O setor alimentar em Portugal: a situação atual e uma transição justa para a alimentação do futuro – Cláudia Almeida

O futuro da produção alimentar é um tema que raramente é discutido com seriedade no contexto da sustentabilidade social e ambiental, mas tem o potencial de devastar muito do que consideramos a base de uma sociedade civilizada. A atual forma de produzir alimentos cria desafios incontornáveis, já sentidos nos nossos dias e com certeza exacerbados nas próximas décadas, nomeadamente com o agravamento da crise climática, a crescente degradação dos solos e a consequente dificuldade em encontrar terras aráveis. As previsões apresentadas no relatório do IPCC1 de 2019, sobre alterações climáticas e solos, apontam para a diminuição da estabilidade das provisões alimentares e o aumento do preço dos alimentos, o que resultará no agravamento da insegurança alimentar, dos conflitos devido à escassez de recursos, das migrações forçadas e, subsequentemente, das desigualdades sociais.

Dada a sua particular vulnerabilidade às alterações climáticas, os sistemas de produção alimentar estão seriamente ameaçados, nomeadamente devido à mutação dos padrões de precipitação, ao aumento de períodos de seca e, simultaneamente, da frequência de inundações, e à redistribuição geográfica de pragas e doenças. Paradoxalmente, em vez da criação de medidas que aumentem a resiliência da produção alimentar, têm sido celebrados contratos de exploração que vão precisamente no sentido contrário. À semelhança de outros setores, a indústria alimentar tem evoluído para uma produção destrutiva e intensiva, dominada por grandes empresas. Substituindo progressivamente a produção local, geralmente assente no saber ancestral, as monoculturas intensivas têm vindo a destruir a paisagem física e humana do país, degradando os solos a um ritmo alarmante, sobretudo com a utilização descomedida de água, fertilizantes e pesticidas químicos.

Em Portugal, 32,6% dos solos estão afetados pela degradação2, que atinge a totalidade do interior algarvio e do Alentejo. Tal resulta da utilização do solo para culturas agrícolas intensivas de regadio e da contaminação por pesticidas e fertilizantes. O problema está a alastrar para as zonas do noroeste, entre as que apresentam maior pluviosidade, na Europa, e a aumentar nas zonas do litoral sul e nas zonas montanhosas do centro do país. Esta degradação progressiva dos solos portugueses gera riscos e levanta preocupantes questões de soberania e segurança alimentar. Ainda assim, grandes projetos de exploração agropecuária, promovidos por políticas públicas e investimentos privados, têm vindo a agravar, ainda mais, o problema.

É o que acontece no caso da expansão da cultura de olival superintensivo no Alentejo, por exemplo. O surgimento destes olivais criou a necessidade de um novo nome — «intensivo» não era já suficiente para os descrever com exatidão. Apesar de a oliveira ser uma árvore autóctone e adaptada ao clima do Alentejo, a sua exploração em regime superintensivo põe os ecossistemas em desequilíbrio e em perigo. A floresta do montado alentejano está progressivamente a ser substituída por hectares e hectares de fileiras cerradas de pequenas e maleáveis oliveiras (para facilitar a apanha da azeitona com máquinas). Esta alteração no modo de produção do olival, no Alentejo, para além de alterar a paisagem física, altera também a paisagem humana. Os modos de produção tradicionais são cada vez mais abandonados, criando uma competitividade que prejudica os pequenos produtores e os obriga a utilizar agrotóxicos de forma igualmente intensiva para conseguirem manter-se no mercado3.

A alteração no regime das culturas é intencional e premeditada, seguindo uma lógica extrativista e de procura de lucro a todo o custo. O projeto do Alqueva é prova disso. Sob o pretexto de tornar o Alentejo mais atrativo ao investimento privado e estrangeiro, grande parte do Alentejo foi alagado para facilitar a multiplicação de monoculturas intensivas de regadio. O objetivo foi atingido: até 2017, a exploração agropecuária empresarial aumentou 33%, enquanto a pequena produção diminuiu 10,6%4.

Esta exploração de olivais intensivos e superintensivos beneficia, sobretudo, empresas espanholas (como a Atitlan Alpha, por exemplo), com o apoio financeiro de fundos de investimento (por exemplo, Crédito Agrícola e Santander), promovidos pelo organismo governamental AICEP, que visa a internacionalização da economia portuguesa5. Todos beneficiam. Todos, exceto a população local que, quando os solos estiverem completamente esgotados e as empresas migrarem a produção para outro terreno ainda produtivo, ficam sem terra, sem emprego e sem sustento.

