Entrevistámos um membro do Climáximo, que partilhou connosco o foco e caminho do movimento na sua criação em 2015 e nos primeiros anos de luta, há exatamente 40 anos atrás — anos que viram o mundo mudar de forma tão profunda e estrutural.
Entrevistador do Futuro (E): Quando começaram já sabiam que íamos conseguir chegar à revolução mundial?
Membro do Climáximo (C): Bom, no início era um desejo forte, e também a visão ideológica que orientava o nosso rumo enquanto grupo: porque não era uma questão só de sensibilizar, mas queríamos acima de tudo mobilizar pessoas para mudar as coisas. Mobilizar implica ultrapassar o plano da palavra, do debate de ideias, da informação. Mobilizar para a ação! Depois a certa altura, com o curso que os acontecimentos tomaram, com a inflamação e agitação social por todo o lado, tornou-se uma esperança direta, e até uma suspeita. Mas não, posso dizer que não “sabíamos” desde o início, no sentido em que não tínhamos claro a certeza.
“Não era uma questão só de sensibilizar, mas queríamos acima de tudo mobilizar pessoas para mudar as coisas.”
E: Como é que se organizaram para chegar até aqui?
C: O Climáximo começou com quatro pessoas. [Ri-se] Agora parece difícil de acreditar! Mas essas quatro pessoas tinham a convicção de que para um movimento crescer, no mínimo — no mínimo! — teria de ter reuniões semanais. Então começámos a reunir todas as semanas, não sei porquê mas manteve-se sempre à terça-feira. Na altura era em casa de membros, mais tarde às vezes no GAIA ou no Mob, e sobretudo no CIDAC em Picoas. Estas eram organizações que tinham espaço próprio e acolhiam as nossas reuniões. Isto sempre em pós-laboral! Porque no Climáximo sempre fomos todos voluntários, e vários trabalhávamos. Então reuníamos semanalmente, as nossas reuniões eram abertas, e anunciávamos no site que qualquer pessoa era bem-vinda e podia participar. Não só as reuniões eram abertas, mas a forma como funcionavam também tentava ser aberta ao máximo: funcionávamos de forma horizontal, sem qualquer estrutura hierárquica ou posições, em cada reunião íamos rodando quem facilitava e fazia as atas por exemplo. Tomávamos as decisões por consenso, qualquer pessoa podia propor ideias ou ações, e depois víamos se havia interesse em levá-las para a frente. Numa lógica de “quem propõe, faz”. Não tínhamos qualquer financiamento, o financiamento éramos nós [ri-se]: contributos dos membros, ou jantares de angariação que fazíamos. Já agora, o Climáximo nunca teve existência formal como associação ou ONG. Éramos um coletivo informal, mas munidos de muita convicção e vontade de mudar o mundo.
“Tomávamos as decisões por consenso, qualquer pessoa podia propor ideias ou ações, e depois víamos se havia interesse em levá-las para a frente. Numa lógica de “quem propõe, faz”.”
E: E como é que munidas apenas dessa vontade, e em horário pós-laboral, puseram um movimento a funcionar? O que é que fizeram nos primeiros anos para pôr o movimento no mapa?
C: Olha, fizemos muitas coisas diferentes. Experimentámos bastante. O Climáximo surgiu no início de 2015 no contexto da COP-21 que ia acontecer mais tarde esse ano, e onde acabou por ser assinado o bastante irrelevante Acordo de Paris. Por isso quando surgimos a prioridade era essa: aproveitar que o tema estava na agenda pública para mobilizar gente. Então fazíamos desde conversas sobre ciência climática e aquecimento global, formações de ativismo climático, jantares populares, eventos públicos com oradores convidados, a cerca altura até fizemos um jogo para escolas, e uma oficina de ilustração. Quer dizer, tentámos de tudo! Tentámos até logo no primeiro ano organizar uma manifestação. Enfim, muita coisa. No final desse ano, conseguimos organizar uma marcha pela justiça climática em Portugal, e ao mesmo tempo levar uns 10 ativistas a Paris para as mobilizações anti-COP, onde entrámos na ação massiva de desobediência civil das linhas vermelhas. Quinze mil pessoas a inundar as ruas de Paris de vermelho. Foi grandioso!
