Uma transição justa é o plano antiguerra urgente – Matilde Alvim

O sangue derrama e vai escorrendo pelo Leste da Europa com a mais recente invasão da Ucrânia pelo Kremlin. Enquanto as pessoas põem as suas vidas numa mala, dizem adeus, e fazem-se à estrada numa dolorosa viagem que deixa para trás os seus sonhos, o seu trabalho e a sua comunidade; à indústria fóssil e aos Estados com ela complacentes – por sinal, todos – restam-lhes a sujidade das próprias mãos.

Esta não é uma guerra pelo petróleo e pelo gás, como muitas outras que já aconteceram e que continuam a acontecer enquanto escrevo este artigo. Mas é, sem dúvida, uma guerra cujo substrato é o petróleo e o gás, uma guerra patrocinada pelas poderosas indústrias fósseis que, senhoras de si e do mundo, comandam como cães atrelados os Estados da União Europeia e da Rússia. Num comunicado lançado há poucos dias, o Extinction Rebellion Ucrânia acusa a União Europeia de ter sangue nas mãos e de ter contribuído indiretamente para a invasão do país, através da cumplicidade energética e financeira com o regime ditatorial de Putin. Esta impunidade, acusam, não vem de agora. A altíssima dependência europeia das reservas de gás russo – cerca de 40%, em total – levou à “necessidade” de construção de projetos como a Nord Stream 1 (um gasoduto que liga a Rússia à Alemanha, inaugurado em 2011), ignorando a tentativa de domesticação do regime russo ao desenvolvimento de uma Ucrânia democrática através de um aumento dramático dos preços do gás.

Hoje, face a uma sangrenta invasão militar, é clara a responsabilidade da UE na possibilitação deste crime. Esta Europa altamente dependente não só de combustíveis fósseis, mas, ainda por cima, combustíveis fósseis vindos de regimes autoritários alimenta através das receitas de petróleo e gás Estados autocratas e imperialistas. Afinal, a intensa e constante dependência energética fóssil da EU foi um dos motivos financeiros que permitiu a Putin ter os meios militares e tecnológicos para invasões que pretendem estabelecer o controlo sobre outros Estados soberanos. Aliás, de acordo com a investigação de Javier Blast publicada na Bloomberg, nas 24 horas seguintes a Putin ter assinado um decreto para invadir a Ucrânia, a UE, o Reino Unido e os EUA compraram 3,5 milhões de barris russos de petróleo, com um valor de mais de 350 milhões de dólares. Para além disto, esta mesma dependência energética produz o tipo de cumplicidade política promíscua que impede a UE e os EUA de aplicarem verdadeiras sanções à Rússia, isto é, aquelas que tocam ao setor da energia. Até agora, nenhum dos blocos anunciou nenhuma sanção que consiga asfixiar o setor fóssil russo, que representa uma grande fatia da economia do país e é o sangue principal do qual se alimentam os vampiros da elite oligárquica. Isto é, o petróleo e o gás estão a ser uma das principais razões para que a EU não consiga intervir de forma adequada e em nome da justiça no conflito. A principal conclusão a retirar daqui é que os combustíveis fósseis, principais motores do capitalismo, produzem e patrocinam a violência através dos seus inevitáveis altos níveis de dependência e a sua inerente finitude – para não falar das óbvias emissões de CO2 largadas para a atmosfera.

É claro que, para os oportunistas do costume, um conflito armado numa das zonas geoestratégias mais importantes para o fornecimento da energia europeia, esta situação é uma “oportunidade”. Refiro-me às palavras de António Costa e João Galamba, que insistem que é hora de apostar no Porto de Sines como uma potencial principal porta de entrada do gás fóssil para a Europa. Dentro do habitual papaguear do discurso da “diversificação energética” esconde-se a agenda política do aumento do gás, um combustível fóssil tão perigoso como o petróleo em termos de quantidade de emissões de CO2 e que provoca violências e conflitos por onde passa a sua exploração – maioritariamente no Sul Global. Embora a promessa de Sines como um mega centro de exportação para a Europa possa parecer apelativa à primeira vista, a verdade é que estamos em crise climática e precisamos de cortar, em Portugal, mais de 70% das emissões até 2030. Isto, no entanto, não tem de significar algo mau. A aniquilação e libertação das garras da indústria fóssil vai permitir não só a redução de emissões que nos salvaguardam o futuro das condições de habitabilidade, como também a oportunidade para uma nova sociedade assente na justiça, na independência energética e na solidariedade global.

A transição justa para uma sociedade alimentada 100% a energias renováveis é o plano antiguerra. Nela, podemos produzir a nossa própria energia sob condições dignas de trabalho e com a garantia da autonomia. Uma vez que, embora a diferentes níveis, todos os países têm água, vento ou sol, as energias renováveis inseridas num plano público de redução de emissões garantem o esmagar do imperialismo dos petro-estados. Desmantelar a indústria fóssil internacional significa lutar pela paz e pelo fim da violência provocada pelos inúmeros conflitos armados, dando lugar a uma sociedade justa que ponha a vida no centro e que consiga salvaguardar o planeta. Seguindo o comunicado do Extinctin Rebellion Ucrânia, é este o plano de ataque: boicotar, invadir, e desmantelar as grandes empresas energéticas russas que têm sedes na EU e que estão a beneficiar do conflito.

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