Preâmbulo
A alimentação é uma necessidade vital comum a todos os seres vivos, pelo que, naturalmente, também o é para o ser humano. Embora esta necessidade seja universal, a maior parte do actual modo de produção de alimentos integra desigualdades sociais e geográficas incontornáveis. No mundo inteiro, pelo menos 1 em cada 10 pessoas passa fome, 1 em cada 3 sofre de malnutrição e 1/3 dos alimentos é desperdiçado! A própria forma de produzir alimentos, com a generalização das novas tecnologias que sustentam a indústria alimentar, encontra-se em profundo desequilíbrio, o que põe em causa a capacidade futura de produção de alimentos e gera importantes problemas, presentes e futuros, entre os quais destacamos os relativos às alterações climáticas.
Por isso, é urgente compreender este problema tão sensível e complexo, e propor soluções de reequilíbrio e regeneração, num quadro de absoluta Justiça Alimentar, em total sintonia com a Justiça Social, Animal, Ambiental e Climática.
Problemas
A actual indústria alimentar, tal como outros sectores económicos, é regida por legislação, regulação e acordos de comércio ligados a interesses políticos e económicos, assentes na concentração de poder e propriedade.
Isto resulta numa indústria que, com a sua visão estritamente antropocêntrica, é responsável pela exploração não-sustentável de:
• água doce, perigosamente cada vez mais escassa e mais poluída devido ao uso maciço de produtos químicos na agricultura e na pecuária;
• combustíveis fósseis, com consequências graves sob a forma de poluição e emissão de gases com efeito de estufa (GEE), a causa directa das alterações climáticas — a maior ameaça à humanidade;
• recursos não-vivos, como, por exemplo, matérias-primas para fertilização artificial dos solos;
• recursos vivos provenientes da vida selvagem (através da pesca, da caça, da apanha de algas, entre muitos outros exemplos), o que resulta numa grande perda de biodiversidade;
• animais criados especificamente para o consumo e vistos como recursos, nas indústrias da pecuária e da aquacultura, e aos quais se destina pelo menos 1/3 da produção agrícola;
• território, essencialmente dedicado à pecuária e à agricultura intensivas, com forte impacto nas florestas do planeta, em que solos, outrora férteis, se encontram agora degradados.
Os processos de desenvolvimento, produção, transporte, armazenamento, embalamento, rotulagem e consumo de alimentos agravam a poluição, geram elevadas emissões de GEE e causam desperdício de recursos. O desperdício dos próprios alimentos ascende a ⅓ do total.
As tecnologias de produção alimentar incluem também o uso generalizado de aditivos alimentares, a manipulação dos alimentos e testes em animais. O uso generalizado e intensivo de fertilizantes artificiais, pesticidas e antibióticos é profundamente preocupante, pois denuncia a total falta de equilíbrio do sistema, facilitando a propagação de doenças entre as espécies e conduzindo à previsível extinção dos insectos polinizadores, cujas consequências são perturbadoras.
O sistema alimentar é, ainda, palco de profundas injustiças sociais, exploração, precariedade e escravatura, sendo muitas vezes suportado pelas pessoas mais vulneráveis, entre as quais mulheres e migrantes. Na sombra da produção alimentar, escondem-se condições de trabalho degradantes: por exemplo, a perigosa exposição aos venenos que são aplicados nos alimentos, a insensibilização forçada ao sofrimento e à morte de milhões de animais e o trabalho infantil, que actualmente atinge cerca de 108 milhões de crianças. Por fim, não se pode deixar de referir a perigosidade de alguns alimentos industriais cujo consumo provoca muitas das doenças comuns do nosso tempo.
Motivação
Por estes motivos, que evidenciam a necessidade de uma transição, é agora altura de exigirmos que toda a humanidade tenha acesso a alimentos e que toda a natureza, da qual dependemos, goze de protecção ao longo do processo de produção alimentar. Perante a gravidade do problema, devemos, em todas as frentes, trabalhar para tornar global esta consciência. Temos de o fazer pelas actuais e futuras gerações, pelos animais e por toda a vida com a qual partilhamos este planeta.