Foi também aí que começámos a participar em reuniões e eventos internacionais como os da Climate Justice Action por exemplo. A partir desse primeiro ano, decidimos focar-nos em dois temas estratégicos: um foi a exploração dos combustíveis fósseis em Portugal, na altura chegou a haver 15 concessões para explorar petróleo e gás em Portugal: a costa inteira pejada de contratos. O outro foco foi a campanha dos Empregos para o Clima, que exigia a criação de milhares de empregos para fazer a transição justa para uma sociedade pós-carbono. Aí as coisas aqueceram mais: organizámos sessões de esclarecimento sobre petróleo por todo o país, de onde surgiram vários novos movimentos antiextrativismo. Também colaborámos muito com outros movimentos, chegámos a organizar um acampamento anti-fóssil no Algarve, várias marchas do clima em Lisboa, começámos a contactar sindicatos e outros grupos e organizámos uma quinzena de ação nacional contra a precariedade social e ambiental. A certa altura em 2017 fizemos uma campanha antes das eleições autárquicas sobre autarquias livres de petróleo e gás, para os candidatos declararem publicamente se eram contra ou a favor da exploração de combustíveis fósseis no seu município. Depois construímos um mapa online com as respostas. Fizemos também um relatório técnico sobre como fazer e financiar a transição. Estivemos muito ativ@s. Tudo isto fez o movimento crescer e pôs o ativismo climático no mapa português.
E: Podes explicar melhor o vosso foco nos “Empregos para o Clima” e no que chamaste uma “transição justa”?
C: Sim. Os empregos para o clima eram uma campanha que tinha surgido no Reino Unido uns anos antes, e já existia em vários países. Nós convidámos os representante britânico da campanha para vir falar dela em Portugal, e decidimos que essa era a direção certa. A campanha basicamente defendia que para travar as alterações climáticas e mudar a sociedade de uma forma justa — ou seja, de uma forma que não sejam as pessoas a pagar e as empresas a arrecadar mais dinheiro com isso — é preciso muito trabalho. Trabalho para cortar as emissões de gases com efeito de estufa que causam o aquecimento global. Estou a falar de trabalho concreto: mudar toda a produção energia de fontes fósseis para renováveis, tirar as pessoas do trânsito automóvel e pô-las em transportes públicos elétricos movidos a renováveis, e que realmente cheguem a todo o lado, transformar as casas para serem termicamente eficientes, transformar as práticas agrícolas para serem sustentáveis, gerir melhor as florestas. E fazer isto tudo em tempo limite, porque a ciência já na altura nos dizia que isto tinha que acontecer em poucas décadas. Nada disto era estranho. Estas medidas eram mais do que conhecidas. O que faltava era fazê-las. E para isso era preciso empregar muitas horas de trabalho humano. Mas o contexto social e político era totalmente avesso a isto. Andávamos em tempo de retóricas de austeridade, contenção orçamental, e precariedade instalada. Ou seja, as pessoas sentiam ataques de todos os lados, e onde lhes tocava mais de perto era nos salários e nas condições de trabalho. Por isso a ideia desta campanha fez muito sentido na altura.

Logotipo do colectivo Climáximo.
Esta era uma campanha que cruzava os dois eixos de luta e combatia as duas crises ao mesmo tempo: a crise da austeridade e precariedade, e a crise climática. Por isso tinha um potencial tão grande de apoio e mobilização popular. A campanha em Portugal defendia basicamente que deviam ser criados cem milhares de empregos em sectores-chave que cortassem diretamente nas emissões nacionais: energia, transportes, construção, agricultura, floresta. Ou seja, empregos por exemplo a instalar painéis solares, ou a fabricar turbinas eólicas, ou a vigiar a floresta, ou a isolar edifícios, ou a requalificar trabalhadores. E a campanha defendia que estes empregos tinham de ser criados com condições de trabalho dignas, e assegurar emprego a quem o perdia nas petrolíferas, etc.. E um dos pontos-chave da campanha era que isto tudo tinha de ser feito numa ótica de serviço público: não pelos mercados e as empresas, mas pela administração pública. Não com o objetivo de fazer lucro, mas de garantir a segurança e a proteção das populações contra as alterações climáticas. Porque só assim se conseguia coordenar os empregos necessários ao nível nacional, garantir que acontecia, que os cortes de emissões eram reais e não um exercício contabilístico das empresas, e que tudo era feito no tempo necessário. Ah, e já agora também que o resultado deste processo estava ao serviço das pessoas. Por isso falávamos em “transição justa”, e também em “democracia energética”. Porque havia uma componente importante de justiça e controlo popular: a liderança e gestão deste processo devia ser pública, para garantir que as pessoas não perdiam acesso a recursos básicos como energia, transportes, aquecimento, comida ou água, fosse por preços altos ou fecho de serviços por exemplo — mesmo que assegurar isso não gerasse lucro direto. A ótica era de serviço público e de justiça social.
