Alimentação e epidemias: a receita do apocalipse – Cláudia Almeida e Carla da Silva Pereira

Assente em monoculturas intensivas e num mercado de trocas internacionais, a atual configuração do setor alimentar é altamente propícia à propagação de doenças. Sabemos que 70% das novas doenças têm origem animal. Pode a exploração agropecuária ser a principal responsável pela disseminação de epidemias?


Os sistemas modernos de produção de alimento, assentes na progressiva industrialização e centrados na maximização de meios e recursos, baseiam-se numa crença falaciosa de que é legítimo dominar a terra e os ecossistemas. A criação de animais — na essência, a subjugação de outras espécies, outros seres vivos sencientes — é o arquétipo desta ideia megalómana. O mito do domínio humano sobre os elementos tem originado efeitos perversos e imprevisíveis que, fundamentalmente, nos estão a transmitir aquilo que, enquanto Humanidade, nos é tão difícil de aceitar: não só os elementos naturais obedecem a leis que nos transcendem, como não podemos ser nós a determinar e a impor as condições de vida das outras espécies, a exaurir os recursos naturais para nosso exclusivo benefício e a alterar completamente a paisagem do planeta.

E isto é particularmente relevante em relação à exploração agropecuária intensiva: não só há uma utilização excessiva dos recursos, com consequências desastrosas para o equilíbrio dos ecossistemas, como se desrespeita a ecologia dos próprios animais que são criados para consumo humano. A indústria alimentar, ao tentar equiparar a criação de animais e a produção de bens de consumo, meros produtos ou mercadorias, demonstra, não só uma profunda falta de compreensão relativamente ao papel que os animais desempenham nos ecossistemas, como uma arrogância desmedida ao atribuir ao ser humano o direito supremo de governar sobre todas as coisas e todos os seres, negando-lhes o direito à liberdade e à vida, a ponto de decidir de quantos centímetros necessitam para crescer e viver ou decretar a data da morte a um ser antes de este nascer.

Tal incompreensão tem consequências catastróficas. Em Big Farms Make Big Flu, o investigador Rob Wallace diz-nos, essencialmente, que o processo industrial de criar animais levou à disseminação dos patógenos (agentes causadores de doenças) que circulam nos animais. Isto significa que a criação industrial de animais é terreno fértil para bactérias e vírus que, devido ao comércio internacional e à cada vez menor diversidade genética na agropecuária, se têm tornado mais virulentos e mais rápidos no contágio, atingindo amplas áreas geográficas.

Os cientistas estimam que mais de 6 em cada 10 doenças infecciosas conhecidas podem ser transmitidas por animais, e 3 em cada 4 doenças infecciosas novas ou emergentes têm origem em animais. O número e frequência de surtos aumentou, e a taxa de transmissão para seres humanos passou a ser duas a três vezes mais frequente a partir de 1940. No relatório de 2013, a FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura) lançava um alerta muito claro e inequívoco: a partir de 1940, 70% das novas doenças que apareceram em humanos são zoonoses, ou seja, tiveram origem em animais. É o caso da gripe aviária (ou gripe das aves), do ébola e do MERS (Síndrome Respiratório do Médio Oriente). As notícias dão conta de que a peste suína africana, uma doença extremamente contagiosa e mortífera, que, na República Popular da China (o maior consumidor de carne de porco do mundo), depois de uma sucessão de violentos surtos, determinou a morte de milhões de porcos, está agora presente em mais de 50 países, incluindo a Europa, e os mais recentes estudos apontam para a possibilidade de ocorrer uma mutação no vírus e de este se tornar perigoso para os seres humanos. O aviso da FAO revela-se, assim, mais atual do que nunca: quando surgem novos surtos de doenças, os governos, os canais de comunicação e a maior parte dos estabelecimentos de saúde centram-se nas emergências específicas e negligenciam as causas estruturais que conduzem ao aparecimento e disseminação dos vírus ou bactérias.

