O coronavírus é um evento desencadeador histórico, e precisa de um movimento à sua altura – Paul Engler

Inclusive em tempos de distanciamento social, construir uma resposta social colectiva à pandemia é a nossa única salvação.


Este artigo foi originalmente publicado no Waging Violence a dia 16 de Março de 2020.


Há alturas na história em que eventos súbitos — desastres naturais, colapsos económicos, pandemias, guerras, fome — mudam tudo. Mudam as políticas, mudam as economias e muda a opinião pública de uma forma drástica. Muitos analistas de movimentos sociais chamam-lhes “eventos desencadeadores”. Durante um evento destes, coisas que antes eram inimagináveis tornam-se realidade muito rapidamente à medida que o mapa social e político é refeito. Por um lado, estes grandes eventos são raros. Porém, por outro lado, eles têm sido observados regularmente nas últimas décadas. Eventos como o 11 de Setembro, a Guerra do Iraque, o furacão Katrina e o colapso financeiro de 2008 tiveram grandes repercussões na vida nacional [n.t.: dos EUA], e levaram a alterações políticas que seriam difíceis de prever previamente.

O COVID-19, a pandemia causada pelo coronavírus, é de longe o maior evento desencadeador de mudanças da nossa geração. É uma combinação de um desastre natural e de um colapso económico ao mesmo tempo. Além disso, esta crise de saúde pública está a chegar precisamente no meio de uma das épocas políticas com mais consequências no nosso tempo de vida.

Eventos desencadeadores como este podem criar confusão e desconforto. Mas também são excelentes oportunidades para as pessoas que têm um plano e que sabem aproveitar estes momentos avançarem com os seus projectos. Esses projectos podem ser reaccionários, por exemplo, quando conservadores ou fascistas impõem duras medidas de austeridade e espalham a xenofobia — como apresentado no livro “A Doutrina do Choque” de Naomi Klein. No entanto, isso não tem necessariamente de ser prevalecente. Com um contra-projecto baseado num compromisso com a democracia e com um profundo sentimento de empatia colectiva, as comunidades podem florescer, mesmo no meio de uma crise.

De facto, podemos encontrar muitos exemplos ao longo da história de movimentos progressivos e solidários que vieram à superfície como resposta a este tipo de eventos. O aparecimento do “New Deal” como uma resposta à Grande Depressão dos anos 1930 é disso um exemplo, assim como a mais recente mobilização “Occupy Sandy” em Nova Iorque para apoiar comunidades fustigadas pelo furacão Sandy em 2012. O livro de Rebecca Solnit escrito em 2009, “A Paradise Built in Hell”, contém uma miríade de exemplos de esforços colectivos humanitários que responderam a desastres.

Hoje, ao enfrentarmos a perspectiva de centenas de milhares de pessoas nos Estados Unidos — e milhões em todo o mundo — poderem morrer, a única maneira de podermos prevenir alguma da maior tragédia e destruição é com uma resposta semelhante.

Nos meus textos sobre movimentos sociais, argumentei que estes eventos desencadeadores criam espaços liminares onde os movimentos de protesto em massa podem mobilizar as forças de democracia de base. Ao ocorrer um evento deste género os organizadores vêem-se num “turbilhão”, em que as regras normais em uso na política, simplesmente não funcionam. Muitos dos grandes movimentos sociais do passado nasceram nestes momentos. Mas estes momentos exigem uma organização hábil, a habilidade de usar uma “publicidade profética” para espalhar uma visão humana e a fé que a mobilização em massa possa abrir novos caminhos para a mudança que, a início, parecia distante e improvável.

Para construir a resposta das pessoas à pandemia devíamo-nos basear tanto nas possibilidades da nova tecnologia, que permitem uma acção descentralizada, como em algumas lições, consagradas pelo tempo dos movimentos sociais do passado.

