Capitalismo Multiplica a Crise do Confinamento – Fragilidade, Crises e Finança – João Reis

Com boa parte das trabalhadoras enviadas para casa devido ao Coronavírus, a atividade económica por tudo o mundo está parcialmente suspensa. O senso comum poderia esperar que uma pausa parcial durante alguns meses tivesse como reflexo um rápido restabelecer da normalidade, no entanto a forma como as economias capitalistas funcionam – assentes numa financeirização colossal – são um fator multiplicador de qualquer convulsão. Assim, o que já é conhecido como o Grande Confinamento arrisca-se tornar numa crise sem precedentes, tornando a grande crise financeira originada no inicio deste século numa mera anã.

Lê a primeira parte deste artigo para saber mais sobre o que se tem passado nas economias.

O sistema económico não está talhado para fazer face às necessidades das pessoas, está sim o lucro dos mais ricos. Isto reflete-se em várias contradições e na miséria e exploração de trabalhadoras. Um fator ominipresente no capitalismo são as crises – períodos de instabilidade económica, com a quebra de indicadores como a produção, rendimentos, níveis de emprego, comércio internacional. Entre ciclos de investimento de Juglar, ciclos de construção de Kuznets e as ondas de Kondratiev, ciclos de crédito de Minsky, as explicações para estas são várias. Mas mesmo não nos debruçando em detalhe sobre todas estas, um fator é incontornável: são uma parte integral do capitalismo, e têm-se tornado cada vez mais frequentes e intensas, face à forma cada vez mais financeirizada e globalizada do capitalismo. Assim, temos um sistema optimizado para o lucro e acumulação, com o interesse dos mais ricos a colocar considerações de estabilidade e segurança para segundo plano.

O Business as Usual do lucro passa por ignorar a incrível fragilidade do capitalismo, e apresentar as crises como um choque exógeno – de origem externa, contornando qualquer discussão sobre o que sistema gera as crises e as amplifica. Quando a crise tem se ser paga, e as questões debruçam-se para a origem desta torna-se necessário encontrar culpados, como quem supostamente tem vivido acima das suas possibilidades, ou quem escolheu proteger parte da população, sacrificando com isto a “economia”.

Fenómenos económicos disruptivos como o COVID-19 são uma certeza, sendo o quando destes a maior dúvida. O Coronavírus é apenas o fósforo que apareceu numa casa regada de gasolina. Tal como as tensões geradas pelo sistema político antes do eclodir da primeira guerra mundial foram trazidas ao de cima pelo assassinato de um político sem especial relevância, o abanão que o Coronavírus traz dá o tiro de partida para a implosão económica.

A crescente interligação do sistema económico mundial – incentivada por critérios de eficiência económica, mas em boa parte justificada para aumentar a mobilidade do fator capital em relação ao fator trabalho – faz com que uma crise local tenha um enorme potencial de se tornar numa crise global. Com a dependência de linhas de abastecimento cada vez mais complexas e esticadas, toda a cadeia fica sujeita a colapsar face a uma única quebra. Dados recentes, mostram que mesmo quando a epidemia existia apenas na China, a quebra económica já se alastrava por todo o mundo. À medida que a COVID-19 se vai espalhando por vários países, cada onda de choque local é expandida, gerando uma sucessão de disrupções por todo o globo em simultâneo. Embora esta dinâmica seja fulcral, a financeiriziação ainda é mais avassaladora.

A financeirização já existia antes do capitalismo, sofreu várias metamorfoses, e encontra-se argumentavelmente mais presente do que nunca. Após as primeiras rondas de grandes excessos financeiros modernos, com o crash de 1929 que precedeu a Grande Depressão dos anos 30 a finança mundial foi domada, com severas restrições às operações que podiam ser efetuadas. No entanto, a partir dos anos 70, auxiliada pelo fim da conversão do dólar americano por ouro, a regulação financeira voltou a pender para o lado dos bancos e dos lucros. Securitizações, derivados financeiros, ratings, leasings, trading de forex, ganharam espaço, tornando os mercados financeiros numa criatura de cada vez maior complexidade, mas sem sombra de dúvida cada vez mais perigosa.

O economista do século XX, Hyman Minski, enfatisava o papel da dívida sobre o ciclo económico, explicitamente afirmando: dívida gera fragilidade. Mesmo em relação à grande depressão chegámos ao Grande Confinamento com esta a bater novos records. A nível mundial esta não parou de aumentar. Comparando com Setembro de 2008 – a eclosão da Grande Recessão – em Dezembro de 2019, a de empresas financeiras subiu 13 por cento em pontos percentuais face ao PIB, enquanto a dívida de governos subiu 30 por cento na mesma medida.

 

Esta marcha ascendente da dívida é função da desregulação e complexificação dos mercados financeiros, que se traduziu na expansão de uma banca voltada para si mesma, lucrando ao jogar no seu casino interno, e aumentando a fragilidade de toda a economia, com malhas de dívidas a interligar os atores económicos. Em vez de situações em que A deve a B e B deve a C, passou-se a ter situações em que A deve a B e B deve a C, mas D pediu dinheiro emprestado a E para poder apostar com F que A não vai conseguir pagar a B, e para E poder pagar o direito a apostar pediu dinheiro a A. Enquanto sucessivas malhas de interligações permitiram aumentar o valor do dinheiro em ativos financeiros via multiplicação monetária, todo o sistema tornou-se dependente de cada agente não falhar com os seus pagamentos, caso contrário infetando todos os que o rodeiam.