Os vírus sofrem rápidas e sucessivas mutações, aumentando a sua taxa de mortalidade e de contágio e dado o seu poder adaptativo, as bactérias demonstram uma cada vez maior resistência aos antibióticos que, com fins profiláticos ou como promotores de crescimento, são administrados indiscriminada e regularmente aos animais — a salmonela e a Campylobacter são dois exemplos de bactérias que têm desenvolvido implacável resistência a vários medicamentos. Os antimicrobianos são usados para prevenir e combater doenças em plantas e em animais aquáticos e terrestres; e só a agropecuária recebe aproximadamente 70% do total de antibióticos e medicamentos afins. A omnipresença dos medicamentos na cadeia alimentar provoca, como resposta, o aumento da resistência das bactérias. Graças à ingestão de animais, verifica-se também no nosso próprio organismo uma crescente resistência bacteriana. Segundo o relatório do IACG (Grupo Ad Hoc de Coordenação Interagências para a Resistência Antimicrobiana), de abril de 2019, as doenças resistentes aos medicamentos matam pelo menos 700 mil pessoas por ano, e estima-se que, em 2050, se nada se alterar, sejam responsáveis pela morte 10 milhões de pessoas por ano. A utilização excessiva de antibióticos está na origem do aparecimento de superbactérias multirresistentes, que acabam por ser transmitidas aos seres humanos através da manipulação ou consumo da carne de animais infetados — é o caso da Escherichia coli, o uropatógeno mais resistente da atualidade. As bactérias resistentes podem também desenvolver-se na natureza, e as nossas ações invasivas favorecem o aparecimento e propagação de micro-organismos resistentes. O produto resultante das lagoas anaeróbias e o chorume, por exemplo, nas explorações pecuárias, são aproveitados como fertilizantes, o que representa graves consequências: a assimilação de antibióticos e outros medicamentos nas terras resulta na poluição das águas e na progressiva acidificação e erosão do solo, contaminando os ecossistemas e, logo, toda a cadeia alimentar.

A resposta das autoridades competentes tem passado apenas pela prevenção, através do acompanhamento e supervisão da produção pecuária, com a obrigatória administração de antibióticos e outros medicamentos. A criação para consumo (e outras utilizações) de camelos, galinhas, vacas, porcos etc. não só se manteve como aumentou, e o modo de controlar e limitar novos surtos é, além da administração de medicamentos, o abate sanitário em série, o que significa a morte de muitos milhões de animais por ano. Ou seja, os vírus continuam a reproduzir-se e a circular nos animais criados para consumo, podendo, a qualquer momento, adaptar-se, infetar o ser humano, tornar-se transmissíveis entre seres humanos e originar uma pandemia. Na ausência de vacina, o tratamento possível é empírico. Os próprios testes e métodos que conduzem à descoberta de tratamentos e vacinas acabam por penalizar ainda mais os animais, criando, para eles, um círculo vicioso sem escapatória. O problema, porém, mantém-se, repete-se, ganha novas formas, novas estirpes, porque nunca é abordado e combatido na raiz.

A diminuição drástica da diversidade genética dos produtos alimentares que entram no mercado, fruto de séculos de manipulação e seleção genética, potencia o contágio e facilita enormemente a expansão geográfica das doenças. A pressão do melhoramento genético com vista a aumentar a produção, quer de carne, quer de leite, sobretudo, tem gerado populações com grande inter-relação genética, afetando seriamente a saúde dos animais. A criação, ou exploração, assente em sistemas de produção com grande número de animais da mesma espécie confinados ao mesmo espaço, interior ou exterior, faz com que um vírus ou uma bactéria capaz de derrubar as defesas imunológicas consiga rapidamente contagiar um grande número de animais. As fracas condições de higiene e, sobretudo, a grande concentração de animais numa mesma exploração contribuem para, por um lado, a diminuição da imunidade dos animais e, por outro, a velocidade de transmissão dos vírus. No fundo, a atual configuração da indústria alimentar, de caráter intensivo, assente na criação e consumo de animais de toda a espécie, e com cada vez menor diversidade genética, é a forma de produção de alimentos mais propícia à eclosão de epidemias.

