A crise desencadeada pelo COVID-19 está a forçar uma intervenção do Estado na economia. Esta intervenção pode seguir vários caminhos. Num extremo uma intervenção na economia que se ambicione ser uma intervenção cirúrgica, mantendo a agenda do lucro, da exploração e do colapso climático. No outro extremo uma agenda pela Justiça Climática, que privilegie as verdadeiras necessidades das pessoas, justiça social e um planeta viável. Para o segundo, uma agenda de nacionalizações que permita uma reconfiguração da economia é um passo essencial.
Enquanto o colapso económico se instala devido à paragem paragem forçada da vida normal, os governos – vacinados pela experiência da grande recessão de há uma década atrás – apressam-se a pôr as mãos à obra. O governo americano vai injetar dinheiro massivamente nas empresas, o governo alemão fala em tornar-se dono de várias, e em Portugal já se discute a TAP voltar totalmente à esfera pública.
A situação da economia tende a agudizar-se, não estando fora de muitas previsões a necessidade de nacionalizações ocorrerem em quase todos os grandes setores. Estas situações não são novas. Recuando, por exemplo, ao pós segunda guerra mundial, só os estados conseguiam investir na economia de muitos dos países beligerantes.
Assim, torna-se quase certa uma onda de resgates massivos por parte de estados a empresas privadas. Resta saber as formas de o fazer e, quanto ao controlo dos destinos das empresas, que caminhos seguir.
Como poderão ser feitos estes resgates?
Atualmente, desenham-se quatro vetores pelos quais as empresas podem ser resgatadas pelos estados.
O primeiro vetor passa por afetar as condições de mercado. Este já foi assinalado como um favorito por parte de Trump para o setor petrolífero. As empresas petrolíferas têm sofrido com a baixa do preço do ouro negro, dado terem stocks gigantes do mesmo nos inventários (comprados a preços mais baixos) e de terem elas próprias participações em explorações. O estado federal americano tem as suas próprias reservas de barris de petróleo, podendo comprar barris de forma a aumentá-las. Abusando deste mecanismo, poderá então comprar os barris suficientes para torná-los mais escassos nos mercados, fazendo os preços destes subirem até as empresas do setor voltarem a ter lucros. Embora este mecanismo não possa ser facilmente aplicado em qualquer indústria – pois é raro estas terem o valor determinado por uma só matéria prima – é politicamente discreto.
O segundo vetor é a subsidiação. Esta já está em marcha. Por exemplo, nos Estados Unidos o estado criou linhas de crédito (empréstimos) para sustentar empresas durante os momentos de pior impacto, com condições mais favoráveis do que conseguiriam no mercado. Já em Portugal, foi atribuído à generalidade das empresas o adiamento por vários meses do pagamento de diversos impostos. É dada a isenção de um pagamento neste momento, mas este tem que ser feito mais à frente. Ou seja, isto acaba por ser o equivalente a um empréstimo, só que sem juros. Surgem também propostas concretas da CIP – chamemos-lhe o sindicato dos capitalistas – como transformar empréstimos existentes em doações de dinheiro sem contrapartidas, ou um prejuízo tornar-se numa isenção de impostos no futuro (ativos por impostos diferidos), por outras palavras, quando as empresas perdem dinheiro o estado passa a compensá-las. Em suma, o estado fornece benefícios a empresas com condições que o mercado nunca concederia, ou concederia apenas com contrapartidas extra, como o controlo direto das empresas. Assim temos subsídios gratuitos.
O terceiro vetor é a banquisação, fazer os bancos chegarem-se à frente com o dinheiro a negócios à beira da falência, provavelmente para os compensar depois com dinheiros públicos. O legado da banca investir em projetos à partida ruinosos não é novo. Em Portugal, podemos recordar o caso do antigo Banco Espírito Santo – entretanto reformulado no Novo Banco – em que a família Espírito Santo, fundadora e de facto gerente, emprestava dinheiro para projetos da família alargada e amigos. Hotéis, empreendimentos, a quase concretizada fusão da Portugal Telecom com a brasileira Oi. A envergadura dos empréstimos foi grande, a viabilidade dos negócios baixa e em grande parte responsável pelo colapso do banco. Olhando mesmo para o banco público, a Caixa Geral de Depósitos, esta tende a atuar grandemente fora de qualquer alinhamento com os interesses públicos, chegando a emprestar dinheiro ao entretanto cronicamente falido empresário Joe Berardo, ou a empreendimentos do próprio Grupo Espírito Santo. Em suma, é frequente a banca fazer empréstimos que na verdade são generosas ofertas a devedores, tão generosas que conduzem à falência dos próprios bancos, ameaçando arrastar toda a economia.
