Não há “Green New Deal” no capitalismo – João Camargo

Já quase não é preciso repetir: a concentração de dióxido de carbono na atmosfera é a mais elevada dos últimos três milhões de anos, as emissões de 2018 voltaram a bater recordes históricos e os últimos cinco anos são os cinco mais quentes desde que há registos. Estes números são uma avalanche à escala geológica que tarda em produzir uma reacção humana sequer remotamente adequada. No entanto, os resultados eleitorais das últimas eleições europeias viram pela primeira vez falar-se de um programa de combate às alterações climáticas, chamado em muitos sítios de “Green New Deal”. Nos próximos anos seguramente (apesar do tarde que já vem) surgirão programas destes para tentar suprir os rotundos falhanços que foram as políticas internacionais climáticas dos últimos 30 anos. Mas haverá qualquer possibilidade de sucesso dentro do actual sistema económico?

A ideia de “New Deal” é invocada há muitos anos por forças políticas que se propõem mudar de rumo as políticas dominantes, representando mais uma ideia abstracta do que uma reprodução histórica do que foram as políticas anti-recessivas de Franklin Roosevelt (FDR) no início dos anos 30 nos Estados Unidos. Hoje é previsível uma aliança crescente a nível europeu de Verdes, Liberais e Socialistas na defesa de um Green New Deal, à imagem do Partido Democrata nos Estados Unidos. A campanha para as primárias do Partido Democrata também nos ajuda a analisar a situação: todos os candidatos defendem um Green New Deal, mas as ideias sobre o que esse “deal” significa são profundamente diversas. O mesmo ocorre na Europa, com um apelo às forças progressistas que apoiem tal ideia, como bóia de salvação procurada por vários náufragos políticos que vêem como inspiração Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Cortez. Se New Deal diz pouco, Green New Deal diz pouco mais. Com o crescimento eleitoral expectável de partidos verdes, é normal uma aproximação do centro a algumas reivindicações de índole ambiental. Será isso suficiente para travar o colapso climático? Dificilmente. A ideia de uma frente europeia “progressista” com Macron, Merkel, Pedro Sánchez e António Costa para este efeito seria a garantia da sua inutilidade.

É interessante olhar para o New Deal não só como conceito mas como realidade histórica: mais do que um pacote coerente, foi um enorme conjunto de instituições, programas de obras públicas, nova legislação e regulações um pouco por todas as actividades que ocorriam nos Estados Unidos, num período de profunda instabilidade política e económica, desemprego em massa e domínio quase absoluto de Wall Street e dos multimilionários americanos sobre a economia do país. Quando foi eleito, FDR comparou a situação que se vivia a “uma guerra”, respondendo com as famosas palavras “nada temos a temer senão o próprio medo” e desenvolvendo uma política determinada com três eixos principais: estabilizar o sistema financeiro, providenciar apoio e empregos e relançar a economia capitalista americana.

Para controlar a banca aprovou os Securities e o Glass-Steagall Act, separando a banca comercial da banca de investimento e impondo uma regulação apertada dos mercados financeiros. Estas reformas assinalaram um enorme desvio de poder: Wall Street deixava de dominar a economia do país. Para salvar os milhões de desempregados e pobres que grassavam pelo país, criou a Administração Federal de Apoio de Emergência (FERA). O Corpo de Conservação Civil pôs mais de 300 mil pessoas a plantar árvores, construir pontes e limpar praias. A Administração para a Electrificação Rural levou electricidade a milhões de casas por todo o país enquanto o Serviço de Conservação de Solos formou centenas de milhares de agricultores para usarem métodos de cultivo que não destruíssem os terrenos agrícolas. O Acto para a Recuperação Industrial Nacional (NIRA) introduziu planeamento económico em grande escala, modificando legislação laboral e direitos de consumidores, promovendo a contratação colectiva e a negociação sindical, além de criar uma Administração de Obras Públicas e uma Administração para a Recuperação Nacional (NRA).

Sob o NIRA foram feitas enormes obras como a Golden Gate Bridge em São Francisco, a barragem de Hoover, o aeroporto de LaGuardia, 30 mil casas, mais de 11 mil estradas e milhares de escolas e hospitais. Foi ainda criada uma administração federal para hipotecas (Fannie Mae) e a Administração Federal da Habitação para combater a crise habitacional. A NRA era a menina dos olhos de FDR, constituindo uma aliança entre o governo e as empresas privadas para construir códigos de condutas para travar práticas de competição selvagem como cortes de custos, saldos e trabalho infantil. Foi sol de pouca dura: quando as empresas concordavam com o governo, cumpriam os códigos de conduta, quando não, ignoravam-nos. Numa segunda fase do New Deal, FDR criou a Segurança Social, aumentou os impostos sobre os ricos e reorganizou o poder executivo. A classe trabalhadora foi bastante beneficiada por estas políticas do New Deal, mas quando no final da década começaram a ser feitos cortes nas medidas, o desemprego voltou a disparar. A 2.ª Guerra Mundial já estava no horizonte.