A indústria alimentar, monopolista e centrada no lucro imediato, aceita com tranquilidade o risco de transmissão de doenças mortais para os seres humanos e prossegue os seus projetos de conquista mundial. A força e o poder do agronegócio, que depositou o controlo do sistema alimentar, incluindo a manipulação da informação nutricional que chega aos consumidores, nas mãos de um punhado de multinacionais, assentam precisamente na manipulação genética, apresentada como solução para todos os problemas alimentares. Investimentos públicos e privados na produção agropecuária empresarial dificultam cada vez mais a sobrevivência dos pequenos produtores, com saberes ancestrais e culturas diversificadas. Desequilibrados os ecossistemas e derrubadas as fronteiras com a globalização, os patógenos, antes circunscritos a pequenas áreas geográficas, ganham liberdade para avançar, atingindo primeiro as populações locais de seres humanos e outros animais, e depois, devido ao comércio internacional, os grandes centros urbanos.

No entanto, o problema não reside apenas no âmbito da saúde pública. A indústria alimentar desempenha o papel principal em muitas outras problemáticas modernas. A interferência humana nos ecossistemas, com a impiedosa desflorestação para construção de estradas, alargamento dos centros urbanos e habitacionais, extração de madeira, criação de monoculturas de cereais destinados à alimentação dos animais e construção de habitats artificiais, cria as condições perfeitas para o rápido contágio e propagação dos vírus. Por outro lado, a utilização desmedida de pesticidas e fertilizantes químicos e os regimes de monoculturas causam a erosão dos solos, tornando-se o cultivo cada vez mais difícil, o que conduz à crescente aplicação de substâncias tóxicas. A expansão predatória da produção industrial engole pequenos produtores, criando enormes desafios sociais para uma parte da população que sempre viveu da terra e que tem conhecimentos valiosos. A criação intensiva e industrializada de animais esbarra violentamente contra a nossa empatia inata, e gera e mantém animais em condições indignas, ignorando as suas necessidades mais básicas, incluindo o facto de, como nós, serem seres que estabelecem laços afetivos com elementos da própria ou de outra espécie. A agropecuária intensiva, e em particular a exploração pecuária, é um dos setores-chave no agravamento da crise climática, devido à desflorestação, à emissão de gases com efeito de estufa, em especial no que toca aos ruminantes, e ao transporte de alimentos a longas distâncias, completamente desnecessário e irracional.

O setor alimentar é, neste momento, uma indústria sem escrúpulos, destrutiva, centrada no lucro imediato, partilhando a mesma linhagem das indústrias mais poluentes e injustas da nossa economia mundial, como a dos combustíveis fósseis. Insistir neste caminho é garantia de mais epidemias mortais, mais fome, diminuição da área de solo cultivável, perda de soberania alimentar e aumento da insegurança alimentar. Contudo, há alternativas. Um novo sistema alimentar terá de contemplar e incorporar aquilo que realmente é importante na produção de alimentos: a saúde, o equilíbrio dos ecossistemas, a empatia, a ética, o respeito por todas as formas de vida, a valorização dos conhecimentos ancestrais sobre os elementos e a capacidade de alimentar as próximas gerações, com a necessária redistribuição dos recursos. Quando nos concentramos no que realmente importa e, finalmente, rejeitamos a tirania que temos vindo a praticar sobre os outros animais, começa a emergir um novo paradigma alimentar, assente em formas de produzir alimentos que unem a economia e a ecologia, na valorização do mercado local, dos produtos e dos produtores autóctones, na soberania popular, na preservação do equilíbrio dos ecossistemas e na diversidade de culturas.


Principais fontes consultadas:

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