológica de armazenamento destas energias). Esta produção permitiria ainda uma redução de custos com a energia e das importações de energia. Importa ainda destacar que existe um potencial para poupança energética a nível nacional na ordem dos 25%.
Celulose e Floresta
Além da produção de energia, os processos de melhoria industrial são essenciais para reduzir as emissões. A indústria da celulose tem elevada eficiência no seu processo industrial, nomeadamente no que diz respeito à energia (elevada eficiência, produção energética em excesso). Os maiores problemas associados a esta indústria são a fase a montante, nomeadamente a produção de eucaliptos, com o elevado impacto que tem em toda a floresta nacional. O eucalipto já era em 2012 a principal árvore existente na floresta nacional, ocupando 26% do território florestal e 8,9% do território nacional (antes ainda da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 96/2013, que passou a deferir tacitamente a plantação em 82% das propriedades florestais do país). Além de Portugal ser o país do mundo com maior área de eucaliptal relativo, o território abandonado e sem dono conhecido estará na ordem dos 20%. O desordenamento do território decorrente desta realidade está na base da elevada incidência de incêndios no país, que ocorre principalmente nas áreas de pinheiro e de eucalipto desordenado. A área de eucaliptal ardido anualmente é geralmente 30% do total. O país apresenta uma situação dramática no panorama do mediterrâneo europeu: nas últimas três décadas foi o único país em que aumentou a área ardida e o número de ignições. A composição e o ordenamento da floresta são centrais nesta realidade – além disso o risco agravar-se-á com o aumento da temperatura e a redução da precipitação.
A redução da área de eucaliptal (principalmente desordenado) é central numa estratégia para reduzir incêndios e emissões por essa via. A aposta em espécies diversas e autóctones – carvalhos, castanheiros, cerejeiras ou sobreiros, entre outras – é uma escolha totalmente adequada a este objectivo, tendo ainda consequências secundárias positivas como a maior adequação a um clima futuro mais quente e seco e o fornecimento de matéria-prima para a indústria nacional de móveis.
A realização de um cadastro florestal é essencial para reduzir o desordenamento territorial, com a necessária afectação ao Estado dos terrenos abandonados ou sem dono. Portugal é o país da Europa com menor área florestal pública. A média europeia de área florestal pública é de 58,65%. Portugal tem menos de 2%, sendo ultrapassado a nível mundial apenas pelas Ilhas Cook, Barbados e Uruguai. O nível de incêndios que ocorre em Portugal é também um exemplo do falhanço da gestão privada e desordenada. Aliás, mais do que uma área florestal mal ou não gerida, é mesmo uma área abandonada. Possuindo e gerindo uma área florestal importante, o Estado deveria tornar-se um referencial de ordenamento territorial, protecção contra incêndios e gestão de floresta multifuncional, de composição mista e com espaços de conservação protegidos por um nível adequado de vigilantes da natureza.
Refinarias e transportes
Uma das questões mais básicas para interagir com as actividades de produção e transformação de combustíveis fósseis é cessar imediatamente todo e qualquer apoio público às mesmas, quer a nível de isenções fiscais, quer a níveis de apoios directos à importação e exportação de combustíveis fósseis. Esta proposta acarreta perguntas importantes: como mantemos uma frota de 6,1 milhões de veículos ligeiros e pesados com menos combustíveis fósseis? Como mantemos o transporte de 146 milhões de toneladas de mercadoria por meio rodoviário? E a resposta tem de ser: não mantemos.
O incentivo à utilização do transporte colectivo e à ferrovia são centrais na redução da dependência dos combustíveis fósseis. O investimento das últimas décadas em estradas, acompanhado do desinvestimento nas linhas férreas foi um erro colossal de sobredimensionamento, custos megalómanos e interesses inflacionados. A rede rodoviária nacional (itinerários principais, itinerários complementares, estradas nacionais e estradas regionais) tem uma extensão de 14310 km, enquanto a rede ferroviária tem apenas 2546 km (tendo perdido mais de 1000 km de rede desde o seu pico em 1974). A ferrovia transportou em 2014 apenas 10,3 milhões de toneladas de mercadorias (catorze vezes menos do que a rodovia). Em termos de transportes de passageiros, em 2014 o sistema ferroviário pesado transportou 128 milhões de pessoas e o sistema ferroviário ligeiro (metropolitanos) transportou 202 milhões de passageiros. Já o sistema de transportes públicos pesados rodoviários de passageiros transportou 476 milhões de passageiros em 2014. O incentivo à utilização de transportes públicos e ferrovia no transporte de passageiros e mercadorias é uma escolha inevitável para reduzir as emissões de gases com efeito de estufa e reduzir simultaneamente o impacto a nível de emissões das refinarias nacionais. O encargo desta transição a nível de transporte terá de recair sobre os produtores e transformadores de combustíveis fósseis, devendo também haver um desincentivo à utilização do veículo individual (a utilização de uma taxa de carbono diferente da existente actualmente em Portugal, com um valor bastante acima dos 5€/tonelada, retiradas as isenções presentes, nomeadamente das instalações industriais e dos sectores que transacionam licenças de emissões – os maiores emissores – e cuja receita reverta na gratuitidade dos transportes públicos poderia ser uma possibilidade).