Movimentos sociais são o veículo para a participação em massa

Neste momento, imensas pessoas estão a formular planos de acção e exigências políticas, focando-se em como o governo devia responder ou medidas que aqueles que foram eleitos devem dar como respostas de emergência. Estes incluem planos de Bernie Sanders e Elizabeth Warren, o pedido de Alexandria Ocasio-Cortez por um salário mínimo universal de emergência, e propostas de grupos como o Working Families Party, National Nurses United e muitos colectivos de democracia de base.

O que falta é uma plataforma e uma visão para participação em massa — um meio pelo qual as pessoas se pudessem juntar e colectivamente participar num movimento para criar o tipo de resposta justa que a nossa sociedade precisa. Um movimento pode apoiar, amplificar e preencher os espaços deixados pelo governo e pela infra-estrutura da saúde.

Obviamente, o distanciamento social e o isolamento requerido para abrandar a pandemia apresenta desafios únicos. Primeiro, as pessoas estão limitadas a encontrar-se fisicamente, pelo que muitas técnicas e tácticas tradicionais dos movimentos sociais não podem agora ser accionadas. Contudo isto não devia desviar-nos das coisas que podem efetivamente ser feitas. Desde o apoio mútuo em áreas comunitárias até respostas colectivas de protesto a partir de casa, podemos construir uma resposta poderosa que nos une e usa o nosso esforço para cuidar das nossas comunidades e para redefinir os limites do que é politicamente possível.

Um movimento social de resposta a um grande evento desencadeante emerge frequentemente de lugares inesperados. As grandes organizações baseadas numa estrutura têm recursos e infra-estruturas tais que parece que seriam elas as candidatas naturais a incentivar a população geral a uma resposta. No entanto, eles enfrentam limitações institucionais que os impedem de escalar os seus esforços tendo em conta a enormidade do desafio. Grupos como sindicatos estão frequentemente preocupados em responder ao modo de como a crise afecta os seus afiliados, tornando-os centros essenciais de acção para as pessoas dentro dessas estruturas, mas deixando-os com pouca capacidade de mobilizar pessoas fora dos seus âmbitos, ou para acolher a energia de outros que possam querer envolver-se.

Entretanto, políticos e organizações líderes na área da advocacia estão muitas vezes focados nos detalhes do jogo interno — cuidadosamente atentos, a tentar usar informações privilegiadas para influenciar as decisões que são debatidas a nível local, estadual e federal. Isto é um trabalho importante, mas que não responde ao vazio que existe em termos de mobilizar grandes números de pessoas para mudar o que é visto como necessário e possíveis soluções para a crise. Assim, são muitas vezes grupos fragmentados, descentralizados e até ad hoc que desempenham papéis vitais que moldam as respostas dos movimentos sociais, as quais apenas podem ser apoiadas posteriormente por organizações mais institucionais.

As pessoas já responderam anteriormente

A boa notícia é que há claros exemplos históricos que movimentos sociais conseguiram intervir nos vazios criados pelas crises e já se viram vários casos destes na última década e meia. Quando o furacão Sandy atingiu a costa este [dos EUA] em 2012, o movimento de apoio mútuo Occupy Sandy — que se baseou em redes e infra-estruturas construídas durante o movimento Occupy Wall Street — coordenou milhares de pessoas para uma resposta rápida e eficiente, para providenciar comida e atenção médica para quem necessitava. Para além disso, ainda criou um centro de recolha e distribuição de bens, manteve o registo dos indivíduos que de outra maneira estariam isolados ou abandonados e retiraram detritos da tempestade de casas e ruas. De igual modo, a Common Ground — uma das organizações de apoio mais significativas a formar-se rapidamente e a responder à tragédia do furacão Katrina, em Nova Orleães — trabalhou em alguns dos bairros mais pobres da cidade, implementou clínicas médicas temporárias e reparou casas danificadas.

Mais recentemente, o movimento DREAM que trabalha com comunidades de imigrantes sem documentação, providenciou bens como bolsas de estudo, oportunidades de trabalho e apoio legal a imigrantes a quem foram negados serviços dos governos estadual e federal.

