O governo português e o ministério da (in)ação climática regozijam-se pela sua liderança no cumprimento das metas estabelecidas pelo Acordo de Paris. Na verdade, nem Portugal nem o próprio Acordo de Paris estão no caminho para impedir o caos climático e permanecer abaixo dos 1,5ºC de aumento de temperatura global até 2100, afirma Matilde Alvim, dirigente do movimento Greve Climática Estudantil/ Fridays for Future Portugal
Este sábado, 12 de dezembro, “celebram-se” os 5 anos da assinatura do Acordo de Paris (COP21). Após 5 anos de absoluta inação por parte de governos e instituições, e face a uma crise pandémica que tudo pode mudar, o movimento pela justiça climática cansou-se de esperar: é hora de nós lutarmos pelos 1,5ºC e enterrar Paris de uma vez por todas.
O governo português e o ministério da (in)ação climática regozijam-se pela sua liderança no cumprimento das metas estabelecidas pelo Acordo de Paris. Na verdade, nem Portugal nem o próprio Acordo de Paris estão no caminho para impedir o caos climático e permanecer abaixo dos 1,5ºC de aumento de temperatura global até 2100.
Vamos por partes:
1. Portugal não está a fazer o suficiente “Todos os compromissos de neutralidade carbónica, que Portugal foi o primeiro país do mundo a afirmar, são filhos do Acordo de Paris”, afirma Matos Fernandes. É, na verdade, uma afirmação congruente: a falta de ambição do Acordo de Paris reflete-se na falta de ambição portuguesa no compromisso para a neutralidade carbónica, que aponta para 2050, em vez de 2030, a meta que nos salvaguarda do desastre climático. Quanto à meta de redução de emissões, à partida, a declaração do país de cortar 50% de emissões até 2030 parece-nos bastante ambiciosa. Talvez não estejamos a olhar com atenção suficiente.
A meta ideal do corte de 50% das emissões até 2030 é estabelecida a nível global. Isto é, globalmente, o mundo tem de cortar 50% das suas emissões de GEE até 2030. Para isto funcionar, os países do Norte Global devem assumir as dívidas históricas e ecológicas que têm pelas sucessivas décadas de emissões, e ir mais além. Segundo o Paris Equity Check, uma ferramenta que calcula as metas de reduções segundo parâmetros justos, Portugal deve cortar 60 a 70% das suas emissões até 2030. Ora, mesmo que as metas indicadas pelo governo fossem ambiciosas o suficiente, as suas próprias políticas, na prática, parecem auto-sabotar aquela que seria uma “liderança ambiental”.
Comecemos pelo óbvio: o aeroporto do Montijo continua em cima da mesa. Debate após debate acerca do local exato da construção do novo aeroporto, a questão fulcral permanece intacta: mesmo sabendo que a indústria da aviação é uma das maiores responsáveis pelas emissões de GEE, ainda que apenas 1% da população mundial cause metade das emissões do setor, o governo quer avançar na construção de uma nova infraestrutura de aviação.
Em relação ao novo debate acerca do hidrogénio, altamente promovido pelo governo como uma “nova solução”, a credibilidade na eficácia do próprio hidrogénio na transição justa é pouca, e a no processo ainda menor. O projeto milionário para a produção de hidrogénio em Sines é “só” mais um exemplo dos cuidados paliativos à indústria fóssil e da promiscuidade entre o governo e as empresas petrolíferas, ocultadas sob o véu do “Portugal líder mundial nas políticas climáticas”. A cereja no topo do bolo foi a escolha do CEO da empresa petrolífera Partex, António Costa e Silva, para a elaboração do plano de recuperação económica do país.
Por entre ferrovias abandonadas e florestas queimadas, os governantes continuam a vender-se aos fósseis enquanto sorriem com planos e estratégias vazias no bolso.