Entretanto, a opacidade na economia disparou, dada a crescente abstração das transações financeiras, e o recuo das entidades públicas no controlo da fiabilidade destes transações deixou um papel cada vez maior para as entidades de auditoria e rating. As empresas privadas de auditoria fiscalizam a contabilidade de outras empresas privadas, sendo a sua aprovação tratada como lei. As agências privadas de rating avaliam produtos financeiros e atribuem-lhes notas, num eixo que vai desde produtos à beira da falência, a outros impossíveis de falir. Em ambos os casos, o que poderia correr mal? Como quem paga manda, e quem paga pela fiscalização são as próprias empresas a ser fiscalizadas, os sistemas de avaliação passaram a não ser muito mais do que uma forma de fazer dinheiro. Bons exemplos disso são os casos da KPMG, que sucessivamente aprovou as contas precárias do posteriormente falido Banco Espírito Santo, ou das agências de rating a nível global que aprovaram empréstimos impagáveis como um ativo financeiro sólido.

Enquanto isso, sucessivos mercados foram financeirizados. Petróleo, cobre, habitação, todos os mercados possíveis foram penetrados por atores financeiros, desejosos de encontrar mais um lugar para onde expandir as práticas de casino, acompanhadas de enormes alavancagens em dívida, e fazendo vibrar os preços a cada operação especulativa efetuada.

Até a intervenção do Estado para estabilizar as economias foi financeirizada, recorrendo cada vez mais a baixas das taxas de juro ao invés de estimular gastos na economia através dos orçamentos de estado. Quando estas taxas alcançaram valores próximos de zero, os Estados começaram a recorrer a práticas inconvencionais, como o Quantitative Easing. Este passa pela compra de ativos financeiros no balanço dos bancos por parte dos bancos centrais, por preços que façam subir o seu valor de mercado. Isto tem como resultado o aumento da capacidade dos bancos para investir na economia, criando no entanto valores de ativos artificialmente altos.

Este processo de financeirização foi acompanhado por uma crescente concentração do setor bancário, sendo a indústria financeira dominada por um conjunto cada vez menor de bancos. Olhando a longo prazo especificamente para o panorama dos Estados Unidos da América, em 1970 os 5 maiores bancos detinham 17 por cento dos ativos financeiros de toda a indústria, em 2010 este número era 52 por cento. À medida que as crises se foram sucedendo, vários bancos foram colapsando e os sobreviventes foram engolindo as suas carcaças. Isto permitiu que esses poucos atores ganhassem hegemonia sobre os mercados, sendo cada vez mais capazes de os dominar através da sua dimensão. Como não poderia deixar de ser, isto foi acompanhado por uma galopante influência do setor financeiro na política, passando este quase a escrever as próprias leis que o regulavam.


Tudo isto somado resulta numa finança pronta a tomar posições lucrativas em tempos de bonança, supostamente protegida de catástrofes por ferramentas tecnocráticas. Apesar de úteis e inteligentes, essas ferramentas naturalmente possuem as suas limitações, normalmente ignoradas. O resultado são decisões aparentemente lucrativas em cenários normais, mas desastrosas no surgimento qualquer fator anómalo. Tudo é construído ignorando princípios básicos de análise de risco, e a qualquer abanão mais intenso todo edifício estar pronto a desabar. Não será estranho ver algum jogador num casino a tomar decisões imprudentes e a arruinar a sua situação financeira. Já os mercados financeiros, entranhados em quase toda a atividade económica, arrastam economias inteiras com as suas más jogadas.

Se a finança é assim tão má, como continua a sobreviver? Resgates. Quer pelas borlas que os bancos centrais lhe dão – neste momento a Reserva Federal Americana colocou os juros cobrados aos bancos a zero por cento; quer pelos dinheiros dos orçamentos de estado – são inúmeros os resgates milionários oferecidos pelos estados com dinheiros públicos. Temos então um setor sustentado por drenar a sociedade, cobrando-lhe nos colapsos a fatura dos seus tempos de prosperidade, sendo marcado pela sua capacidade de influenciar as decisões políticas para se sustentar.

Para já, o colapso do sistema financeiro foi impedido pela intervenção massiva dos bancos centrais, em especial da Reserva Federal Americana salvou os mercados financeiros, e toda a economia que depende destes do colapso, com um plano de intervenção nos mercados sem precedentes. Somando todas as compras dos bancos centrais dos Estados Unidos da América, Zona Euro, Japão, Reino Unido e Canadá, o valor em Março deste ano foi quase 5 vezes superior ao valor de Abril de 2009, o anterior record. Fica para desvendar nos próximos meses se esta intervenção foi suficiente para travar a hecatombe financeira.

Quer no clima via emissões, quer na finança via riscos especulativos, o capitalismo opera externalizando os custos dos seus lucros à sociedade. No fundo, a voracidade pelo lucro molda as estruturas da sociedade e da economia, impedindo a resiliência para enfrentar os desafios que surgem. Quer pela incapacidade de não entrar em colapso para sobreviver ao confinamento imposto pelo COVID-19, quer de contemplar a crise climática como o cataclismo que esta representa, o capitalismo não se só se posiciona como veículo de domínio e exploração, como também frágil e incapaz de reagir a crises.

 

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Facebook
Twitter
Instagram
RSS
Flickr
Vimeo
Climáximo