Nós, índios – João Camargo

Artigo publicado no site da revista Sábado no dia 25 de dezembro de 2016.

Foi no dia 28 de Abril deste ano que o deputado Jorge Moreira da Silva, ex-ministro do Ambiente responsável por várias das concessões para exploração de petróleo e gás em Portugal, foi ao Parlamento defendê-las. De uma só tirada, Moreira da Silva definiu pontos-chave da concepção e visão do mundo que tem o mainstream: que “Obviamente nunca vai poder explorar um recurso numa área protegida, a nossa legislação não permite”, que “não acha mal” explorar petróleo, que os algarvios também têm “direito ao desenvolvimento”, associado ao petróleo e que a luta que se desenrola é liderada por quem gostava que “o Algarve fosse uma terra de índios“. Moreira da Silva, que desde então se mudou para a OCDE, reforça em simultâneo várias noções: de que a legislação ambiental funciona e de que as áreas protegidas são respeitadas, de que a exploração de petróleo pode ser inócua (local e globalmente) e associada ao “desenvolvimento”, e de que ser uma “terra de índios” é um atraso, indigno de portugueses e brancos.

Estas noções respondem a um acumular de lugares comuns e preconceitos não só absolutamente desligados da realidade como racistas. A boa e extensa legislação ambiental que existe em Portugal, os seus regimes de protecção, quer a Reserva Ecológica Nacional, quer a Reserva Ecológica Nacional, quer a Rede Natura 2000, as zonas de protecção, etc., são absolutamente ignoradas, ilegal ou legalmente, sancionando-se desde a construção ilegal em áreas protegidas e dentro de parques naturais (já visitaram a Cimenteira da Secil no Parque Natural da Arrábida?) até à criação do abominável regime dos Projectos de Interesse Nacional (PIN e PIN+) que coloca acima de qualquer lei e de qualquer regime de protecção a defesa de investimentos e investidores, de que é magnífico exemplo o Freeport, mas que inclui marinas, minas, campos de golfe, indústrias, empreendimentos imobiliários, o que for. Sobre a inocuidade da exploração de petróleo, é a negação de todos os projectos da história dos combustíveis fósseis, das suas perdas quotidianas, das suas contaminações cruzadas de solos, águas, ar e, claro, das alterações climáticas provenientes da queima de combustíveis fósseis.jmoreirasilvapsd161012

Sobre desenvolvimento e índios, o ex-ministro do Ambiente expõe a mundivisão de que o que o Ocidente levou para os restantes povos do mundo foi desenvolvimento, nomeadamente aos indígenas, que viram as suas vidas e as suas terras transformadas num inferno pela missão civilizadora e evangelizadora dos “descobridores” portugueses, espanhóis, ingleses, franceses e holandeses, entre outros. Depois do impacto inicial das “descobertas”, foi mais “desenvolvimento” o que a Europa levou para as Américas, em novas vagas sucessivas de saque de recursos (que no séc. XX e no séc. XXI é também muito o saque do petróleo e do gás). Pobres algarvios, pobres portugueses e portuguesas, a ser confundidos com esses sub-humanos, e que têm é direito ao desenvolvimento que o petróleo levou às comunidades indígenas de países como o Brasil, os Estados Unidos ou o Canadá. Que orgulho nesse desenvolvimento fóssil que põe em risco o futuro do planeta, que vergonha ser comparado aos índios primitivos. Mas será assim? Será que alguém ficou envergonhado por essa comparação? Será que o que para Moreira da Silva era para ser entendido como uma ofensa e uma menorização, não teve exactamente o efeito contrário?

Nós, índios. Índios da Meia-Praia. De Lagos e de todos os lados daqui. Olhamos hoje para os Estados Unidos e para o que se passa em Standing Rock, onde indígenas, lado a lado com filhos e filhas de imigrantes de tantas outras nações e etnias, resistem há quatro meses à construção de um oleoduto para transportar o óleo sujo do local da sua extracção ao local da sua transformação, 1900 km sobre terras e águas, sobre reservas índias, sim, essas mesmas onde foram confinadas as populações indígenas depois do genocídio que quase exterminou os habitantes originais dos Estados Unidos, as últimas que ainda são “legalmente” suas. Nós, índias de Lisboa e de Sines, que ouvimos, que lemos, tarde e depois, sobre como o poder de um Estado, capturado pelos interesses do petróleo e do gás, mobiliza polícias, milícias, mercenários, para atacar, para prenderferir gravemente quem protege a água, quem protege o solo, quem protege o ar, a Terra e o futuro. Nós, índios de Monte Gordo e de Peniche, que choramos ao longe pela cobardia de ataques bárbaros sobre os nossos irmãos índios durante madrugadas de temperaturas negativas, com jatos de água e gás pimenta, com bombas de efeito de moral, com balas de borracha, com cães e cassetetes. Nós, índias de todos os lados daqui, que olhamos e que sabemos que o combate ao Dakota Access Pipeline nos Estados Unidos é o combate às concessões da Repsol, da Partex, da GALP, da Kosmos, da Portfuel, da Australis, que é o combate vitorioso contra o oleoduto Keystone XL que iria atravessar todos os Estados Unidos, que é o combate contra o fracking no País Basco, na Argélia, em Inglaterra, contra as minas de carvão castanho na Alemanha. Que é o combate de milhões de indígenas e de migrantes, de primeira, segunda, terceira geração, por todo o mundo, e por todo o mundo. Índios e índias que sabem que as promessas vãs de desenvolvimento abstrato, baseado num modelo fóssil para um clima morto, são mesmo mentiras e trocam apenas a vida que ainda há porque um futuro com que querem acabar. Nós, índios e índias, nos declaramos.

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