[artigo originalmente publicado na Esquerda.net]
São 12 horas. Está quente, como não estava quente há muito tempo num Outubro. O chão é entre o empoeirado e o prado, espontâneo, não semeado. São belos campos, vistos à distância parecem uniformes e é só quando nos aproximamos que percebemos que há algumas descontinuidades. De repente, o chão começa a tremer. Pequenos grãos de areia saltitam nas zonas mais arenosas. O barulho aumenta. Parecem camiões mas são tanques. Entre os tanques, filas de homens, ou aparentemente homens, debaixo de armadura pretas e azul-escuras, que não deixam ver pele, quase não deixam perceber a forma do corpo. A espaços outros homens, de castanho, aparentemente polícias, com mudanças nos uniformes: capacetes, coletes, cães pela trela. Nas mãos metralhadoras, caçadeiras, escudos onde se lê “Police”. Avançam, uns com cassetetes batem nos escudos, marcando o passo e tornando tudo aquilo que está prestes ainda mais bélico, mais violento. Não é Mossul, não é Aleppo, não é na Ucrânia, não é nenhum país oficialmente em guerra. Estamos na reserva indígena de Standing Rock, no Dakota do Norte, Estados Unidos.
Do lado oposto a este exército, composto por polícias e milícias de segurança privada, estão milhares de manifestantes, principalmente das nações índias dos Estados Unidos, com os Sioux de Standing Rock à frente. Montam a cavalo, penas na cabeça, fazem bloqueios, sit-ins, barricadas, tudo para travar o projecto Dakota Access Pipeline, um oleoduto que levará petróleo dos campos de fracking de Bakken, no Dakota do Norte, até Patoka, no Illinois, atravessando 4 estados – Dakota do Norte, Dakota do Sul, Iowa e Illinois – para transportar 470 mil barris de petróleo por dia.
A desigualdade desta luta representa também a desigualdade dos dois mundos que se chocam nesta reserva índia: um velho mundo e um novo mundo. O velho mundo do petróleo e do gás luta violentamente contra a sua própria extinção, utiliza o aparelho do Estado para reprimir os povos que, depois de cinco séculos de violência, finalmente confinados a minúsculas áreas de um país que em tempos foi livre, aberto e seu, agora vêm até essas próprias áreas ser violadas. Do outro está um novo mundo, que representa as mais que justas ambições de existir um futuro para a Humanidade, que não seja a repetição da selvajaria do colonialismo, da violação sistemática dos povos e dos seus territórios, sempre à procura de mais uma oportunidade de negócio, por mais estúpida, assassina ou destruidora que seja. A noção de progresso, tão cara a tanta gente durante tantos anos e que justificou tanta barbárie, mostra hoje que tecnologia pode bem não ser futuro, e que holística e respeito pelo ambiente circundante não é seguramente misticismo nem passado. No campo de batalha de Standing Rock, os tanques, os canhões sónicos e as armaduras Kevlar são os legítimos representantes do passado, enquanto os cavalos, os tambores e as penas na cabeça são os únicos representantes de alguma espécie de futuro.
Este campo de batalha espraia-se um pouco por todo o planeta nestes dias. Em Marrakexe, mesmo aqui perto, realizar-se-á a COP-22, Cimeira do Clima, onde se tentará por em vigor o Acordo de Paris, que já foi ratificado por países suficientes para entrar em funcionamento. Também aqui degladiar-se-ão diferentes perspectivas, as daqueles que já estão a sofrer directa e radicalmente os impactos das alterações climáticas – ilhas como o Kiribati, que está a comprar outro território para onde deslocar a sua população de 103 mil pessoas – as daqueles que procuram terminar a sua ligação aos combustíveis fósseis e aqueles, entre os quais estão os principais produtores mundiais de combustíveis fósseis, que pretendem ir negociar a extensão do seu business as usual para poderem continuar a fazer lucro à custa da destruição literal do futuro. Sob todas estas negociações pende um orçamento de carbono: se utilizarmos mais de 20% de todas as reservas actualmente conhecidas de hidrocarbonetos a nível mundial, excederemos os tais 2ºC de aumento de temperatura de que o Acordo de Paris falava. A manter a produção de combustíveis fósseis tal como indicam as estatísticas das petrolíferas, excederemos esse orçamento nos próximos 30 anos, o que atiraria o aumento da temperatura para perto dos 3,5 a 4ºC de aumento de temperatura até 2100. Isso significaria muito provavelmente o fim da civilização. Nenhuma espécie de hominídeo já viveu com uma temperatura dessa ordem.
Mas é tudo tão longe, ou parece, não é? Reservas de indígenas nos Estados Unidos, cimeiras de líderes mundiais em Marrocos… Um aquecimento global abstrato e distante… Que podemos nós fazer por cá? Em Portugal esse combate entre o velho e o novo tem expressão máxima nas 15 concessões para exploração de gás e petróleo em Portugal: 11 no mar e 4 em terra. Este é o maior conflito ambiental a ocorrer no país desde a tentativa de instalar uma central nuclear em Ferrel, no final dos anos 70. O centro da mobilização nos últimos tempos esteve no Algarve, mas está também a evoluir para outros locais do país, o que é particularmente relevante quando consideramos que todo o litoral do país abaixo do Porto está concessionado. Do meio de centenas de iniciativas levadas a cabo por dezenas de movimentos diferentes, o assunto saiu da obscuridade e tem-se tornado cada vez mais notório. A destruição dos territórios, dos mares, dos ecossistemas e do meio ambiente em geral, está directamente associada à exploração de gás e petróleo: e não só quando falamos de acidentes, basta pensar nas dezenas de descargas diárias de poluentes das operações petrolíferas em terra e no mar. Estes movimentos estão bastante conscientes disto, assim como do impacto local nas várias actividades económicas como o turismo, a pesca ou o surf. E os movimentos, como todos nós, também têm consciência do impacto global que mais exploração de combustíveis fósseis significa para a atmosfera do planeta: significa a vitória do passado, que é a morte do futuro. Estamos a falar de um e do mesmo tema: não há nenhuma política climática em Portugal que possa passar pela sondagem, prospeção, desenvolvimento e exploração de petróleo e gás: esse tem de ser o ponto de partida. Enquanto o espectro dos hidrocarbonetos pender sobre o país, não pode haver uma agenda que se precisa muito mais avançada no combate e preparação para as alterações climáticas. Dia 12 de Novembro, dezenas de movimentos sociais, organizações não-governamentais, movimentos informais e partidos políticos juntar-se-ão nas ruas para dizer bem alto que para Salvar o Clima é preciso Travar o Petróleo. Vamos a isso.