Nas políticas públicas regionais, nacionais, autonómicas e municipais de Portugal, Espanha e Marrocos há um reconhecimento inequívoco da existência de aquecimento global e das alterações climáticas, da origem humana dos mesmos e da fonte principal do dióxido de carbono: a combustão do petróleo, do gás e do carvão. Esse reconhecimento deu origem a leis, estratégias, planos, programas e agências nos três países: por exemplo, a Estratégia Nacional Energética de Marrocos, que define que até 2020 42% de toda a energia elétrica do país venha de fontes renováveis, o Programa Nacional para as Alterações Climáticas de Portugal, que visa assegurar a redução das emissões de gases com efeito de estufa em 18 a 23% até 2020 e 30 a 40% até 2030 em relação a 2005 ou a Oficina Espanhola para as Alterações Climáticas e o Conselho Nacional do Clima em Espanha. A nível autonómico é possível ver, por exemplo, a Lei Catalã para as Alterações Climáticas e a nível local as estratégias municipais de adaptação às alterações climáticas em Portugal.
Quanto mais se desce na escala do poder político, partindo da União Europeia (no caso de Portugal e de Espanha), para os governos centrais, os governos regionais e, finalmente, os municípios, a efetividade das leis, e a sua necessária radicalidade face ao cenário das alterações climáticas, vai-se acentuando. Mas há reconhecimento por parte de todas as estruturas de governação daquilo que é o fundamental do processo que deu origem às alterações climáticas, partindo diretamente da queima de combustíveis fósseis até à alteração da composição atmosférica, aumentando a energia e o calor na atmosfera e, consequentemente, de todos os ecossistemas terrestres. Também há um reconhecimento inequívoco por parte de todas as estruturas de governação da particular vulnerabilidade do território mediterrânico – onde se inserem os três países – aos impactos das alterações climáticas, em particular do avanço do deserto do Saara e do aumento da aridez que inviabilizará muitas das atividades humanas hoje desenvolvidas nestes territórios.
Não obstante, existe, em primeiro lugar, uma desconexão total entre, por um lado, o reconhecimento das causas do aquecimento global e as alterações climáticas e, por outro, as ações necessárias para travá-las (percetível até à escala da governança global, como são exemplo os relatórios do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas das Nações Unidas, com um gigante vazio entre diagnósticos e propostas de resolução efectivas). Essa desconexão ajuda a explicar a debilíssima estratégia internacional de combate às alterações climáticas, vergada e vergada, década após década, aos interesses das empresas petrolíferas e energéticas em geral. O próprio Acordo de Paris dá exemplo disso, ao colocar como objetivo um aumento de temperatura entre os 1,5ºC e os 2ºC até 2100 sem estabelecer o que quer que seja além de propostas individuais dos próprios países no sentido de reduzirem as suas emissões. O aumento da temperatura em 1,5ºC será atingido provavelmente em 2022 e o aumento de temperatura em 2ºC em 2037. A presunção de que 2ºC representam de alguma maneira uma medida de segurança é uma espécie de roleta russa civilizacional, já que esse aumento de temperatura levará ao desaparecimento do gelo no Ártico e ao degelo da Gronelândia.
Ocupação da mina de carvão de Hambach pelo movimento Ende Gelaende, durante a COP-23 na Alemanha
Entretanto, mais em Portugal e Marrocos do que em Espanha, existe uma grande propaganda política à volta da questão do combate às alterações climáticas, com profusa legislação a todos os níveis, presunção de mainstreaming com integração da questão em todos os sectores. Em Portugal, o governo anterior executou um reforma fiscal “verde”, cuja principal medida foi a taxação sobre os sacos de plástico, e o atual governo apresentou, na cimeira do clima COP-22 em Marrocos, a intenção do país ser “carbono neutro” em 2050, estabelecendo para tal um roteiro para a neutralidade carbónica, distribuído pelas áreas da energia, transportes, resíduos, agricultura, florestas e uso dos solos. Marrocos projeta a sua imagem através do grande investimento em energia solar, de que é mais evidente o empreendimento tipo “Desertec” em Ouarzazate, Noor. Em Espanha, o governo atual mantém há alguns anos uma política altamente restritiva do desenvolvimento das energias renováveis, destacando-se o “imposto sobre o sol”, taxando severamente a produção de energia a partir de painéis fotovoltaicos, que viam um grande aumento no país há alguns anos. Não obstante, assinou o Acordo de Paris e os membros do governo não rejeitam a existência das alterações climáticas.
Mas há algo verdadeiramente estúpido nestes três países: abundantes concessões de exploração de petróleo e gás. Em Marrocos, em terra, existem 29 concessões petrolíferas, incluindo para exploração não convencional, seja de areias betuminosas, seja de gás de xisto por fraturação hidráulica. No mar, existem 64 concessões petrolíferas, em offshore e ultra-deep offshore. Em Espanha estão ativas 13 concessões offshore (em Málaga, Bacia de Cádis, Tarragona e Donostia/S. Sebastian) e 35 concessões em terra. Em Portugal estão ativas 2 concessões em terra (Batalha e Pombal – Bacia Lusitânica) e 3 no mar (Lavagante, Santola, Gamba – Bacia do Alentejo) em offshore e ultra-deep offshore. No caso concreto de Portugal, apenas uma contabilidade criativa permitirá alguma vez dizer que se tem como objetivo a neutralidade carbónica quando se tem uma política pública de aumento inequívoco de emissões de gases com efeito de estufa: a cosmética substituindo a política pública climática.
Apesar disso, existem alguns sinais positivos, nomeadamente vindos do Belize, da Irlanda e da Costa Rica, que estão a avançar legislativamente para proibir a extração de combustíveis fósseis nos seus territórios. A Dinamarca pretende proibir a extração em terra e a França, mais em jeito de propaganda, anuncia que a partir de 2040 acabará com a exploração de petróleo e gás.
A resistência popular a vários destes projetos fósseis faz-se devido a inúmeros problemas, o primeiro dos quais os impactos diretos dos mesmos. No entanto, é no impacto climático deste tipo de projetos que devemos identificar a maior ameaça, em particular para países tão vulneráveis às alterações climáticas. Ter uma política climática incoerente – que é aquilo que têm Portugal, Marrocos e, especialmente, Espanha – é grave. Pretender expandir a exploração de combustíveis fósseis é do campo da insanidade institucional. A combustão de todas as reservas conhecidas de combustíveis fósseis hoje existentes no planeta levaria a uma subida de temperatura global da ordem dos 6ºC. Estas políticas institucionais propõem aumentar ainda mais estas reservas. Os conflitos institucionais entre governos locais e governo central, como no Algarve em Portugal contra a exploração de petróleo no mar; entre o governo regional do País Basco e o governo central em Madrid por causa do fracking na região ou entre o governo regional da Catalunha e o governo central em Madrid por causa da Lei para as Alterações Climáticas, respondem a conflitos sociais climáticos latentes e crescentes e deverão ser a antecâmara de conflitos sociais mais amplos, com base em movimentos sociais e populares, pressionando desde baixo os poderes centrais até hoje muito mais expostos à influência e pressão das empresas petrolíferas e energéticas à escala global.
Artigo publicado em ambienteterritoriosociedade-ics.org a 11 de abril de 2018