2. Mas o Acordo de Paris foi construído para falhar. Certo, Portugal não está a fazer o suficiente. Então, como é que podemos meter-nos no caminho certo para cumprir o Acordo de Paris e ficar abaixo da meta dos 1,5ºC? Ora, esta é a pergunta errada. Isto porque o Acordo de Paris foi, de facto, construído para falhar e para não incomodar os poderosos, recusando-se a desmantelar as indústrias fósseis e iniciar uma transição justa.
Para começar, as palavras “combustível”, “fóssil”, “carvão” e “petróleo” estão escritas no total de 0 vezes ao longo das páginas do Acordo. A meta estabelecida de 1,5ºC é puro marketing: feitas as contas, as propostas de ação voluntárias apresentadas por 185 dos 196 países presentes na COP21 perfazem um aumento de temperatura de 3,7ºC até 2100.
Os sectores da aviação civil e do transporte marítimo estão isentos de qualquer meta. E, como não poderia deixar de ser, o Acordo de Paris não é juridicamente vinculativo, no sentido em que as INDCs (Intended Nationally Determined Contributions) de cada país não se transformam em compromissos legalmente vinculativos, não existindo represálias para os países que não cumprem os compromissos assumidos (ao contrário dos acordos da Organização Mundial de Comércio, por exemplo).
Amanhã o Acordo de Paris assinala 5 anos de existência. Em 2020, os níveis de CO2 na atmosfera chegaram a um novo pico. Os 5 anos mais quentes alguma vez registados foram os últimos 5. Em 2019, o nível médio das águas do mar chegou a um novo recorde desde que se começou a registar com precisão. Esta é a prova inequívoca do falhanço das instituições, governos e COPs em resolver a crise climática.
Deixemos, então, de acreditar nas narrativas que nos dizem que os países estão a fazer o suficiente, que o mercado poderá resolver a crise climática e que é preciso acalmar gritos e fúria de desespero e esperança, trocando-os por atitudes pacientes e crentes nas negociações burocráticas infinitas. Não nos deixemos levar por vozes que nos querem descredibilizar para manter o seu business as usual disfarçado de compromisso, como a de Matos Fernandes, que, numa entrevista dada à agência Lusa há poucos dias, afirma que “aqueles que acham que se deve acabar com as democracias liberais para impor um modelo totalitário, de facto, não vão ter a sua satisfação e alguns dos que se dizem intérpretes, nomeadamente daquilo que diz a Greta Thunberg (…) em Portugal, de facto defendem um modelo de, no limite, fim do estado democrático e do estado de direito para impor as suas vontades”.
Talvez me tenha escapado que o ministério da (in)ação climática, complacente com a indústria dos combustíveis fósseis, seria o representante da voz de Greta, enquanto descredibiliza simultaneamente um movimento de estudantes que denuncia os seus compromissos governamentais superficiais. De qualquer forma, se a “democracia” de que nos fala Matos Fernandes é aquela que dá a mão à indústria dos fósseis e põe em risco o nosso futuro, os nossos recursos e os nossos territórios, então não a queremos.
Queremos uma democracia que tenha em conta as gerações futuras, o planeta, a água, a energia renovável, as florestas, as terras e as pessoas. Queremos uma democracia que assegure a transição energética justa, rumo a uma sociedade construída sob os princípios da justiça climática global. É hora de rasgar e enterrar o Acordo de Paris, e pôr mãos à obra para lutar pelos 1,5ºC.
O movimento pela justiça climática a nível global, que assinou recentemente o Acordo de Glasgow, vai fechar indústrias fósseis e impedir novos projetos de surgirem, enquanto luta e constrói as alianças para uma transição energética justa que produza milhares de novos empregos para o clima e tenha em conta as necessidades de comunidades e trabalhadores. A resposta à pergunta de como é que podemos meter-nos no caminho certo para ficar abaixo da meta dos 1,5ºC é: chegou a hora de assinarmos nós o nosso próprio compromisso.
Originalmente publicado no Expresso a dia 11 de Dezembro de 2020.