Há graves problemas nos transportes da cidade. Nenhum deles é a existência de poucos carros. Há carros a mais na cidade de Lisboa. Nenhuma solução passa por menos ciclovias. Nenhuma.
Moedas não esperava ser presidente da Câmara. A soberba de Medina e do PS acabaram por estender-lhe a passadeira para um mandato inesperado. O PSD, perante a então possibilidade real de uma candidatura de André Ventura a Lisboa, precisava não sangrar ainda mais votos do que com Teresa Leal Coelho em 2017. Depois de uma passagem relativamente pouco chamuscada pelo governo de Passos Coelho e da troika (vindo da Goldman Sachs), de uma cadeira dourada na Comissão Europeia, o PSD encontrava em Carlos Moedas alguém que poderia evitar a sangria para a extrema-direita. Quando se compara Moedas a Ventura, percebem-se as diferenças, mas nem por isso Moedas deixou de piscar o olho e aliar-se a vários dos mesmos interesses a que Ventura também pisca – imobiliário, automóvel e, na generalidade, às pessoas que procuram num regresso ao passado a segurança que os tempos agitados em que vivemos não prometem.
É dessas alianças políticas que surge a obsessão com o ódio às ciclovias. É num micronicho que faz do carro um símbolo de estatuto, nesse micronicho em que a relação com o automóvel (geralmente muito pessoal e privada), com a sua potência e a sua cilindrada, com a liberdade absoluta e acima das outras de usufruir da máquina como objeto de identidade e diferenciação que coloca o proprietário acima de tudo, que estará a chave de muitas decisões arcaicas de Moedas. Em nenhum lado essa aliança é mais clara (e transparente) do que na escolha de Carlos Barbosa, presidente do Automóvel Clube de Portugal, como deputado municipal do PSD, na bancada minoritária que dá apoio a Moedas. Sim, é a mesma pessoa que há 15 anunciava o caos quando se cortasse o trânsito no Terreiro do Paço, que ainda suspira pelos parques de estacionamento no Martim Moniz e no Intendente. As decisões que esta aliança produz podem pintar-se com quaisquer argumentos que eles queiram, mas têm um só objetivo: ter mais carros em Lisboa. Não sabemos se este ódio é instrumental ou genuíno, e também não interessa muito saber. O que interessa são os seus efeitos.
Há graves problemas nos transportes da cidade. Nenhum deles é a existência de poucos carros. Há carros a mais na cidade de Lisboa. Nenhuma solução passa por menos ciclovias. Nenhuma.
Mas a discussão que existe hoje não é sobre soluções. O clima promovido é de um nível tão arcaico que se torna quase impossível discutir sobre soluções. Ninguém em nenhuma das sessões públicas sobre a ciclovia da Almirante Reis apoiou ou defendeu o que Moedas apresenta agora como um projeto sufragado. Não foi sufragado e é inequívoco: a Câmara Municipal de Lisboa escolheu degradar profundamente a ciclovia para ter mais carros, contra a vontade das pessoas. A isto juntam-se as obras à socapa, à noite e de madrugada, arrancando pedaços da ciclovia, pareceres escondidos, trabalhos sem aviso e mais episódios decrépitos de manipulação.
Degradar ciclovias como a da Almirante Reis, reabrir ruas de Arroios ao trânsito nesta altura, fazer uma batalha para ter a Avenida da Liberdade aberta ao domingo, esgrimir argumentos para não baixar a velocidade para o que é praticado na maior parte das cidades europeias é todo um conjunto de propostas políticas que não tem qualquer nexo além do acima descrito. É a ACP no governo da cidade. Nenhum problema de transportes da cidade de Lisboa será melhorado com qualquer dessas frentes de batalha de Moedas.
Por outro lado, ouvir Carlos Moedas a falar de alterações climáticas e neutralidade de carbono é como ler um daqueles anúncios que poluem os viadutos pela cidade, em que a BP diz que as emissões dos seus combustíveis são neutras. Até um novo aeroporto ele defende (como, aliás, o seu antecessor também defendia). A matemática em toda esta questão é muito simples e a discussão floreada à volta da mesma só tem função narrativa e teatral. Mais carros em Lisboa significa mais emissões em Lisboa. Considerando que temos de cortar mais de 70% das emissões em Portugal até 2030 (e os transportes são o principal sector poluente neste momento), temos mesmo tempo a perder com decisões destas? Moedas quer mais carros e mais emissões. Isso não vai dar. Nós precisamos de uma cidade para o futuro.
Artigo originalmente publicado no Expresso a 27 de Maio de 2022