Recordando outra emergência de saúde pública, durante a crise da SIDA nos anos 1980, a comunidade LGBTQ juntou-se para responder à doença e morte de milhares de indivíduos – mesmo quando a sociedade ostracizava as pessoas HIV-positivas e estabelecimentos médicos fechavam os olhos ao seu sofrimento. Grupos como o Gay Men’s Health Crisis em Nova Iorque organizaram a comunidade para angariar dinheiro para investigação, distribuir informação sobre prevenção e tratamentos e fornecer aconselhamento e assistentes sociais para milhares de pessoas em necessidade. Numa altura em que médicos e hospitais estavam sobrecarregados, indiferentes ou mesmo antagónicos, eles intervieram para colmatar essa falha e as necessidades básicas destes doentes.

Ao mesmo tempo, os grupos de afinidade descentralizados do militante ACT UP [n.t.: AIDS Coalition to Unleash Power] trabalharam incansavelmente para aumentar a consciencialização pública sobre a crise, utilizando o slogan “Silêncio igual a Morte”. Rapidamente se tornaram especialistas práticos no impacto que a doença teve na comunidade – confrontando os líderes publicamente, que espalharam desinformação ou que estavam hesitantes em financiar adequadamente a saúde pública, acusando empresas farmacêuticas de estarem mais focados nos lucros que num tratamento humano e insistindo fortemente que os profissionais de saúde estivessem em contacto com os pacientes eles mesmos. No final deste processo, o ACT UP efectivamente alterou a resposta do país à SIDA.

“Eles ajudaram a revolucionar a prática de medicina da América”, escreveu o escritor do The New Yorker, Michael Specter, em 2002. “O tempo médio de aprovação para alguns medicamentos fulcrais caiu de uma década para um ano e alteraram permanentemente e para melhor o modo como se realizavam os estudos com placebos. Rapidamente as mudanças aprovadas para os medicamentos da SIDA foram aprovadas para outras doenças, desde o cancro da mama ao Alzheimer”. Em 1990, o New Yorker Times prestou um relutante tributo a este grupo com um título onde se lia: “Rude, Rápido, Eficaz, a ACT UP muda a abordagem à SIDA”.

Em resposta à actual epidemia do coronavírus, a única solução que tem sido dada à maior parte das pessoas tem sido o distanciamento social e algumas medidas preventivas para abrandar a propagação da doença. Mas se as pessoas verdadeiramente acreditassem que podiam ter um papel significativo numa campanha em massa para cuidar de outros e para pressionar os dirigentes a tomar decisões de emergência humanitárias, podemos estar confiantes que centenas de milhares de pessoas rapidamente se juntariam.

Como fazer acontecer

Se sabemos que precisamos de responder com um movimento social em massa, como é que conseguimos que aconteça – especialmente em tempos de distanciamento social?

Milhões de pessoas estão cingidas às suas casa, impossibilitadas de ir trabalhar. Mas podem certamente agir de duas maneiras: ou se focam em ajuda mútua ou em fazer pressão política baseada numa plataforma de exigências públicas.

Ao nível da comunidade local, um conjunto de voluntários devia esforçar-se por ajudar quem mais necessita e atender às suas necessidades básicas humanas. Há muitas possibilidades para este tipo de acção, mas as prioridades mais imediatas incluem ajudar os mais idosos a obter comida e medicamentos, criar grupos (online ou não) para facilitar a partilha de informação em áreas locais sobre famílias que precisam de ajuda, e criar soluções comunitárias para as necessidades das crianças, que surgem pelo facto de escolas e creches se encontrarem encerrados. À medida que a pandemia se propaga – e particularmente se os hospitais e os sistemas oficiais estiverem sobrecarregados – quer a necessidade, quer o potencial para este tipo de iniciativas vai crescer tremendamente. Iniciativas de base para reunir informação sobre a propagação da doença, para ajudar quem precisa de estar em quarentena, para distribuir informação e bens para promover a higiene pública, e para ajudar com a disseminação e uso correcto de equipamentos de teste vai-se tornar urgente.

