Lacunas entre a realidade e a política climáticas – Sinan Eden

Em janeiro deste ano, o governo apresentou o Plano Nacional Energia e Clima 2030, que é um plano de ação compatível com o recém-divulgado Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050, que por sua vez é compatível com os compromissos da União Europeia no Acordo de Paris. Sou doutorado em matemática pura e passei muitos anos a ler e escrever papéis consistentes uns com os outros. Uma boa parte destes meus papéis de matemática não mudaram nada no mundo. Uma situação semelhante acontece com os papéis que os governos publicam e o que os governos fazem. Na matemática, criar um teorema que não é imediatamente aplicável ao mundo é aceitável. Quando falamos das alterações climáticas, as lacunas entre a realidade e a política climáticas tornam-se muito mais graves.

Vamos começar pelo que deve acontecer. Para manter o aquecimento global abaixo de 2ºC em relação aos níveis pré-industriais (e assim, evitar um caos climático irreversível), é preciso reduzir as emissões de gases de efeito de estufa radicalmente. Os relatórios do Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas (IPCC) mostram vários caminhos para atingir esta redução. A nível mundial, devemos chegar a zero emissões em 2050. Temos ainda ao nosso dispor vários estudos que concretizam o que cada país deve fazer. A melhor ferramenta até esta data é o Climate Equity Reference Calculator, preparado pelo Stockholm Environment Institute. Por exemplo, Portugal deve cortar as suas emissões em 60-70% em 10-15 anos.

Contudo, existe uma enorme lacuna entre o que deve acontecer e o que está a acontecer. Vamos por passos.

Em primeiro lugar, devemos falar das emissões negativas (como captura e armazenamento de carbono e outras ficções de geoengenharia). O próprio IPCC diz que estes métodos têm muitas incertezas e são associados a vários riscos e desafios. Mesmo assim, todos os planos internacionais dependem do uso massivo destas tecnologias ainda inexistentes. Acreditar que estes métodos têm um potencial relevante no futuro próximo é como acreditar em unicórnios, mas é uma crença bastante mais perigosa para o planeta. Contudo, esta crença cria a ilusão de que não é preciso cortarmos as emissões assim tanto, e produz uma lacuna entre o que deve acontecer e o que eles dizem que deve acontecer.

Em segundo lugar, existe uma lacuna entre o que eles dizem que deve acontecer e o que eles dizem que vai acontecer. Esta lacuna é muito curiosa e pode ser encontrada em todos os papéis sobre clima assinados nas cimeiras do clima ou do G7 e G20. O próprio Acordo de Paris diz que os países vão limitar o aquecimento a 2ºC e, no mesmo documento, estão escritos os compromissos (voluntários) de todos os países, que somam para um aquecimento de 3.5ºC. Os governos são ambiciosos sobre o que deve acontecer, mas são tímidos sobre o que se comprometem a fazer na vida real.

Maior ainda é a lacuna entre o que eles dizem que vai acontecer e o que eles dizem que está a acontecer. Existem vários truques contabilísticos para reduzir as emissões no papel, chamados “carbon offsetting schemes” (esquemas de compensação de carbono), alimentados por mercados e créditos de carbono. Um exemplo pode esclarecer. Uma empresa pode encontrar novas reservas de petróleo num território. Por evitar explorá-las, esta empresa pode ganhar “quotas de emissões” e assim pode transformar um não aumento das emissões num direito a emissões num outro sítio. Ainda pior é se uma empresa (por exemplo, uma companhia aérea) diz que a sua atividade (viagens) emite menos CO2 porque eventualmente irá plantar árvores em algum sítio. Uma árvore captura carbono, mas são precisas décadas para o balanço de captura de carbono de uma árvore ser relevante, e nenhuma companhia está a comprometer-se à manutenção permanente de florestas. Na verdade, toda a discussão em torno das emissões negativas da florestação estão na mesma situação vaga e, por isso, não existe nenhum método genericamente reconhecido de calcular o impacto da florestação nas emissões reais. Em qualquer caso, já existe um setor publicitário de compensação das emissões e faz o público pensar que vão acontecer mais cortes do que vão na realidade.

Finalmente, há uma lacuna entre o que eles dizem que está a acontecer e o que está a acontecer. O típico exemplo são as emissões de automóveis, expostas no escândalo da Volkswagen e seguido por BMW, Mercedes, Renault, Peugeot e outras. No fundo, descobriu-se que as fábricas produziram um aparelho especificamente desenhado para enganar as inspeções. Os automóveis emitiam muito mais do que o que foi declarado. (Isto entrou nas contas das emissões nacionais e portanto, de certa forma, devíamos estar a recalcular as emissões anteriores com os novos valores, verdadeiros – o que ninguém faz, como expectável.) Um exemplo mais grave são as fugas de metano na extração por fratura hidráulica. O Ggás natural, queimado numa central termoelétrica, produz menos emissões do que outros combustíveis fósseis, e por isso é vendido como um recurso limpo. Contudo, na extração e no transporte, as fugas não contabilizadas fazem com que o verdadeiro impacto do gás no clima seja pior do que o do carvão. Durante anos, os governos e as empresas mentiram sobre o que estava a acontecer às emissões, omitindo partes da realidade ou simplesmente inventando números falsos. Está a tornar-se cada vez mais evidente que a distância entre o que eles dizem que está a acontecer e o que está realmente a acontecer é muito maior do que pensávamos.

Resumindo, o que deve acontecer é diferente do que eles dizem que deve acontecer, que é diferente do que eles dizem que vai acontecer, que é diferente do que eles dizem que está a acontecer, que é diferente do que está a acontecer. Cada uma destas lacunas é um terreno de batalha de comunicação. Para atingir uma ação climática verdadeiramente compatível com um planeta habitável, é preciso dizer a verdade e é preciso democratizar esta discussão pública.

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