Artigo originalmente publicado na Vice, em 09/04/2020 por David Gilbert
Jaulas para cães, repressão, censura, vigilância, poderes policiais reforçados… Os partidários do autoritarismo estão a ter o seu momento
Enquanto a maioria dos governos em qualquer parte do mundo enfrenta a crise do coronavírus, que não tem precedentes, a fazer o que é necessário para proteger os seus cidadãos e as suas economias, dezenas de outros governantes estão a aproveitar este momento como uma oportunidade para aumentar a repressão e para consolidar os seus poderes.
Líderes autoritários, da Bielorrússia à Venezuela, procuraram todos aproveitar o surto – e o caos que se seguiu – para dar a si mesmos novos poderes extraordinários, enquanto eleições são adiadas ou forçadas a serem realizadas, dependendo do que seja mais conveniente aos governantes em exercício. As forças de segurança foram autorizadas a realizar repressões brutais, a liberdade de expressão foi censurada e a privacidade foi erodida.
“Governos em todo o mundo, sejam eles regimes autoritários consolidados, como a China e a Rússia, ou países que estão prestes a tornar-se menos livres, tais como a Hungria e as Filipinas, estão a explorar a crise por forma a expandir os seus poderes e a minar os direitos humanos”, disse Allie Funk, analista investigador de tecnologia e democracia na Freedom House, ao VICE News. “E à medida que a pandemia se agrava e se alastra para muitos outros países no sul global, [veremos] que esta é apenas a ponta do iceberg.”
Os países ocidentais estão a ter de lidar também com a necessidade de aligeirar as restrições à invasão da privacidade, com objectivo de rastrear a propagação do coronavírus através de aplicações de vigilância que, em tempos normais, seriam considerados ultrajantes.
Assim que a verdadeira natureza global da crise foi exposta no mês passado [março de 2020], peritos em direitos humanos da ONU alertaram os líderes mundiais para não explorarem o momento.
“Para evitar que tais poderes excessivos sejam incorporados aos sistemas legais e políticos, as restrições devem ser desenhadas com objectivos específicos e ser o menos intrusivas possível nos programas de proteção da saúde pública”, afirmaram os peritos da ONU, que acrescentaram: “Encorajamos os Estados a permanecerem firmes na manutenção de uma abordagem baseada nos direitos humanos para regular esta pandemia, a fim de facilitar o surgimento de sociedades saudáveis, compatíveis com o Estado de Direito e a proteção dos direitos humanos”.
Segue-se uma lista (não exaustiva) de 30 países que não consideraram o alerta da ONU:
Rússia: Muitos países introduziram mecanismos de rastreamento e vigilância para tentar parar a propagação do coronavírus, mas o plano de Vladimir Putin eleva as coisas a um nível totalmente novo. O sistema de monitorização resultante colectaria dados de (respirar fundo): aplicações de rastreamento de localização, câmaras de CCTV com reconhecimento facial, códigos QR, dados de telemóvel e dados de cartão de crédito. O Kremlin está a preparar-se para lançar os novos planos no início da próxima semana. Um partido de oposição já classificou as medidas como um “cyber-gulag”, alertando que as restrições permanecerão em vigor mesmo após o fim da pandemia.
Camboja: O projeto de lei de emergência de Hun Sen é uma “receita para ditadura”, de acordo com a Human Rights Watch. A “Lei do estado de emergência” apresenta dispositivos que permitirão ao governo censurar todos os meios de comunicação e redes sociais, monitorizar todas as comunicações telefónicas, e há até mesmo uma cláusula adicional que permite introduzir qualquer nova lei que possam pensar. E, claro, as novas medidas não terminarão quando a situação de emergência do coronavírus acabar.
China: Pequim não precisou da desculpa do coronavírus para vigiar os movimentos de seus cidadãos online e offline mas aproveitou a oportunidade para impor uma nova aplicação de vigilância codificada por cores projetada para dizer se um cidadão estava livre para viajar ou não. E, claro, a aplicação envia à polícia todas as informações colectadas.
Filipinas: Por onde começar? O presidente Rodrigo Duterte ordenou que as autoridades policiais e militares “atirem para matar” membros da oposição e manifestantes que se opõem às suas rigorosas medidas de bloqueio. A polícia prendeu pessoas em jaulas para cães por violarem o toque de recolher, enquanto um capitão da polícia forçou pessoas LGBTQ+ a beijarem-se em público e fazerem uma “dança sexy“ com transmissão ao vivo no Facebook.
Uganda: O governo invadiu um abrigo para pessoas LGBTQ+ e deteve 20 pessoas, alegando que estavam a violar as regras ao fazerem reuniões com mais de 10 pessoas. O incidente marca uma tendência crescente do uso de brutalidade policial excessiva para impor o confinamento rigoroso no país.