Não será de descartar uma dinâmica similar, a contribuir para o resgate de empresas arruinadas pela crise económica que se avizinha. As empresas em apuros passam a receber empréstimos bonificados dos bancos, que de facto se tornam em generosas ofertas. No entanto pode não ser óbvio porque o farão e ficam por responder duas perguntas.
Qual a motivação para a oferta destes empréstimos? Primeiro, a convergência dos interesses dos bancos com os das empresas em apuros, por terem o mesmo dono/accionista, por exemplo. Segundo, a pressão dos governos, que incentivarão o resgate das empresas em apuros – nestas semanas, várias figuras políticas, como o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e o Primeiro Ministro António Costa, mostraram interesse em ver a banca a lançar-se à economia. Para esses empréstimos acontecerem, a banca necessita de um mecanismo de segurança, o que se liga à segunda pergunta.
Que segurança é que os bancos têm para fazer estes empréstimos ruinosos? Com ou sem resgates a empresas um resgate à banca é provável. A economia em alta retração, o risco de falência de virtualmente todos os credores, o setor imobiliário, do qual a banca depende grandemente, em apuros com o colapso do turismo. O cenário está traçado para o estado ter novamente de resgatar a banca, possivelmente com mecanismos dos tempos da Troika – empréstimos aos bancos a taxas bonificadas, e sem ter grande palavra na gestão destes. Assim, usando fatores de conjuntura económica adversa que ninguém esperaria como justificativos de assistência à banca, o estado poderá assegurar o financiamento necessário, encapotando os prejuízos que a banca poderá sofrer por emprestar dinheiro a empresas inviáveis. O aparelho capitalista consegue, desta forma, resgatar as empresas que deseja, e esconder a sua intervenção.
Por fim, o quarto vetor é a posse direta. Esta passa por entrar na estrutura accionista como qualquer privado, exigindo contrapartidas. Injetando uma dada quantidade de dinheiro, esta terá como contrapartida a atribuição de uma fração da empresa ao estado, passando este a ter participação direta nas suas decisões, e a receber a correspondente parte de lucros futuros.
Estes quatro vetores podem ser usados em conjunto, com soluções diferentes para diferentes empresas, ou fazendo uma combinação destes para a mesma empresa. No entanto, os três primeiros distinguem-se do quarto por uma colossal razão: são prendas aos capitalistas privados, uma nacionalização de prejuízos. Assim, o estado não recebe contrapartidas às quais deveria ter direito face ao dinheiro colocado nas empresas. Compromete-se a uma condição necessária para a condução de uma verdadeira política pública. No entanto, como o caso acima mencionado da Caixa Geral de Depósitos explicita, uma empresa em mãos públicas não é uma condição suficiente para uma política para as pessoas. Esta só poderá ser concretizada com uma gestão virada para as pessoas e não os lucros. Tendo na mira uma política que vise a Justiça Climática, há que estudar as possíveis nacionalizações e os rumos a seguir por cada empresa.
O que devemos exigir das intervenções do Estado?
Uma agenda pela Justiça Climática compreende vários aspetos, como uma transição energética justa, uma verdadeira economia dos cuidados, decisões que envolvam os direitos de todas as trabalhadoras. Abaixo explora-se uma lista de possíveis empresas e setores sob stress e assim possíveis intervenções do estado, e o que seria uma política pela Justiça Climática aplicada a cada uma delas. A lista não ambiciona ser exaustiva, e não será de descartar um colapso generalizado de toda a economia, que torne virtualmente inexistente o que não tem apoio do estado.
Primeiro, a TAP. Com o colapso do tráfego aéreo torna-se inevitável o resgate desta. Face às consequências ruinosas resultantes do tráfego aéreo em escala maciça um re-escalamento de todo o transporte aéreo é crucial. Assim, uma agenda pública para a TAP passaria por redimensionar a empresa, e um encaminhamento das trabalhadoras que ficariam sem empregos para os novos setores de uma economia sustentável.
Em segundo lugar, a GALP. Com o colapso do preço do petróleo torna-se cada vez mais provável a entrada de capital de estados nestas empresas, e a GALP não é exceção. É, portanto, necessário, em primeiro lugar, o abandono gradual das suas atividades tradicionais, ou seja, a produção e exploração de combustíveis fósseis, especialmente no Sul Global. Em segundo lugar, urge aproveitar a estrutura de distribuição existente da GALP – desde armazéns a postos – para a fundação de uma rede de distribuição de energia limpa.
