Na semana passada, o professor catedrático do Instituto Superior Técnico Amílcar Soares assinou um artigo no Expresso, intitulado “Petróleo e gás no ‘offshore’ nacional: é a energia, estúpido!”, onde qualificou uma carta assinada por mais de 60 cientistas de várias áreas do conhecimento e regiões do país contra a prospecção de petróleo e gás em Portugal de abaixo-assinado “de valor científico baixo ou nulo”, de teor “populista e demagógico absolutamente risível”, “exibição pública de ignorância e demagogia”, afirmando que “não há uma só evidência científica dos impactes ambientais, no turismo, riscos tecnológicos, etc., resultantes da actividade de prospecção no offshore”.
A carta, intitulada “Combustíveis fósseis e alterações climáticas: resposta a uma preocupação científica e social” foi publicada mais de dois anos depois de ter começado uma importante luta social que teve epicentro no Algarve mas que já se expandiu ao Alentejo e à Bacia de Peniche. O movimento contra o petróleo e gás em Portugal tem conseguido felizmente trazer este assunto para cima da mesa e questionado não só a opacidade do processo de atribuição do litoral português para exploração de petróleo e gás sem qualquer avaliação de impacto ambiental, como a necessidade de cortarmos emissões de gases com efeito de estufa em resposta à crise das alterações climáticas. Recentemente foram canceladas seis das quinze concessões de petróleo e gás no país e o Tribunal Administrativo de Lisboa aceitou uma providência cautelar para travar o furo de prospecção no mar de Aljezur, da GALP e da ENI. Restam no entanto nove concessões em vigor: duas em terra na Batalha e Pombal, sete no mar do Alentejo até à Bacia do Douro.
Para argumentar a sua posição, Amílcar Soares socorreu-se de um recente relatório da Agência Internacional de Energia (IEA) e da Agência Internacional de Energias Renováveis (IRENA), “Perspectivas para a Transição Energética. Necessidades de Investimentos Necessários para um Sistema Energético de Baixo Carbono“, de 2017. Soares cita que “seriam necessários novos desenvolvimentos / projectos de prospecção para aumentar cerca de 350 mil milhões de barris de novas reservas de petróleo e 115 biliões de metros cúbicos de novas reservas de gás”, utilizando esta justificação para apoiar a prospecção e exploração de petróleo e gás em Portugal, atacando os seus oponentes. O relatório também fala em triplicar o nuclear, outra gigantesca irresponsabilidade cuidadosamente não citada.
O relatório é assinado por cientistas, nomeadamente da BP, da BMW, da ENEL, da Federação da Indústria Motora, da Fundação Kuwait e da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP). Os cenários de energia são baseados nos relatórios da IEA, que por sua vez utiliza os dados da Exxon-Mobil, da Shell, da Chevron, da BP, da Total e da Statoil. Cronicamente, ao longo das últimas décadas, as petrolíferas e, consequentemente, a IEA sobrevalorizaram o futuro consumo de combustíveis fósseis e subvalorizaram o desenvolvimento as energias renováveis. Em 2010 a agência previa que só em 2024 se atingiriam 180 GW de capacidade de energia solar PV, valor que foi atingido em 2015. A potência de energia eólica prevista em 2002 para 2030 foi atingida em 2010. Perante o mais baixo nível de investimentos em combustíveis fósseis em 60 anos (acompanhando um investimento recorde em renováveis), a IEA apelou em 2016 a um reforço do investimento em fósseis.
Portanto, os dados utilizados são dados que projectam um contínuo crescimento económico da indústria petrolífera, o que não bate com a realidade e, mais do que uma avaliação imparcial, fornece uma lista de desejos (das petrolíferas). Se adicionarmos que as petrolíferas como a Exxon-Mobil, a Texaco e a Shell sabiam desde os anos 70 do século passado da ameaça das alterações climáticas causadas pela queima de petróleo, gás e carvão, e que passaram os últimos 20 anos a pagar a negacionistas para evitar acção climática, ficamos mais tranquilos em relação à credibilidade.
No relatório destacado por Soares são basicamente omitidas emissões que não provenham de combustíveis fósseis, nomeadamente as da agro-pecuária, da floresta, do cimento ou das mudanças de usos de solos (segundo o relatório só serão, por milagre, responsáveis por 10% das emissões futuras), deixando convenientemente muito mais espaço aos fósseis no “orçamento de carbono”. Acresce que o relatório dá por adquirido que entrará em pleno funcionamento a tecnologia de Captura e Sequestro de Carbono, um projecto que é até ao momento ficção científica. Se se retirarem estas e outras grosseiras distorções do relatório, chegaremos a uma conclusão tão incómoda para as petrolíferas como para Amílcar Soares: não podem haver novos projectos de exploração de combustíveis (no planeta) para conseguirmos limitar o aumento de temperatura a 2ºC até 2100. Pode até fazer o greenwashing que quiser do gás “natural” como combustível de “transição”, mas são crescentes as evidências das gigantescas emissões na fase de exploração do gás fóssil, que coloca o gás obtido por “fracking” no mesmo patamar de emissões do carvão.
Soares ignora finalmente o capítulo sobre activos improdutivos, nomeadamente a possibilidade do novo investimento em combustíveis fósseis ser perdido perante a deslocação rápida para os combustíveis renováveis (e mais ainda se se atrasar a transição energéticas para daqui a 10 anos). Segundo o relatório, deve ser claro para os investidores que para ter 66% de probabilidade (e isso é que é gostar de jogar à roleta russa) de manter a subida de temperatura abaixo dos 2ºC, haveria poucas razões para que as petrolíferas desenvolvessem novos recursos de petróleo e gás na expectativa de uma trajectória de subida da procura e dos preços.
Perante a afirmação de que não há uma só evidência científica dos impactos ambientais da prospecção offshore, além das inevitáveis e até operacionais perdas de petróleo no mar, pode-se responder facilmente: Blowout no BP Deepwater Horizon no Golfo do México. Ignorar os efeitos das alterações climáticas, mesmo abaixo dos 2ºC, é de valor científico nulo e uma exibição de ignorância pública surpreendente, se não fosse apenas distorção propositada.
Em vez de usarem mensageiros, as petrolíferas devem responder pelos seus interesses económicos. A adjectivação e a invectiva pessoal têm pouco valor, mesmo acompanhadas de título e de cátedra, especialmente quando a única fundamentação dada para responder a uma carta de 66 cientistas preocupados com o futuro é usar os relatórios dos interesses de uma indústria de energia estúpida que, mesmo na queda, teima em levar-nos a todos para o caos climático.
Artigo originalmente publicado no Sábado.pt a dia 9 de maio de 2017.