As 20 concessões para processos de extracção de gás e petróleo em Portugal são uma aberração nos seus termos – as reservas serão minúsculas e o potencial de poluição importante. Além disso, apenas contribuição para aumentar as emissões de gases com efeito de estufa. Devem ser cancelados os contratos que o anterior governo fez com estas empresas e consórcios: Em terra da Australis Oil & Gas na Batalha e Pombal, no Algarve da Portfuel – Petróleos e Gás de Portugal, Lda.; no mar do Alentejo, da Kosmos Energy LLC, do consórcio Hardman / Galp / Partex, do consórcio Petrobras / Galp, do consórcio ENI / Galp e da Galp, no mar do Algarve, do consórcio Repsol / Partex, do consórcio Repsol / RWE, do consórcio Repsol / Partex, e em Peniche dos consórcios Petrobras / Galp / Partex e Repsol / Galp Partex.
Adaptação
Teoricamente, se fosse possível travar todas as emissões de gases com efeito hoje, o problema não desapareceria. A concentração de CO2 na atmosfera esteve durante 10 mil anos (entre 8 mil A.C. e 1800) estabilizada entre as 260 e as 280 ppm (partes por milhão). Segundo o Laboratório Mauna Loa, no Hawai, referência mundial para o registo da concentração de CO2 na atmosfera, em Outubro de 2014 este valor atingiu o pico de 398,29 ppm. Isto significa uma coisa clara, e já visível pela subida global da temperatura de 0,83ºC desde 1750: as alterações climáticas não são uma questão do futuro e das próximas gerações. São uma realidade do presente e agravar-se-ão com o tempo (claro que quanto mais emissões existirem, maior a gravidade dos impactos sentidos, e seu prolongamento no tempo). Além disso, os principais gases com efeito de estufa podem permanecer na atmosfera até 100 anos, como é o caso do CO2, pelo que as consequências do avassalador aumento de emissões desde a Revolução Industrial estender-se-á no futuro.
A adaptação às alterações climáticas não é um processo técnico ou científico: é um processo social e político. Normalizar a prevalência das alterações climáticas sobre todos os processos económicos e sociais é reconhecer a centralidade das condições materiais em que nos desenvolvemos enquanto espécie, e saber que temos de ter uma adequação humanista e progressista da nossa civilização para a nova realidade, sob pena de nos vermos em curto prazo sob uma austeridade ou até um fascismo verde. Precisamos reconhecer a importância civilizatória do processo em que vivemos.
Gestão do Risco
As zonas de risco verão as suas condições muito agravadas. A susceptibilidade a cheias de determinados territórios tornar-se-á quase num certeza de cheias rápidas, porque apesar o cenário ser de diminuição de precipitação, existirão fenómenos de concentração de pluviosidade, particularmente graves porque sobrecarregam os sistemas de protecção além da sua capacidade de reacção. As “flash floods”, evidentes já nos últimos anos em cidades como Lisboa, tornar-se-ão regra. O ordenamento urbanístico urbano terá que lidar com construções já existentes em sítios totalmente desadequados e determinar regras inflexíveis para novas construções: a construção nas cabeceiras dos rios e ribeiras, a impermeabilização de zonas de máxima infiltração, a destruição das galerias ripícolas, as chamadas “regularizações” dos rios e ribeiras, a construção em zonas de leito de cheia, que antes se colocavam a nível da ilegalidade e da especulação imobiliária tornaram-se numa questão de segurança de pessoas e bens. Perante as figuras de ordenamento que durante anos foram ignoradas pela construção e pela planificação sem ter em conta as condições biofísicas do território, houve o desenvolvimento e instalação de infraestruturas e construções abundantes em locais proibitivos (e proibidos). Perante uma avaliação das cartas de risco a nível nacional será necessário desencadear acções sobre as infraestruturas (legais e ilegais) para proteger pessoas e bens nos meios rurais mas principalmente nos meios urbanos, desocupando as zonas de cheia e infiltração máxima.
