A distinção entre quem são os donos das empresas que contribuem para a catástrofe climática e quem apenas empresta dinheiro existe, mas todos lucram, e todos nos guiam para a destruição.
Petrolíferas, prospetoras de gás, produtoras de energia, minas de carvão, indústrias, ministérios governamentais, comunicação social. Os alvos do costume passam frequentemente pela primeira linha da atividade, como a extração de combustíveis fósseis, a combustão, e chega desde aos governos que criam as estruturas onde estes podem atuar até à imprensa que escolhe não falar do assunto seriamente. No entanto, uma peça fundamental de todo o processo tende a ficar omitida: a banca.
Em parte esta é difícil de desvendar; quando carvão é extraído de uma mina não é evidente que tudo aquilo foi possível devido ao financiamento de uma dada empresa, e mesmo quando se tenta investigar, a opacidade da informação dificulta obter um desenho claro. Ao procurarmos um responsável pelas atividades destrutivas, o alvo mais óbvio passa pelos donos da empresa, no entanto as diferenças entre estes e os financiadores são menores do que possa parecer.
Ações versus obrigações: uma perspetiva de investimento
Uma ação traduz-se no instrumento de posse direta de uma dada empresa, dando assim posse de uma porção da empresa. Por exemplo, a Apple neste momento tem 4.52 mil milhões de ações no mercado, significando assim que ao comprar uma destas ações fica-se na prática com 1/4520000000 da Apple. Ou podemos pensar numa situação mais ilustrativa: tu e uma amiga tua decidem abrir um negócio de Falafel na zona do Intendente, e cada uma fica com metade do negócio. Na prática podemos considerar que cada uma fica com uma ação num total de duas, ou seja, cada uma fica dona de 1/2=50 por cento do negócio. Assim, como donas da empresa, cada uma fica com metade dos direitos de voto sobre decisões, metade dos lucros, metade das obrigações se for necessário colocar mais dinheiro no negócio, enquanto a empresa existir ou venderem a vossa ação a outra pessoa. Nos mercados, o valor destas tende a subir e descer com as perspetivas de lucros e dividendos que se esperam no futuro.
Com financiamento ou obrigação estamos a falar de um empréstimo em dinheiro, com um acordo específico em vários termos: a data de vencimento, ou seja, quando a empresa devolverá o dinheiro; a taxa de juro, ou seja, qual a percentagem do dinheiro emprestado que será paga em compensação por emprestar dinheiro; a periodicidade, isto é, quando é que os juros serão reembolsados (se a cada 3 meses, a cada 6, a cada ano, etc.). Nos mercados financeiros é comum transacionar estas obrigações, isto é, tendo um financiamento sobre uma empresa e o direito a receber os juros e o retorno do montante inicial, é possível vender este a outra parte, recebendo de imediato um montante em troca do dinheiro futuro. O valor de uma destas obrigações tende a ser determinado pela probabilidade de falência de uma empresa – quanto mais provável esta falir, menor a obrigação valerá.
Colocando os dois tipos de ativos financeiros lado a lado, um fator é comum, o valor destes sobe e desce de acordo com as perspetivas de negócio da empresa. Se os negócios se encontram em bom rumo, o valor dos lucros deverá ser maior, e a probabilidade de falência menor, daí respetivamente a ação e a obrigação deverão valer mais. Em sentido inverso, com negócios em mau estado, o valor dos lucros futuros desce e a expetativa de falência sobre, fazendo ambos os ativos evoluírem de forma negativa.
“A grande distinção entre os dois tipos de ativos (ações e obrigações), é a magnitude de exposição às fortunas da empresa.”