“Esta era uma campanha que cruzava os dois eixos de luta e combatia as duas crises ao mesmo tempo: a crise da austeridade e precariedade, e a crise climática.”
E: Vocês desde o início criaram no vosso site uma secção chamada “A Mesma Luta”. Queres explicar?
C: Isto corresponde basicamente à visão ideológica do Climáximo. Desde o início nos definimos como anti-capitalistas, e tentámos agir na direção da mudança sistémica (em vez por exemplo da mudança de hábitos individuais). Como anti-capitalistas, sempre frisámos que todas as lutas contra as dinâmicas de extração, exploração e alienação do sistema eram lutas irmãs, fosse no contexto de uma luta pelos serviços públicos ou o direito básico à habitação, pelos direitos dos trabalhadores, pela abolição das fronteiras, ou contra os acordos de comércio livre. Todas estas lutas reconheciam e se opunham à injustiça inerente a um sistema económico de expansão infinita, que traduzia todos os valores, necessidades e prioridades humanas em mercadorias, e que em nome do lucro explorava pessoas, animais, e recursos planetários, presentes e futuros sem qualquer limite. Todas estas lutas confrontavam um sistema que viam como ilegítimo, em nome da justiça social e ambiental. Neste sentido, eram a mesma luta. E aliás, percebemos agora, em retrospetiva, o quão crucial foi a tomada de consciência desta união fundamental das lutas, para conseguirmos construir junt@s o caminho para a revolução.
“Sempre frisámos que todas as lutas contra as dinâmicas de extração, exploração e alienação do sistema eram lutas irmãs.”
E: Agora parece muito óbvio, mas na altura, no panorama português, era pouco usual falar-se em “desobediência civil”…
C: De facto. Olhando para a história, é fácil perceber que muitas das nossas conquistas mais básicas se conseguiram desobedecendo a leis e normas injustas: fosse pelo fim da escravatura, pelos direitos das mulheres, pela igualdade racial ou os direitos civis. Em Portugal, aprendíamos na escola sobre as lutas pelo fim da monarquia e do fascismo, e as conquistas de direitos para os trabalhadores. Mas de facto os movimentos em geral não agiam com base nesta sabedoria. Se calhar porque a revolução de 1974 tinha deixado espaço para os movimentos que antes eram contra o sistema ganhassem um lugar legítimo dentro do próprio sistema. Na altura as maiores manifestações em Portugal eram autorizadas e enquadradas no calendário oficial, e aconteciam todos os anos: as marchas do 25 de abril e do 1º de maio. E mesmo assim, com milhares de pessoas nas ruas todos os anos, os trabalhadores queixavam-se que iam perdendo direitos. Ora como é que se podem ganhar vitórias importantes quando a grande força de oposição ao sistema deixou de causar qualquer desconforto ou fricção no próprio sistema? É difícil… A partir dos exemplos da história, e do próprio movimento internacional de ativismo climático (a começar nas mobilizações anti-COP), percebemos que era fulcral tornar mais normal e legítimo desobedecer às regras, confrontar as autoridades, ir contra o poder, sempre que ele estivesse do lado errado, da injustiça e da exploração.
“Como é que se podem ganhar vitórias importantes quando a grande força de oposição ao sistema deixou de causar qualquer desconforto ou fricção no próprio sistema?”
E: Um dos lemas do movimento internacional era “we are the ones we’ve been waiting for — nós somos aqueles de quem temos estado à espera”. O que significa exatamente?