O New Deal não foi um processo consensual dentro da sociedade americana. FDR foi acusado, à vez, de ser fascista, comunista, autoritário e populista, organizaram-se coligações políticas anti-New Deal e cada proposta era combatida nos tribunais, mas não existem grandes dúvidas que durante a vigência destas políticas, e graças a elas, a economia americana viu uma enorme recuperação (dotando-a ainda de infra-estruturas, equipamentos, direitos e garantias que duram até hoje), o nível de vida da população melhorou drasticamente e a ascensão da extrema-direita nos EUA foi estancada. FDR salvou o capitalismo americano tirando poder aos capitalistas americanos. Do outro lado do Atlântico, Hitler respondia à crise capitalista criando o III Reich.

Hoje discutimos ideias de Green New Deal como promessas eleitorais, mas para a crise climática temos de pensar em processos sociais. O próprio New Deal deu enorme apoio ao mundo sindical através de direitos laborais e criação de emprego no NIRA e no Acto Nacional para as Relações Laborais (Wagner Act) e sem esse corpo social e político de apoio dificilmente se poderia ter mantido. A organização de trabalhadores aumentou drasticamente, assim como os seus direitos e poder negocial.

O que faltava até há um ano atrás era um corpo social e político para uma política de justiça climática que consiga travar o caminho para o colapso. Hoje esse corpo existe, por todo o mundo, embora a sua expansão seja uma necessidade clara. Por outro lado, a pulsão para institucionalizar o movimento é uma das maiores ameaças que o mesmo enfrenta: a recente experiência espanhola da institucionalização do movimento 15-M e sua transformação no Podemos dá-nos lições que não podemos desperdiçar.

A ausência de um corpo social para um programa efectivo de justiça climática ou a institucionalização desse corpo social são tempo que não temos para perder. A fragilidade de propostas fracas sem corpos sociais pode ser vista na lei climática apresentada no Estado do Oregon (EUA). Uma maioria absoluta democrata eleita a partir de propostas como estas e de um movimento cada vez mais interligado com as instituições preparava-se para aprovar a lei. Os 11 senadores republicanos eleitos simplesmente fugiram do Senado e esconderam-se para impedir a existência de quórum. O governador ameaçou mandar a polícia estadual trazer os senadores para a votação, ao que os mesmos responderam que a polícia teria de vir bem equipada para consegui-lo. Milícias armadas de extrema-direita da região vieram defender os senadores e bloquearam o Senado, que teve de ser evacuado. Os democratas deixaram cair a lei.

Em Portugal, João Galamba e João Pedro Matos Fernandes comportam-se como mordomos das empresas privadas, pintando as renováveis como um espectacular e rentável negócio e vendendo a ideia de que pode haver uma transição energética no tempo necessário através de negócios privados. No entanto, as redes montadas dos interesses fósseis à escala mundial já garantiram uma paralisação da tendência de crescimento de investimento em renováveis, que seriam teoricamente mais rentáveis. A rentabilidade é uma construção política e governamental: seriam mais rentáveis se os governos não estivessem ainda nas mãos das empresas mais poderosas que já existiram na história.

Os combustíveis fósseis ainda são rentáveis, as armas são rentáveis, como as drogas ou as guerras. A rentabilidade só é um critério para a auto-remuneração do sistema capitalista, não tem nada a ensinar-nos acerca da urgência de cortar 50% das emissões de gases com efeito estufa à escala global na próxima década, sendo, aliás, claramente um empecilho. Os governos criam mercados, acarinham mercados, embalam mercados e fecham-nos também. Quem controla governos, portanto, tem todos esses poderes – sejam as empresas novas ou velhas que se colocam dentro dos gabinetes, nas capas dos jornais e nos escritórios de advogados, ou sejam finalmente as populações que os escolhem. Para conseguir esta tarefa simples de ter governos controlados pelas populações e mandatados para salvá-las, não será necessário menos que um movimento revolucionário.

Procuramos paralelos históricos para encontrar soluções técnicas e políticas para a crise climática. E naturalmente procuramo-las nos períodos mais conturbados para a Humanidade. No entanto, é preciso ser totalmente claro: nenhum dos esforços do passado chega para o que necessitamos fazer. Teremos que fazer o que não foi testado, e terá de ser mais do que um New Deal, mais do que uma revolução francesa ou russa, mais até do que a 2.ª Guerra Mundial. O capitalismo não sairá vivo desta crise. A questão é se nos leva connosco para o abismo ou se o cortamos como membro gangrenado. Não existe por isso nenhum programa político e social que consiga resolver a crise climática sem destruir a estrutura de poder capitalista. O “realismo” é hoje uma ferramenta de distopia. A cobardia hoje não garante perenidade nem continuidade: garante catástrofe. Mais que nunca, hoje precisamos de imaginação e muita, muita coragem.


Artigo originalmente publicado no Público a dia 15 de julho de 2019.

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