Qual é a grande diferença entre os dois ativos? Começando pela variável lucros, quanto mais estes aumentam maior será o valor de uma ação, podendo subir sem qualquer limite definido; quanto mais lucro uma empresa fizer, maior será o seu valor. Já o valor da obrigação não se porta assim. Tendo uma empresa em perfeito estado de contas, quase sem perspetiva de falhar pagamentos, lucros futuros adicionais não melhorarão as perspetivas de não falência, já que está já é quase nula. Falando diretamente das perspetivas de falência, estas são obviamente más para as obrigações, pois no caso de ocorrência os credores terão direito apenas aos ativos que restam da empresa para compensar as perdas, ou seja, dificilmente ficam sem absolutamente nada. Já os acionistas têm uma situação mais complicada. Em caso de falência completa os lucros futuros tornam-se praticamente nulos, só podendo ter alguma compensação depois dos credores satisfazerem todas as possíveis perdas. Se compararmos uma empresa falida a uma carcaça, os credores comem primeiro, ficando os acionistas com o resto.
Assim, a grande distinção entre os dois tipos de ativos, é a magnitude de exposição às fortunas da empresa. As ações trazem grandes lucros quando o negócio corre bem, mas muito pouco em situações complicadas. As obrigações correm melhor quando os negócios estão em bom estado, mas têm um teto baixo sobre o máximo de mais valias que podem gerar, mas em situações complicadas são as primeiras reclamar o que resta da empresa, dificilmente ficando sem nada.
O exposto acima é uma simplificação, podendo existir desde obrigações que têm o direito de se transformarem em ações, ações sem direito de voto a todo o tipo de cláusulas especiais. Uma ação de uma startup tecnológica tem um perfil muito diferente de uma distribuidora elétrica, mas esta análise permite-nos a distinguir os dois tipos de ativos e verificar os pontos comuns.
Responsabilidades dos acionistas e financiadores nas alterações climáticas?
Com os dois principais ativos definidos, ações e obrigações, e respetivos tipos de investidores, podemos enquadrá-los nas escolhas das empresas. Quando uma empresa precisa de se financiar, por exemplo, para investir num novo projeto de exploração de carvão, as duas opções colocam-se: pedir dinheiro emprestado via financiamento ou abrir a empresa a novos acionistas, que pagarão por uma fatia da empresa. Qual a grande diferença? O perfil de risco que o investidor assume, qual o tipo de fatia que este reclamará como retorno: a mais previsível, ou a mais incerta, a obrigação ou a ação. Do ponto de vista da própria atividade da empresa, a diferença é virtualmente nula, chegando mesmo a ser argumentado nos anos 50 por Franco Modigliani e por Merton Miller que, em condições abstratas, para a própria empresa a decisão é indiferente, e na prática sendo especialmente afetada por questões de minimização dos impostos a pagar.
Existe uma diferença, dado o poder de voto que as ações têm mas as obrigações não, mas este é contrariado por duas dinâmicas. Em primeiro lugar, quando o dinheiro é emprestado, o alinhamento com a forma da empresa produzir lucro é bem conhecida. Quando um banco decide emprestar a uma empresa este tem uma noção do que a empresa fez no passado. Nenhum banco institucional coloca dinheiro numa empresa dedicada à produção de sketches non-sense e acaba surpreendido ao verificar que afinal a empresa afinal faz prospeção de gás. Em segundo lugar, as empresas necessitam de uma relação de longo prazo com os financiadores. Pagar um empréstimo e retirar esse montante dos débitos de uma empresa não é a regra, é frequente terminar um empréstimo e de imediato renová-lo por um novo com um montante similar, tornando as dívidas virtualmente permanentes, e assim é crucial um alinhamento a longo prazo entre a agenda das empresas e dos seus financiadores.
“o dinheiro direcionado para dentro da empresa segue o mesmo rumo, no caso de empresas que lucram com exploração fóssil ou com a devastação da Amazónia o caminho é o mesmo, o do caos climático”
Assim, o dinheiro direcionado para dentro da empresa segue o mesmo rumo, no caso de empresas que lucram com exploração fóssil ou com a devastação da Amazónia o caminho é o mesmo, o do caos climático, e um grande exemplo da forte presença dos financiadores é o caso da Amazónia.