As medidas “soft” são também urgentes: a desocupação de zonas de leito de cheia e de margens dos rios (para que os mesmos possam galgar as margens sem problemas) devem ser uma opção importante a ter em conta. Para proteger essas zonas, os seus habitantes e infraestruturas é necessário aumentar a infiltração da água no solo, alargando as zonas verdes a todos os leitos de cheia urbanos, realizando alterações também a nível das vias de comunicação e infraestruturas. O incentivo à implantação expressiva de infraestruturas verdes como cisternas, telhados verdes, hortas urbanas e infraestruturas verdes primárias é muito importante pela redução dos caudais de ponta e pela poupança de energia.
A reabilitação urbana deverá tornar-se chave nas políticas urbanas, com ênfase na melhoria dos materiais e no desenvolvimento de técnicas de melhoria do conforto térmico, principalmente na estação quente.
Litoral
A ocupação do litoral efectuou-se exactamente na altura em que começou a acentuar-se o fenómeno da erosão costeira. A proliferação dentro e fora da lei em zonas costeiras, dunares e em cima das praias acelerou o processo de erosão e os habitantes dessas zonas sofrem neste momento por causa desse processo. Infelizmente, sendo ou não legal a construção dessas infraestruturas (algumas delas oficiais e pertencentes ao próprio Estado), muitas regiões terão que ser abandonadas e devem ser tomadas medidas para deter o avanço do mar num plano mais recuado, abdicando em alguns locais da linha da costa tal como existia há alguns anos. A perda de dezenas de metros para o mar repete-se ano após ano e agravar-se-á. A actuação sobre a zona costeira e redução dos riscos da mesma através de relocalização e em casos muito especiais acomodação é essencial.
As relocalizações das populações para zonas mais interiores devem ser feitas nas melhores condições possíveis, de maneira intermediada e participada, não como uma imposição mas sim através de um processo negocial social. O aumento do nível médio do mar só aumentará a tendência à erosão costeira e a própria permanência dos habitantes na costa, perante o aumento dos fenómenos climáticos extremos como são as tempestades, ciclones e grandes marés que invadem a costa deve ser um factor importante no diálogo a manter para as relocalizações das populações, que têm de ser protegidas da vulnerabilidade a estes fenómenos. Zonas como Ovar, Esposende, Caparica ou Ílhavo serão as mais afectadas e o adiamento de acções nestas localidades aumenta violentamente o risco para estas comunidades. O Grupo de Trabalho para o Litoral, criado pelo anterior governo após a tempestade Hércules em 2014, apresenta várias propostas concretas neste sentido, reforçando a proposta anterior com a soluções técnicas de redução da erosão através da alimentação sedimentar artificial.
A questão dos sedimentos não é de desprezar: em Portugal há mais de 300 barragens e minihídricas concentradas nos principais rios do país (Douro, Tejo, Minho, Guadiana, Ave, Sado). Esta quantidade gigantesca de barragens degrada os rios, destrói as suas margens (Fluvissolos e galerias ripícolas) e impede a chegada dos sedimentos ao litoral, contribuindo decisivamente para a erosão costeira. O rio Douro e os seus afluentes têm mais de 60 barragens ao longo do percurso, o que se traduz em perdas de sedimentos na ordem dos 90%, chegando à foz do Douro apenas 250 mil metros cúbicos de sedimentos, quando nos anos 60 este volume era de 1.8 milhões de metros cúbicos. Como resultado, além dos graves efeitos causados pelas barragens aos rios no seu percurso, o abastecimento de areias desde o Douro até à Nazaré não se faz, com recuo da linha de costa várias metros todos os anos, em todas as praias. Nesse sentido, um programa nacional de desmantelamento de barragens
Existem em Portugal mais de 70 barragens com mais de 50 anos de idade e cerca de uma dezena com mais de 100 anos, ainda presentes nos rios. Muitas já não servem os propósitos para os quais foram construídas. As barragens obsoletas, já muito além do fim da sua vida útil, com fadiga dos materiais, acumulação e solidificação de sedimentos a montante e no fundo das albufeiras, que constituem em muitos casos perigo público, com produção de energia irrelevante, deverão ser demolidas num programa público destinado a esse efeito.
Além disso, o Programa Nacional de Barragens de Elevado Potencial Hidroeléctrico deve ser travado, por representar apenas 0,5% do consumo de energia primária do país, 3% da procura de electricidade e 2% do potencial de poupança energética nacional, além de se destinar a rios que já têm outras barragens, e com a previsão de agravamento da escassez de água.