Polónia: O atual regime procura forçar a eleição presidencial no próximo mês, apesar da proibição de realização de campanha devido à crise na saúde — um movimento que a oposição diz ser altamente favorável ao atual presidente Andrzej Duda.
Gana: O presidente Nana Akufo-Addo introduziu novos poderes draconianos que não têm cláusula de caducidade e nem sequer mencionam a COVID-19 na legislação. “A nova lei confere-lhe uma arma carregada para usar como desejar, especialmente para restringir os movimentos das pessoas”, disse à BBC Ras Mubarak, deputado da oposição do Congresso Democrático Nacional.
Bielorrússia: Diferentemente da maioria dos líderes desta lista, o presidente Alexander Lukashenko está a adotar uma abordagem mais relaxada em relação à pandemia de coronavírus. Em vez de um confinamento, Lukashenko está a ameaçar a vida dos seus cidadãos através da manutenção das fronteiras abertas do país aberto e pela defesa de saunas quentes, trabalho nos campos e vodca, “para limpar suas mãos e suas entranhas”. Mas a abordagem do presidente não está a funcionar e o Ministério da Saúde informou um aumento dos casos no país esta semana.
Venezuela: O presidente Nicolás Maduro não está permitir que alguém questione se o país está preparado, ou não, para lidar com o coronavírus. De acordo com a Reuters, as autoridades em Caracas tentaram prender sete pessoas que criticaram a preparação do governo para lidar com o coronavírus.
Tailândia: Enquanto o rei tailandês se isolou no seu luxuoso resort suíço, o primeiro-ministro Prayuth Chan Ocha pode agora arbitrariamente impor confinamentos e censurar os meios de comunicação social, graças a novas leis de emergência. Jornalistas já foram processados e intimidados por criticarem a resposta do governo ao surto pandémico.
Chile: A decisão do governo de decretar um “estado de calamidade” pode ter sido uma resposta à pandemia de coronavírus, mas teve o benefício adicional para os governantes do país de silenciar dissidências e protestos explosivos, enviando os militares para as ruas.
Bolívia: No mês passado, a presidente interina Jeanine Áñez emitiu um decreto que grupos de defesa de direitos humanos consideram excessivamente amplo, permitindo ao governo processar qualquer indivíduo que critique as políticas governamentais, violando o direito à liberdade de expressão.
Israel: O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu aprovou o uso de dados confidenciais de telemóveis para rastrear o surto de coronavírus. As informações altamente personalizadas, originalmente desenvolvidas para o contraterrorismo, serão usadas pela agência de segurança interna. Aqueles que violam as regras de quarentena domiciliária enfrentam penas de prisão até seis meses. Netanyahu também ordenou o encerramento de todos os tribunais, o que significa o adiamento do seu próprio julgamento relativo a acusações de corrupção.
Bangladesh: O governo de Dhaka reprime qualquer crítica relativamente à sua resposta à pandemia. Nas últimas semanas, foram presas pelo menos doze pessoas, incluindo um médico, ativistas da oposição e estudantes, pelos seus comentários sobre o coronavírus, a maioria delas pela aplicação da draconiana Lei de Segurança Digital.
Sérvia: A primeira-ministra Ana Brnabić aprovou um decreto que deu ao governo controle total sobre a informação durante a crise, ao mesmo tempo em que elogiava a repressão da China durante o coronavírus. Apenas após um repórter ter sido preso pela cobertura da situação num hospital na cidade de Novi Sad, Brnabić revogou a ordem.
Mianmar: As autoridades de Mianmar usaram o coronavírus para expandir a censura à informação através do bloqueio de centenas de sites em nome do combate à desinformação. Mas o bloqueio inclui os sites de agências de notícias étnicas registadas, incluindo várias no estado de Rakhine, onde o governo já restringiu severamente o acesso à internet. Além disso, três artistas de rua foram presos depois de influentes budistas da linha dura dizerem que uma imagem retratando a figura sombria do Ceifador [simbolo da morte] espalhando o vírus, parecia um monge budista.
Quênia: Ativistas mostraram-se muito preocupados em relação aos novos poderes que a polícia tem, para impor medidas de bloqueio no Quênia. Essas preocupações aumentaram quando um adolescente olhando para fora da varanda de sua casa, foi baleado e morto por policiais que estavam a impor o confinamento. “Eles vêm aos gritos e batendo-nos como animais e nós somos cidadãos cumpridores da lei”, disse Hussein Moyo, pai de Yasin, o menino que foi baleado. Policiais também dispararam gás lacrimogêneo contra os passageiros de um ferry e foram filmados a atacar pessoas com cassetetes.