O caso da Amazónia e a Cargill
Uma grande fatia da devastação na Amazónia e beneficiária direta da destruição desta, quer via fogos, quer via desmatamento, é a indústria da plantação de soja, que procura sucessivamente novos territórios onde plantar soja, alimenta-se em grande medida de terrenos onde outrora se encontrava floresta, e em conjunto com a indústria complementar da produção de gado (que se alimenta dessa mesma soja) é responsável por 80% da desflorestação Amazónica.
Esta produção é feita diretamente por empresas locais, mas como não poderia deixar de ser, esta indústria local é conduzida por multinacionais. As quatro grandes comerciantes de soja são ADM, Bunge, Cargill e Louis Dreyfus Company. O funcionamento destas é fortemente alavancado pelo financiamento da banca, com mais do que 25 mil milhões de dólares em crédito entre 2013 e 2018 por 14 bancos da Europa e dos Estados Unidos da América, quer fornecido diretamente, quer como procuradores para outras entidades. No topo da tabela encontram-se o o BNP Paribas com acima de 3.000 milhões, seguido do JPMorgan Chase com perto desses 3.000 milhões, e com cerca de 2.900 milhões o Barclays.
Apoiando apenas as empresas comercializantes, a banca consegue ocultar a sua intervenção duas vezes, a primeira usual, apenas financiando, a segunda extra, ao fornecer crédito, não às empresas que fazem diretamente a exploração, mas às multinacionais transacionadoras, que na prática conduzem a indústria.
Dentro de uma destas empresas, podemos olhar de perto para a Cargill e para o papel do financiamento em contrapartida à participação direta nos negócios. Esta é a maior empresa dos Estados Unidos cujas ações não são transacionadas em público. O que é que isto quer dizer? Não é possível transacionar as ações no mercado bolsista aberto, num índice como o Dow Jones. Desde a fundação da empresa em 1865, os herdeiros da empresa mantiveram o controlo sobre esta, detendo mais de 85 por cento das ações. Assim, a forma essencial para obter financiamento ao longo dos anos baseou-se em financiamento por parte da banca, sendo esta essencial para criar o colosso corporativo que hoje existe. Olhando para os dados recentes, de 2013 a 2018, os 4 principais bancos que financiaram a Cargill foram: o BNP Paribas com 1.507 milhões de dólares, o JPMorgan Chase com 1.489 milhões, e o Bank of America e o Barclays seguem-se com 1.341 milhões cada.
“A função prestada pelas duas é idêntica, o que as traz para a primeira linha da responsabilidade pelos resultados das empresas, quer sejam donas de ações, quer sejam financiadoras.”
Olhando para um contraposto, a Google, fundada em 1998, contou com o financiamento via ações ao longo dos tempos, isto é, obtendo dinheiro vendendo parte da empresa a investidores, chegando assim aos dias de hoje, em que os dois fundadores, Larry Page e Sergey Brin detêem apenas 14 por cento das ações (mas ficando com 56 por cento dos direitos de voto devido à emissão de diferentes tipos de ações).
O objetivo não passa por comparar os percursos de duas empresas de áreas tão distintas, mas sim analisar como o sistema corporativo capitalista funciona combinado ações e obrigações, sendo estas grosso modo substitutas mútuas. A combinação da utilização destas duas formas de funcionamento acaba por depender de vários fatores, como a indústria da empresa, decisões individuais das administrações, ou condições económicas em momentos essenciais da vida da empresa. A função prestada pelas duas é idêntica, o que as traz para a primeira linha da responsabilidade pelos resultados das empresas, quer sejam donas de ações, quer sejam financiadoras.
A discussão da crise climática tem que passar pela raiz do problema, e isso implica num primeiro nível a responsabilidade do sistema económico em que vivemos, e os principais agentes nestas, as grandes empresas. No entanto, compreender os alicerces destas grandes empresas é fulcral, especialmente no caso da banca, dada a dimensão desta ser tão grande e ao mesmo tempo a sua acção passar tão despercebida.