A caravana, que partiu a 2 de Abril da Praia da Leirosa, ultrapassou a primeira fase, mais de 200km, chegando dia 12 à fábrica da Celtejo em Vila Velha de Ródão. Os primeiros onze dias de percurso atravessaram uma das faces mais evidentes da crise climática, a desertificação acelerada pelos incêndios florestais, agravados pela eucaliptização de um território que é hoje um perigo para as populações. No início e no fim deste percursos estão as fábricas – da Navigator e da Altri – que se abastecem da matéria prima que tornam o interior um perigo, libertando milhões de toneladas de dióxido de carbono para a atmosfera, sorvendo quantidades monstruosas de água e despejando os seus efluentes no Atlântico e no Rio Tejo. O contacto com as comunidades e a exposição dos responsáveis é a única maneira de construir justiça climática no concreto.
Uma caravana está a percorrer a pé e de comboio mais de 400km do país para falar com as populações na linha da frente da crise climática e discutir na porta de algumas das maiores emissoras de gases com efeito de estufa do país o que deveria acontecer ali. No dia 9 de Abril arrancaram também caravanas pela justiça climática na Irlanda e na Turquia.
Hoje a caravana parou frente à Celtejo, onde várias pessoas de Nisa se juntaram à marcha, acompanhando-a até Mouriscas, onde a etapa diária termina. Nos últimos onze dias, a caravana já contactou com milhares de pessoas ao longo do seu percurso, promovendo debates em escolas, repúblicas, teatros, jardins e, claro, frente a algumas das principais infraestruturas responsáveis pela crise climática em Portugal:
- A fábrica de pasta de papel Celbi, na Leirosa;
- O complexo industrial da The Navigator Company, na Figueira da Foz;
- A central a gás de Lares, da EDP;
- A cimenteira de Souselas, da CIMPOR.
Estas estruturas estão entre as 10 maiores emissoras de gás com efeito de estufa em Portugal, sendo manifestamente responsáveis pela crise climática à nossa escala. O sector das celuloses destaca-se na dianteiras das emissões, com a The Navigator Company à frente, a empresa com mais emissões do país. Nos próximos dias, o tema passará para a água, com o rio Tejo como pano de fundo e todos os projetos de intensificação da destruição do rio (como de outros) a vir ao de cima. O percurso e as iniciativas são abertos podem ser vistos em caravanaclima.pt.
Do contacto com as populações e dos percursos por áreas arborizadas algo fica claro e notório: as condições para a repetição de incêndios florestais não só existem de novo, como agravaram-se. A submissão do governo às celuloses é absoluta, sem sequer terem sido cumpridas promessas básicas para os territórios mais afectados, como Nodeirinho, Figueira e Pedrógão Grande – não há projetos piloto, não há faixas de contenção mantidas, o eucalipto continua a expandir-se, sob a forma invasora e sob a forma plantada. As celuloses continuam a fornecer milhões de eucaliptos todos os anos, e estes continuam a eucaliptizar o nosso país.
O governo do mundo rural português é em Lisboa, mas não no ministério da Agricultura. É na Rua Marquês de Sá da Bandeira, na sede da CELPA, e na Avenida Fontes Pereira de Melo, na sede da Navigator. Os ministros que António Costa e os primeiros-ministros antes de si punham na agricultura são apenas as correias de transmissão das celuloses e do agronegócio. E a decisão destas empresas para o mundo rural é que pode não ter gente, pode ser um deserto, pode ser perigoso, que estas pessoas não contam para o poder real. Sem grandes subterfúgios, Francisco Gomes da Silva, o secretário de Estado que em 2013 fez aprovar a lei que liberalizava a plantação dos eucaliptos é hoje o Diretor-Geral das celuloses, da CELPA, enquanto o homem que ficou de tornar o mundo rural mais seguro contra incêndios, Tiago Oliveira, é outro funcionário da Navigator. E o mundo rural está mais inseguro que que há cinco anos: atravessando com dificuldade a pé os caminhos que foram pasto de chama em 2017, a caravana apercebeu-se que o pouco que foi feito aconteceu logo no emocional rescaldo das mortes. Há anos que este território está ser deliberadamente construído para ser um deserto que pode queimar à mais pequena subida de temperatura.
O que aconteceu ao território português não foi um acidente, foi deliberado. O abandono, a eucaliptização e a desertificação foram e continuam a ser a política pública. O facto de hoje estarmos em piores condições para incêndios florestais do que há cinco anos é uma escolha política, partilhada entre as grandes empresas de celulose e os partidos que são os seus mandatários junto da população. O poder do eucalipto não foi sequer beliscado e enquanto assim for, o território continuará a ser um local objetivamente contra as populações. Nem a poderosa máquina de comunicação da Navigator e da Altri consegue justificar como é possível sacrificar quase um terço do país – cerca de um milhão de hectares de eucaliptal, a maior área relativa do mundo! – para os seus parcos e privados resultados económicos. É um capitalismo preguiçoso que se arrasta por hábito, totalmente alheio à crise climática.
Durante a caravana saiu o último relatório do IPCC que reitera que este sistema montou o colapso como política pública, com a denúncia pública de governos e empresas que querem expandir as emissões à escala global, procurando mais reservas de combustíveis fósseis. As emissões globais aumentaram 19% entre 2010 e 2019, em vez de diminuírem e, segundo as políticas atuais, o pico de emissões nem sequer ocorrerá esta década, apesar de necessitarmos de cortar mais de 50% das emissões até 2030. O capitalismo global só tem uma política: o colapso. Prometem aumentar a temperatura no mínimo 3,2ºC até 2100.
Este sistema e as suas instituições nada têm para nos dar. Os governos entregam pessoas, territórios, futuro à vontade de conselhos de administração constituídos por perigosos sociopatas radicais que querem e reiteram sempre a escolha de um mundo a arder. A Caravana pela Justiça Climática marcha porque precisamos construir um movimento forte, amplo, diverso e enraizado o suficiente para que a vontade e os lucros desta minoria, assentes sobre a destruição do nosso futuro, seja um dia em breve apenas uma memória distante.
Artigo originalmente publicado no Expresso a 12 de Abril de 2022