Paraguai: Pessoas que violaram regras de quarentena foram obrigadas a fazer exercícios de ginástica enquanto ameaçadas com armas de eletrochoques. Outros tiveram de repetir: “Eu não vou sair de casa de novo, oficial”, deitados de bruços no chão. Vídeos das punições — gravadas e compartilhadas pelos próprios oficiais — foram elogiados pelo ministro do Interior do país, Euclides Acevedo: “Eu dou-lhes os parabéns. Não tenho a mesma criatividade daqueles que estão a fazer os vídeos”.
Turcomenistão: O país, classificado como o último no Índice Mundial de Liberdade de Imprensa 2019 dos Repórteres Sem Fronteiras, está a adotar uma abordagem única para a pandemia: ignorá-la. Apesar do vizinho Irão estar a sofrer enormes baixas, o Turcomenistão é um dos últimos países do mundo a não ter casos notificados de coronavírus. Em vez disso, o presidente Gurbanguly Berdimuhamedov está supostamente a orientar a polícia para prender cidadãos que discutam publicamente a pandemia.
Egito: No Cairo, onde o presidente Abdel Fattah el-Sisi foi acusado de minimizar a extensão do surto de coronavírus, o governo revogou as credenciais de dois jornalistas por estes terem relatado que, de acordo com estimativas de epidemiologistas canadenses, as infecções por coronavírus no Egito teriam ultrapassado os 19.000 casos.
Hungria: Victor Orban aproveitou-se realmente da situação de emergência. Ele não apenas introduziu uma legislação que lhe permite governar por decreto, como também se esqueceu de colocar uma cláusula de caducidade na legislação. Isso significa que só ele pode decidir quando os seus novos poderes chegarão ao fim – embora certamente tenha sido apenas um lapso…
Iémen: O presidente Abd Rabbu Mansour Hadi está a adotar uma nova abordagem de combate ao coronavírus: impedir a publicação de jornais. No mês passado, o ministro das Comunicações, Muammar Al-Aryani, emitiu um decreto que afirma: “A publicação de jornais governamentais e jornais privados ‘impressos’ será suspensa e apenas versões digitais serão publicadas”. Decretos semelhantes foram emitidos em Omã, Jordânia e Marrocos.
Emirados Árabes Unidos: O Gulf News informou na semana passada que “pessoas que fazem circular rumores podem ser presas por um ano, se espalharem informações falsas”. Ativistas de direitos temem agora que a COVID-19 possa ser usada como pretexto para prender alguns dos bloggers e activistas da Internet que são alvo do Aparelho de Segurança do Estado.
Irão: Um dos países mais atingidos pelo surto de coronavírus, o Irão já reportou mais de 4.000 mortes até agora. Mas críticos do governo dizem que o número é muito superior. No meio desta crise, o governo lançou uma aplicação que afirmava diagnosticar o coronavírus. Em vez disso a aplicação enviava dados de localização em tempo real dos utilizadores para o Ministério da Informação — sem qualquer explicação sobre a utilização desses dados, sobre quem teria acesso a eles e por quanto tempo seriam armazenados.
Armênia: O Parlamento em Yerevan aprovou, na semana passada, uma nova lei que dá às autoridades poderes de vigilância muito amplos sobre o uso de dados dos telemóveis para rastrear os casos de coronavírus. A lei também dará às autoridades acesso a informações médicas confidenciais relativas às pessoas expostas ao vírus.
Coreia do Norte: Kim Jong Un, como seu homólogo no Turcomenistão, está a optar pela negação para lidar com a pandemia. Oficialmente, a Coreia do Norte não teve infecções e tentou bloquear as suas fronteiras com o resto do mundo para impedir a propagação do coronavírus. No entanto, há relatos de que centenas de soldados já morreram de COVID-19. Com um sistema de saúde classificado entre os piores do mundo, especialistas temem que Pyongyang esteja mal equipada para lidar com o surto. As negações de Kim agravam a situação.
Índia: A Índia tem sido fortemente criticada pela forma como tratou as suas dezenas de milhões de trabalhadores migrantes durante o bloqueio do coronavírus. Mas o mais preocupante, para os defensores da privacidade, é a explosão de novas aplicações projetadas para recolher dados biométricos dos cidadãos, sem a implementação de qualquer estrutura legal ou de fiscalização. Uma aplicação que está a ser implantada em Karnataka, um estado no sudoeste da Índia, força as pessoas em quarentena domiciliar a carregar uma selfie a cada 30 minutos, para garantir que estão cumprindo as regras de auto-isolamento.