Agricultura
As alterações a nível de temperatura e regime hídrico, com a existência de épocas de elevadas temperaturas e secura, assim como de eventos de elevada precipitação aumentam levar a um aumento de risco de aridez e desertificação. A alteração do regime de chuvas com aumento da precipitação no Outono e Inverno e redução na Primavera vai agravar este problema. A artificialização agrícola das últimas décadas tornar-se-á cada vez mais evidente, com inputs agrícolas cada vez mais caros e insustentáveis.
Os sistemas agrícolas altamente intensivos, com elevada dotação de rega causará um aumento da salinização e sodização dos solos, assim como a degradação da qualidade dos aquíferos. As alterações climáticas implicam para estes sistemas uma necessidade crescente de água, com aumento do período de rega e aumento da evapotranspiração. Isto ocorrerá num cenário em que a água estará menos disponível e terá menos qualidade.
A agricultura em Portugal, em particular no Sul, sempre utilizou técnicas de conservação de solos e água. Mas já são insuficientes. É imprescindível realizar importantes adaptações a nível dos sistemas agrícolas, alterando culturas e mantendo regadios apenas nos raros casos em que há garantias de água de qualidade (uma situação que é já rara em Portugal e tenderá a agravar-se). Os sistemas intensivos, com elevados aportes de água e químicos tornar-se-ão crescentemente insustentáveis até a nível económico (uma vez que será cada vez necessária mais água, que será cada vez mais escassa e cara), pelo que a necessidade de adaptação às novas condições deve começar imediatamente. As técnicas de mobilização mínima, a reutilização de culturas mais antigas e melhor adaptadas às condições semi-áridas (por exemplo o sorgo, milho-alvo, milho painço, entre centenas de outras), as forragens de corte são opções válidas que têm de ser reforçadas imediatamente com investigação aplicada e com a abertura de financiamento público para estas áreas. O aporte de químicos também deverá reduzir-se de forma a reduzir a emissão de gases com efeito de estufa, em especial no caso do azoto, recorrendo a meios biológicos de fixação e aumento da fertilidade dos solos. A maior disponibilidade de CO2, cuja concentração atmosférica é crescente, poderá também compensar essa falta de aporte sintético.
Para aumentar a segurança alimentar há necessidade premente de difundir a agricultura a solos abandonados e diversificação das culturas cultivadas, em particular as tradicionais e em regimes menos desperdiçadores de energia e de fertilidade do solo (orgânicos e biológicos).
A gestão da pecuária também deverá apostar crescentemente na extensificação, uma vez que os elevadíssimos custos eléctricos (que, como a refrigeração, aumentarão com o aumento da temperatura) e de saúde (que também aumentarão com a provável expansão de vectores de doenças para o território nacional), aliados à quantidade de nutrientes perdidos com as explorações intensivas em especial a pecuária sem terra, de poderão ser compensados na ocupação de pastagens fertilizadas directamente pelos animais em regimes livres e semi-livres.
A aposta em biocombustíveis deve ser abandonada. Além de reduzir a segurança alimentar, a aposta e o incentivo às culturas agro-energéticas compete directamente com os melhores solos para a produção do alimento e emite mais gases com efeito de estufa do que os próprios combustíveis fósseis.
Epílogo
Este breve exercício de possibilidades deixa elencados alguns pontos-chave numa estratégia pública para lidar com as alterações climáticas. Não é possível sequer equacionar cenários de business as usual, porque já não existe mais as usual. Isto significa que ser coerente e poder lidar mesmo com o nosso futuro implicará mudar todo o sistema em que vivemos. As resistências serão gigantescas, porque são os principais centros de poder e os principais donos disto tudo que não aceitarão ser privados da sua acumulação infinita de riqueza. Senão vejamos: entre as principais exportações de Portugal estão os combustíveis refinados, automóveis (ironicamente, Volkswagen), pasta de papel, produtos agrícolas e minérios. Estas serão das principais áreas afectadas numa estratégia séria. A questão de empregos não é de todo desprezível, pelo contrário. E se esta estratégia permitisse simultaneamente combater a crise do desemprego e a crise climática? Criar milhões de postos de trabalho na conversão industrial, na gestão territorial, florestal e agrícola? Na investigação? Na reconversão energética? Na educação pública? Na reabilitação urbana? Não estamos a falar aqui em menos do que uma revolução que requererá milhões de braços. E este será um processo social ou não será de todo. Sindicatos, organizações de trabalhadores, partidos de esquerda, movimentos sociais, ambientalistas, movimento de soberania alimentar, entre tantas outros, terão de ganhar o espaço, não para defenderem a natureza, mas para garantirem a sua própria defesa. E se a luta continua, e continua sempre, hoje talvez tenhamos de começar a olhar para ela não como uma corrida de fundo. É que o contrarrelógio já está a andar.