Reivindicações
Assim, tendo em conta a necessidade de alcançarmos a Justiça Alimentar, apresentamos as seguintes reivindicações:
• queremos erradicar a fome, recuperar a soberania alimentar e implementar uma permanente disponibilidade de alimentos, de boa qualidade e variedade, para todos; e que pessoas, animais e natureza gozem, agora e no futuro, de protecção em todo o processo;
• queremos a sustentabilidade ecológica da linha de produção de alimentos em todas as frentes; que esta não seja fonte de desperdício e de poluição; e que constitua uma das principais formas de captura e armazenamento de carbono na atmosfera;
• queremos transparência e confiança em todos os processos da indústria alimentar, rejeitando a utilização de substâncias tóxicas ou potencialmente tóxicas para pessoas, animais e natureza;
• queremos usufruir da riqueza e da variedade de alimentos que a natureza nos oferece abundantemente, e cujo património intrínseco não pode, em caso algum, ser propriedade de alguém;
• queremos o reequilíbrio da biodiversidade, essencial à manutenção de uma vida saudável para todos os seres do planeta;
• queremos aceder ao alimento local, saudável, tão próximo da sua forma natural quanto possível; e queremos recuperar uma ligação profunda à terra que nos alimenta;
• queremos desenvolver e promover projectos locais, descentralizados, auto-sustentados, resilientes, ligados a práticas agro-ecológicas extensivas, regenerativas e biodiversas;
• queremos promover a adopção gradual e progressiva de uma alimentação de origem vegetal, que constitui uma das mais poderosas ferramentas para inverter a marcha do colapso climático iminente e, ao mesmo tempo, aliviar o sofrimento animal e o uso do território pela e para a actividade pecuária;
• queremos uma transição rápida e consciente, que proteja sempre os trabalhadores em todas as frentes de produção de alimentos.
A transição é dirigida a todos, e por todos deve ser levada a cabo: Estado, pessoas colectivas e pessoas singulares. E todos podem dar, e muitos já estão a dar, o seu contributo.
Pela sua maior responsabilidade social, económica e política, dirigimo-nos, em primeiro lugar, aos legisladores, para que orientem a legislação de acordo com a necessária transição alimentar nacional e para que revoguem as leis vigentes que lhe sejam contrárias. Tal inclui regulamentação clara sobre propriedade intelectual, lobismo, desenvolvimento, produção, comércio, transporte, consumo, poluição, gestão de resíduos e fiscalização dos processos relativos à produção alimentar. Igualmente, devem ser tidas em conta estas orientações de Justiça Alimentar na subscrição ou denúncia de acordos internacionais ou equivalentes.
Dirigimo-nos ao sector alimentar, para que aí se materialize a transição para uma Justiça Alimentar que garanta a sustentabilidade económica, social, ambiental e institucional.
Dirigimo-nos ao meios académicos, de ensino e investigação, pelo seu papel central na educação, formação e requalificação da população no âmbito destes temas, nas escolas, universidades e laboratórios do Estado.
Apelamos aos meios de comunicação social pelo seu papel no esclarecimento e educação da sociedade ao difundir a informação desta transição vital.
Apelamos, por fim, à sociedade civil, através de organizações não-governamentais e equivalentes, e às pessoas que, através da sua força e energia, das suas escolhas enquanto cidadãs, consumidoras, eleitoras, empreendedoras, profissionais das áreas envolvidas e activistas, consolidam a transição.
Conscientes da urgência face ao exposto, comprometemo-nos contribuir para a transição para um novo paradigma de alimentação que se pretende saudável, ético, ecológico, sustentável e regenerador, o qual denominamos Justiça Alimentar, em sintonia com a Justiça Social, Animal, Ambiental e Climática.
Arte pelo Boy Dominguez
Maravilha, maravilha, maravilhosa proposta!