Outro exemplo de intensificação «benéfica» da exploração prende-se com os recentes contratos de exportação de carne de porco para a China. Sabendo que foram feitos contratos milionários com três matadouros portugueses, pouco conhecemos da motivação por trás dos investimentos públicos e privados. A Agrupalto adquiriu um dos matadouros, a Maporal, em Reguengos de Monsaraz, para trabalhar, em exclusividade, para o mercado chinês. Os impactos? A necessidade de aumentar a produção de cereais para alimentar os animais a abater (15 mil porcos por semana, segundo informação no próprio site da Agrupalto), a utilização diária de 700 mil litros de água (fornecida pelo Alqueva e desviada do bloco destinado à rega), a poluição das águas, a acidificação das terras circundantes e a emissão de gases com efeito de estufa decorrente do processo da gestão de resíduos, da fase de transformação da carne e, sobretudo, deste transporte irracional para a China.

Apresentado como um negócio benéfico para o desenvolvimento regional, este acordo vai contribuir para a intensificação dos problemas já existentes, como a degradação dos solos alentejanos, e contraria a necessidade de operar a transição para uma alimentação baseada em vegetais autóctones, produzidos em regime de agroecologia.

Estes são apenas dois exemplos de como estruturas governamentais e financeiras, tanto nacionais como internacionais, moldam a nossa paisagem física, económica e humana, com enormes consequências negativas para o território nacional e para a população local e com poucas compensações para os que serão mais afetados.

Continuar a produzir assim não só é um ato de irresponsabilidade moral e ambiental, como uma aceleração premeditada em direção ao colapso. A nossa sobrevivência depende da capacidade de continuar a produzir alimento; no entanto, sabemos que a produção alimentar atual não é compatível com um futuro de clima alterado.

Estamos conscientes de que temos de fazer rápidas mudanças para continuar a produzir recursos essenciais à nossa (sobre)vivência e ao nosso sustento, mas as políticas públicas e os investimentos, em matéria de produção agropecuária, têm seguido um trajeto completamente oposto ao necessário. De modo a alcançar uma produção alimentar que seja resiliente, que proteja os produtores locais e que contribua para a atenuação de desigualdades sociais, é preciso deixar de a ver como um meio de obter lucro e passar a encará-la, realisticamente, como uma das bases do nosso sustento e da nossa sobrevivência. Precisamos de uma produção alimentar racional, que garanta a disponibilidade futura de solo arável através de meios de produção integrados na agroecologia, como a permacultura e a agricultura regenerativa. Precisamos de uma disponibilidade de alimento racional e regional, que não assente no transporte internacional desnecessário, mas no comércio local e sazonal. Precisamos de políticas públicas que garantam o trabalho digno de produtores agrícolas, responsáveis por produzir o nosso sustento. Precisamos de incentivos que permitam a transição para uma alimentação com base em legumes e fruta, e menos dependente do consumo de produtos de origem animal. Em resumo, precisamos de políticas públicas que estejam do lado da mudança, e não do agravamento da crise em que já nos encontramos.


1 IPCC, Climate Change and Land: An IPCC Special Report on climate change, desertification, land degradation, sustainable land management, food security, and greenhouse gas fluxes in terrestrial ecosystems, 2019. [Disponível na Internet: <https://www.ipcc.ch/srccl/>]

2 Programa de Ação Nacional de Combate à Desertificação (PANCD), revisto, atualizado e aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 78/2014 [Diário da República Eletrónico: <https://data.dre.pt/eli/resolconsmin/78/2014/12/24/p/dre/pt/html>].

3 A. Silveira et al., «The sustainability of agricultural intensification in the early 21st century: insights from the olive oil production in Alentejo (Southern Portugal)», in A. Delicado, N. Domingos, L. de Sousa (coord.), Changing Societies: Legacies and Challenges. The Diverse Worlds of Sustainability (Vol. III). Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2018, pp. 247–275. [Disponível na Internet: <https://www.ics.ulisboa.pt/books/book3/full.pdf>]

4 C. Marques, M. Carvalho, «A agricultura e os sistemas de produção no Alentejo: Breve caracterização da sua evolução, situação atual e perspectivas», in Posse e Uso da Terra — Caracterização da Agricultura no Alentejo (cadernos Poder Local). Lisboa: Página a Página — Divulgação do Livro, SA, 2017.

5 A. Silveira et al., op. cit.

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