Este tipo de actividade já se começa a ver formar. Comunidades pelo país [EUA] estão a criar grupos de Facebook e Google Docs – muitos deles reunidos aqui — para coordenar ajuda mútua. Ao mesmo tempo, inúmeras congregações religiosas, grupos, organizações comunitárias e associações de bairro estão a começar a mobilizar respostas para as pessoas nas suas respectivas áreas. Estas actividades têm um potencial tremendo. Mas para assumirem a posição de movimento precisam do que o antigo organizador do United Farmworkers e o actual impulsionador de movimentos, Marshall Ganz, chamaria de uma “história, estratégia e estrutura” sólidas.

Os organizadores deviam estar à procura de criar meios para os grupos locais partilharem informação e as melhores medidas a tomar. Também deveriam encorajar uma visão e uma mensagem comuns. Em cada exemplo histórico aqui mencionado, foi crucial que os participantes tivessem o sentimento que eram parte de algo maior que apenas a soma dos esforços individuais. Movimentos intencionais que de trabalham para uma união e uma coordenação ajudam a criar esse sentimento.

Para além de ajuda mútua, os movimento em massa com uma história, estratégia e estrutura comuns podem permitir que sejam legitimadas exigências políticas que, de outra maneira, seriam consideradas pouco práticas ou indesejáveis, e obrigar os poderes públicos a adoptá-las. A função dos movimentos de massa não é ir ao pormenor das propostas actualmente em debate no Congresso dos EUA ou em níveis mais locais do governo. A sua função é antes criar um momentum para exigências populares e simbolicamente ressoantes, que formariam a estrutura inicial de uma resposta nacional progressiva – ideias como um salário mínimo de emergência, testes e tratamento gratuitos para todos e suspensão do pagamento das rendas habitacionais e das hipotecas para quem não conseguir pagar durante esta crise.

Um movimento pode avançar com tais exigências com campanhas de acções distribuídas. Como o “distanciamento social” limita algumas das tácticas que estes grupos de base tipicamente usariam, o organizador David Solnit propôs um conjunto de métodos de protesto que podem ser viáveis durante a pandemia do coronavírus, incluindo muitos que as pessoas podem aderir a partir de casa. Algumas delas são comícios transmitidos em directo, a proliferação de mensagens nas janelas e nas portas, chamadas telefónicas, ensino online, publicações nas redes sociais e cacerolazo — bater em uníssono com tachos e panelas, comummente usado em vários movimentos em redor do mundo.

Dadas as actividades que agora decorrem, não temos modo de saber que esforços ganharão tracção ou que infra-estruturas em prol da união se vão consolidar. Mas podemos avaliar as possibilidades que surgiram. Uma das mais potentes é a perspectiva da campanha de Bernie Sanders ser o foco de um movimento de resposta à pandemia. Bernie Sanders construiu uma das maiores e mais sofisticadas campanhas de base na história americana. Eles têm dezenas de milhares de voluntários que conseguem realizar chamadas telefónicas em massa e falar com os seus vizinhos. Também têm mais de um milhão de doadores que estão dispostos a financiar a campanha para ajudar um movimento popular a progredir com a justiça e com a democracia. Se Bernie Sanders decidisse transformar a sua campanha, de uma campanha eleitoral política e presidencial para um movimento em massa de resposta à pandemia e aos seus impactos, um movimento com infra-estructuras poderosas apareceria num abrir e fechar de olhos.

Quer a campanha de Sanders aproveite a oportunidade ou quer apareça uma infra-estrutura alternativa para uma acção colectiva, um movimento em massa para responder à pandemia do coronavírus nunca vem demasiado cedo. Para nosso próprio bem e para bem da nossa sociedade como um todo, deixem-nos ajudar a fazer emergir a solidariedade na nossa sociedade.


Paul Engler

Paul Engler é o director do “Center for the Working Poor” em Los Angeles, director de movimento no Ayni Institute, e co-autor, com Mark Engler, do livro “This Is An Uprising.”

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