C: Estávamos a ver o planeta a resvalar. A rotina do sistema e a inação estavam a trancar-nos numa rota para cada vez mais destruição, para além dum ponto sem retorno. Havia sensibilização a rodos. Pouca gente no Norte global nunca teria ouvido falar em aquecimento global. Lembro-me na altura de tomarmos conhecimento de um inquérito que apontava em Portugal para 90 e tal por cento de gente “preocupada” ou “muito preocupada” com as alterações climáticas. Mas parecia que estava toda a gente à espera que alguém interviesse para os salvar: os governos, ou as Nações Unidas, ou as empresas de tecnologia. Certamente se fosse um problema importante e perigoso alguém iria salvá-los! Nós sabíamos que isto não ia acontecer. Há várias décadas acompanhávamos as negociações mundiais sobre o clima, e víamos fiasco atrás de fiasco, a conivência entre as petrolíferas e os dirigentes políticos, o silêncio da comunicação social. Sempre que acontecia alguma coisa grande e grave que matava pessoas ou as deixava sem nada (um grande incêndio, umas grandes cheias, uma seca violenta), as petrolíferas e a indústria automóvel nunca eram apontadas como responsáveis. Em vez disso, a culpa era sempre projetada para alguma coisa inofensiva: ou foi o sistema de alarme que falhou, ou a água municipal que foi desperdiçada a regar jardins, ou o sistema de drenagem que estava mal preparado para a chuva… Portanto nós não esperávamos que a salvação viesse dos governos ou das empresas. Aliás, eles eram uma parte grande do problema. Sempre soubemos que seriam as pessoas, os movimentos e mobilizações de bases, a mudar as coisas. Sempre foi assim. O super-herói da história somos nós. Fomos nós aqueles de quem estivemos à espera.
“Parecia que estava toda a gente à espera que alguém interviesse para os salvar: os governos, ou as Nações Unidas, ou as empresas de tecnologia. Certamente se fosse um problema importante e perigoso alguém iria salvá-los!”
E: No final, como sabiam que iam conseguir?
C: Para ser franca, acho que não sabíamos. Não com certeza, como já disse. Mas a verdade é que a alternativa era demasiado atroz. Não havia um plano B para se as coisas falhassem. Aliás, melhor dizendo, não havia um planeta B! Por isso a responsabilidade e a esperança era o que nos movia. Qual era a alternativa? Nessa altura já não eram só os nossos filhos e netos que iam sofrer com o problema, nós já começávamos a morrer, a perder as nossas casas e a ter de abandonar os sítios onde vivíamos. Já havia algumas pessoas a morrer em incêndios e em ondas de calor. E já não eram só os doentes e os velhinhos. Já se tinha tornado frequente ultrapassarmos 45 graus de temperatura. No verão, havia famílias a ficar sem casa. No inverno, às vezes os transportes falhavam, as esplanadas e os caixotes do lixo eram varridas pela chuva e o vento. As secas começaram a matar o gado e as colheitas, a secar os rios, e o preço da comida a subir. Começou a ser mais frequente cancelar voos e interromper comboios por causa do mau tempo ou dos incêndios. Lembro-me de ver estações de comboio e metro em Lisboa inundadas por causa de uma chuva de granizo! E com isto tudo, as pessoas foram ficando muito zangadas. Acho que se sentiram traídas. Na altura em que as grandes mobilizações começaram, tornou-se fácil acreditar que íamos conseguir. Tudo o que os movimentos tinham construído durante anos ajudou a canalizar a fúria e a raiva das pessoas na direção certa: greves e ocupações prolongadas, permanência nas ruas, e todo o resto da história da revolução que bem conhecemos, e que nos conduziu até hoje. Tivemos muita sorte na altura em evitar que as coisas ficassem fora do nosso controlo e o aquecimento não pudesse ser travado. Estávamos mesmo a ficar sem tempo. Foi por um triz… Mas conseguimos.
“Nessa altura já não eram só os nossos filhos e netos que iam sofrer com o problema, nós já começávamos a morrer, a perder as nossas casas e a ter de abandonar os sítios onde vivíamos.”