Pandemia de desflorestação – João Camargo

A Comissão Europeia reviu a sua directiva de energia renovável, apresentando-se maquilhada de verde enquanto garantia que a queima de árvores e florestas para produzir energia é “sustentável” e, “carbono zero”. Em plena crise climática, as florestas um pouco por todo o mundo ardem, transformando este contrabalanço do aumento de temperatura e do dióxido de carbono num sistema degradado, com a contração das áreas florestais, vítimas em grande medida da cobiça dos países ricos. Simultaneamente, numa espécie de vingança biológica, é no interface da desflorestação que se produzem as pandemias actuais e futuras.

A desflorestação intencional é uma declaração de guerra à vida. As florestas globais estão altamente fragmentadas, vítimas da cobiça capitalista por solos, madeira, animais, propriedade. Segundo o Global Forest Watch, 411 milhões de hectares – uma área maior do que a Índia – de cobertura arbórea foram perdidos entre 2001 e 2020. Em período semelhante, perderam-se 64,7 milhões de hectares de florestas primárias húmidas, o equivalente à área de França. Os diversos ecossistemas florestais forneceram estruturas organizadoras da vida durante centenas de milhões de anos, produzindo e reciclando energia, água, nutrientes e beneficiando a biodiversidade que usou essa abundância e esse excedente. Nós, enquanto espécie, beneficiamos-nos também desses sistemas, e tememo-los também pela sua força, pela sua diversidade, pela sua vastidão. A soberba do capitalismo enquanto visão do mundo levou uma parte da Humanidade a enfrentar esse temor com subjugação, com exploração e com destruição.

Se a principal causa da desflorestação é a cobiça pelos valores naturais que residem nas florestas – árvores, madeira, frutos, resinas, animais, plantas, tantas outros seres e matérias úteis para nós e para a natureza –, o que sobra depois da rapina – solos, alguma fertilidade natural e zonas a lotear – é a devastação absoluta da complexidade e da abundância. A desflorestação produz escassez, debilidade e doença. Literalmente mata-se a galinha dos ovos de ouro.

Que não haja qualquer equívoco: as empresas ditas “florestais” não trabalham em florestas, excepto naquelas que destroem, operam no campo da extração. Monoculturas de plantas de espécies florestais nunca são florestas. Muito mais grave: estas monoculturas são frequentemente introduzidas em zonas de floresta que foram saqueadas, substituindo as florestas que antes aí estavam por uma aberração biológica que só cabe na cabeça de quem acha que a natureza funciona como uma fábrica de salsichas.

A desflorestação, em particular nos países mais pobres, aqueles com processos de industrialização mais tardios, é onde os patogénicos que criarão as pandemias do futuro surgem. Menos biodiversidade significa efectivamente mais riscos de pandemias. Quando há uma abundância de plantas e animais num ecossistema, os vectores de transmissão serão muitas vezes anulados nas centenas ou milhares de espécies em vez de passarem para os animais domésticos ou para humanos.

O local da desflorestação é a zona quente de transmissão das pandemias: o corte das árvores que faz com que animais percam o seu habitat e se desloquem para os interfaces rurais, as espécies voadoras (como os super-dispersores morcegos) e as terrestres também. As estradas que cortam as florestas primárias para poder executar o trabalho de extração dos “recursos” tornam-se estradas de doença, onde as espécies oportunistas como ratos, pulgas ou mosquitos apanharão as boleias para entrar e sair. As florestas fragmentadas, isoladas entre estradas e descampados, onde muitas vezes são introduzidas a agricultura e a pecuária, tornam-se depósitos de doença e onde antes o equilíbrio se mantinha, agora transborda. Os animais selvagens tentam adaptar-se a esta pobre realidade, atravessando os interfaces com gados, agricultura e comunidades humanas, com estados imunológicos necessariamente mais deprimidos, e tornando-se portadores ainda mais susceptíveis de bactérias, vírus e outros agentes de doença.

Embora a Humanidade sempre tenha cortado árvores, a desflorestação como processo industrial surge em particular a partir dos anos 70 do século passado, levada a cabo como resposta à intensificação da globalização capitalista. As florestas são consideradas zonas inúteis que podem ser substituídas por espaços para introdução de “commodities” transacionáveis no mercado global, exigidas pelos programas de austeridade, o “ajustamento estrutural” nos países da América Latina, Sudoeste Asiático e África, imposto pelos braços políticos do capitalismo neoliberal – FMI e Banco Mundial. Nos últimos 40 anos vimos surgir nos interfaces com a floresta várias doenças que, em qualquer outro momento da História em que houvesse menos cuidados de Saúde, poderiam ter dizimado grande parte da população humana: HIV, Gripe Asiática, SARS e MERS, Gripe Suína, Ébola, Zika ou COVID-19.

A directiva de energias renováveis da União Europeia é um agente activo de desflorestação quer na Europa, quer fora dela. Não nos enganemos: o capitalismo não conseguiu até agora resolver a pandemia de Covid-19 por causa do lucro que é exigido pelos donos do capital. O capitalismo não vai resolver a crise climática, recusando-se a fazer os cortes necessários de emissões e aposta todas as suas fichas em soluções falsas para enganar a sociedade. A plantação de árvores por parte de empresas “florestais” uma das mais famosas soluções falsas. É preciso plantar florestas para ficarem nos sítios, para criarem os sistemas organizadores de vida sem os quais nós não podemos sobreviver, e isso não dá lucro. Em capitalismo não há empresas que façam coisas que não dêem lucro, e por isso não vão resolver essa crise. A UE e as outras estruturas do capitalismo global só vão desencadear novas crises e novas pandemias, desflorestando o mundo para fingir que é possível manter os atuais níveis de produção, consumo e energia dos países ricos, e em particular permitir que menos de 0,01% da população possa viver como se fossem deuses, incluindo pequenas excursões turísticas ao espaço em falos gigantes.

Artigo originalmente publicado no Jornal Expresso a dia 30 de Julho de 2021.

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