Outra nacionalização muito provável de ser necessária é o aparelho produtivo de componentes de veículos, com ênfase especial a fábrica da Autoeuropa da Volkswagen, em Palmela. Estas fábricas produzem sobretudo componentes de carros, produto cujas vendas se vêem altamente afetadas durante crises económicas como a que se vive. A utilização massiva destes enquanto alimentados por combustíveis fósseis não é compatível com um planeta viável. Assim, o controlo público destas passa pelo desafio de converter a capacidade instalada. Produzindo no imediato transportes públicos sustentáveis e, potencialmente, outros produtos mais à frente. A recalibração da capacidade industrial existente em setores alimentadores da crise climática para uma transição energética é o grande desafio técnico da agenda pela Justiça Climática. Ambicionar recalibrar estas fábricas para outros tipos de produção diferentes – como por exemplo painéis solares – nunca será uma tarefa trivial, mas dada a urgência desta transição, é uma discussão que tem que ser tida o mais cedo possível.
Com ou sem apoio a setores semi falidos, a banca é candidata a necessitar de apoios do Estado. A exposição desta a toda a economia, em especial a setores com grande quebra no momento atual, como o imobiliário – alavancado pelo agora arrasado turismo – implica o reconhecimento de enormes imparidades contabilísticas e assim um grande desafio à capacidade de sobreviver sem a ajuda do estado. Dada a sua natureza abrangente e complexa, as possibilidades quando em controlo desta são vastas e difíceis de explorar. No entanto, podemos estabelecer facilmente os mínimos. Começando pelo bloqueio da concessão de empréstimos a projetos assentes em combustíveis fósseis, e colocação do poderio da banca na concessão de crédito a projetos de energias sustentáveis. Saindo da agenda estritamente climática, e entrando na agenda pela justiça social, a habitação antevê-se como um desafio. Com a quebra de rendimentos das famílias, esperam-se dificuldades para quem comprou casa a crédito, sendo a ação da banca em relação a isso crucial para determinar a magnitude dos despejos.
A construção constitui um setor especialmente vulnerável a crises económicas, dependendo muito da saúde do setor da habitação e da banca. Outrora um setor pujante em Portugal, foi dizimado durante os tempos da crise dos anos da Troika, voltando a pôr-se de pé nos anos seguintes, mas nunca com a mesma dimensão. Não será difícil vê-lo a sofrer com uma nova crise. A pobreza energética, ligada a consumos de energia em habitações, é um grave problema em Portugal. Reflete-se na fraca capacidade de isolamento dos edifícios. Pouco capazes de reter calor nos meses mais frios, forçam ao consumo de elevadas quantidades de energia. Com isto, mais um desafio de engenharia surge: converter a atual capacidade de construção em algo capaz de cumprir a missão de melhorar a eficiência energética de edifícios em todo o país.
O que nos asseguram as nacionalizações?
Estas são apenas uma condição necessária para prosseguir uma política pela Justiça Climática. São inúmeros os casos de empresas públicas a agir no nome de interesses privados, basta relembrar o caso da Caixa Geral de Depósitos mencionado acima. O caminho que empresas públicas seguem depende do contexto social, e neste caso é necessário um contexto que valorize a transição energética, justiça laboral e priorização das verdadeiras necessidades.
Esta discussão incide apenas em empresas existentes, mas uma transição justa certamente precisará de novas entidades. Um exemplo disso seria uma empresa de produção de comboios. Em Portugal estes eram, outrora, feitos pela Sorefame, que foi vendida a gigantes mundiais do setor, e entretanto desmontada, deixado Portugal dependente da conveniência de produtoras internacionais para obter as suas carruagens.
Onde é que isto nos deixa?
Um confronto político intensifica-se. De um lado, a agenda vai oscilar entre a austeridade e as tentativas de deixar o capitalismo no congelador, esperando que ele esteja no mesmo estado quando a poeira do COVID-19 assentar. Do outro, uma agenda pela justiça social, contra a precariedade e a nacionalização dos prejuízos de quem enriquece em tempos de bonança, e a favor da igualdade e sustentabilidade dos ecossistemas.
A necessidade do estado intervir de forma a impedir o colapso desordeiro da economia tem que servir para a configurar para uma agenda pela Justiça Climática, não para a reerguer com capitalismo selvagem e extrativo. Assim, a aposta deve ser em dispensar a parte da economia que apenas serve para alimentar o lucro, e reconfigurar a parte que realmente importa, de forma a esta funcionar em moldes sustentáveis. O sucesso desta agenda não se esgota com a coletivização de empresas nacionalizadas, mas certamente passará por aí.