O capitalismo sufoca – Andreia Ferreira (Radar Climático | Opinião)

O nome George Floyd correu mundo nos últimos dias. É o nome do homem que foi morto pela polícia do Minnesota, E.U.A., sufocado não só pelo joelho de um agente no seu pescoço, mas por séculos de racismo estrutural e décadas de brutalidade policial. Quando os protestos pacíficos se transformam em motins, a violência, edifícios incendiados, confrontos e pilhagens fazem manchetes e vão polarizando opiniões.

Há quem muito se choque por ver bancos, carros e grandes cadeias comerciais totalmente destruídos, quando o que é realmente chocante é ver pessoas a serem baleadas, espancadas, asfixiadas, sujeitas a condições desumanas e indignas porque nasceram com pele escura. À violência da opressão o pacifismo não é resposta. Nas palavras de Martin Luther King, líder da luta pelo direitos civis (apologista de protestos pacíficos mas também ele assassinado), “os motins são a língua dos que não são ouvidos”.

Devido à pandemia Covid-19, já morreram mais de 100.000 pessoas nos EUA, onde os valores neoliberais atiram já para a miséria milhões de pessoas sem condições de vida dignas, e outros quarenta milhões de pessoas perderam o emprego. São as populações mais empobrecidas, racializadas, as mais próximas do desespero, que enfrentam os seus opressores na única linguagem que estes entendem, sem medo, porque cada vez têm menos a perder.

Por cá não é muito diferente. As pessoas mais fragilizadas, mais pobres, trabalhadoras precárias, as imigrantes, racializadas, discriminadas, mulheres e minorias são as que maiores dificuldades económicas enfrentam, as que têm menor acesso a habitação, saúde e educação, ou outros direitos básicos como água ou energia. Também aqui o racismo sistémico sufoca e mata, mantendo impunes os cúmplices do sistema. No bairro da Jamaica, na Amadora, na Cova da Moura e em todo o lado, vão-se repetindo Cláudias, Giovanis, Elsons e Alcindos. Dá-se palco crescente e assento par(a)lamentar à ciganofobia e ao fascismo.

O desemprego, layoff, o congelamento da cultura ou a dispensa de serviços das economias paralelas, sem qualquer rede de suporte, a conciliação impossível de teletrabalho e filhos menores, ou os trabalhos ditos “essenciais”, com riscos acrescidos mas sem reflexo dessa imprescindibilidade no salário, são amarras. Aprofundou-se a crise social em que já estávamos, e nem assim a necessidade de lucros crescentes deu tréguas, esmagando as pessoas que mantêm o circo a funcionar e as que ficam em total desamparo, sobrevivendo mal e à custa de redes de solidariedade cidadãs.

As mulheres, a braços com jornadas duplas e triplas de trabalho por conta da grande maioria das tarefas de cuidados, foram, como sempre, as mais castigadas na pandemia. Mesmo na sua expressão mais cruel, a violência doméstica e os femicídios são descritos com eufemismos romantizados de “paixão obsessiva”, “ciúmes” ou “amor não correspondido”. O patriarcado sufoca.

As pessoas trabalhadoras estão cansadas de ser tratadas como carne para o canhão dilacerante do capital, de serem responsabilizadas por continuar a laborar para a “economia não parar”, para as empresas milionárias distribuírem dividendos pelos accionistas enquanto pedem ajudas ao estado e para pagarem dívidas que não contraíram, enquanto não sabem como vão sustentar as famílias se ficarem sem o mísero salário mínimo.

Dúvidas houvesse de quem detém o poder e benesses, as passadas semanas foram bastante esclarecedoras. Spoiler alert: ainda são as grandes empresas (assentes em combustíveis fósseis, claro está) e a banca. Durante a pandemia o Estado injecta no Novo Banco sensivelmente o triplo do montante usado com 681 mil trabalhadores em layoff. É chamado o presidente da petrolífera Partex Oil & Gas (anteriormente detida pela Gulbenkian) para assumir o papel de “paraministro”: conceber e discutir com ministros e partidos o plano económico do “regresso à normalidade” nos próximos anos. E, falando em próximos anos, o FMI alerta que é preciso ir devagarinho com a transição energética, por causa da estabilidade financeira, não vá a única solução para o caos climático e a queda da civilização tirar o lucro aos principais responsáveis pela crise climática, ou afastar dessa normalidade insana o futuro de todas nós. No capitalismo, resgatar o lucro é mais importante do que resgatar as pessoas e o seu futuro. O capitalismo sufoca.

E perante o sufoco que o capitalismo impõe, sair à rua é o mínimo, e ainda assim um privilégio, para resgatar a voz de quem é silenciado.

fotografia usada na  imagem: Whitney Curtis, The New York Times

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