Deixar o processo de descarbonização nas mãos de conselhos de administração e de processos bizantinos apenas prolongará a sucessão de narrativas que comprometem o direito a um futuro e, claro, a qualquer espécie de vida digna.
Más práticas de contabilização e desastres tendem a andar de mão dadas, e quando falamos de alterações climáticas, contas dúbias conduzem-nos a um desastre sem precedentes.
No centro está o conceito de Neutralidade Carbónica. Várias atividades, em especial a queima de combustíveis fósseis, produzem emissões de gases com efeito de estufa, que se acumulam na atmosfera. Por outro lado, os gases com efeito de estufa podem sair da atmosfera através de mecanismos de absorção. Para manter constante a quantidade de gases com efeito de estufa (GEE) e o seu efeito sobre a temperatura global, deveríamos apontar para um mesmo valor de emissões e de absorção de GEE, assim atingindo o net zero.
Por vezes, a melhor forma de equilibrar as contas de um negócio é através da obtenção de mais receitas ao invés de cortar nos custos. Já em termos climáticos, reza a lenda que poderíamos manter a infraestrutura dos combustíveis fósseis intacta e, ao mesmo tempo, estabilizar a quantidade de GEE na atmosfera, bastaria existir mecanismos de absorção suficientes.
Esta história poderá ser interessante no abstrato, mas no concreto é equivalente a ter despesas pagas a pronto e receitas recebidas a muito longo prazo, se é que recebidas de todo.
O que são estas receitas por receber? São os supostos mecanismos de absorção. Em destaque está o plano recentemente apresentado pela petrolífera Shell: a plantação massiva de florestas para absorver carbono. Desse modo, do lado das despesas fica a combustão dos combustíveis fósseis queimados e do lado da receita, as árvores sumidouras de carbono.
O plano rapidamente desaba. Logo à partida surge a questão: onde plantamos todas estas árvores? No caso da Shell, a área proposta para absorver as suas emissões equivale à do Brasil, resta saber onde a empresa espera encontrar esta superfície. Aplicando o mesmo raciocínio a todas as petrolíferas do mundo, fica a questão se a área do planeta Vénus bastaria.
Outras limitações, como o desfasamento de tempo ou as temperaturas elevadas, diretamente ligadas a maiores riscos de incêndio, reforçam a impossibilidade técnica desta solução. No entanto, esta não é a única falsa solução de absorção de carbono que paira, surgindo em destaque os mecanismos de “Captura de Carbono”, que são pouco mais do que ficção científica.
Estas falsas soluções não são um acidente de percurso, mas somente mais uma etapa do capitalismo fóssil que durante décadas negou, encobriu e desconsiderou as alterações climáticas. Face a um movimento climático cada vez mais forte, a solução arquitetada passou por admitir a urgência em evitar o colapso climático nos próximos anos, mas quanto à ação, limita-se a um conjunto de medidas simbólicas, inviáveis ou falsas.
A luta pela preservação de um planeta digno não se pode dar ao luxo de perder mais anos embrulhada na agenda das empresas fósseis. Anos perdidos deixam uma última janela de oportunidade para travar os efeitos nefastos das alterações climáticas e esse período de tempo tem de ser decisivamente marcado pela eficácia.
É face a isto que surge a mobilização internacional do Acordo de Glasgow. Um plano oriundo de organizações de base em mais de 40 países que sistematiza as maiores infraestruturas responsáveis pelas alterações climáticas. Para cada país é produzido um inventário e a partir daí é lançada a discussão sobre como cortar as emissões de GEE.
Em Portugal, o Acordo já conta com a adesão do Climáximo e da Greve Climática Estudantil. Para já, foi produzido o inventário , a partir de fontes oficiais, destacando unidades como a refinaria de Sines e complexos industriais da Navigator. Desta forma está explícita a fundação para atingir verdadeiramente a neutralidade carbónica: identificar as fontes de emissões para assim as reduzir.
O discurso da neutralidade carbónica, alavancado por soluções mágicas como a absorção de carbono, é a forma atual de deixar o capitalismo fóssil intacto. Nada nos garante que, após a sua refutação sumária, este não venha a ser substituído por uma nova conversa fiada que apenas adie a transição energética.
Deixar o processo de descarbonização nas mãos de conselhos de administração e de processos bizantinos apenas prolongará a sucessão de narrativas que comprometem o direito a um futuro e, claro, a qualquer espécie de vida digna. É esta a hora do movimento climático definir a direção e tomar as rédeas do processo de descarbonização. Os prazos para concretizar a transição energética não deixam espaço para mais contos de fadas empresariais.
Artigo originalmente publicado no Jornal Económico a dia 16 de Março de 2021