Há três aspectos a considerar na guerra na Ucrânia.
Primeiro, a guerra começou como uma invasão russa. Uma grande maioria dos ucranianos apoia a resistência das forças armadas ucranianas. Esta é uma luta pela democracia. A invasão é sempre um acto de ditadura, seja na Ucrânia, no Vietname, no Afeganistão, no Iraque ou na Palestina.
A invasão de Putin é semelhante às suas outras intervenções militares na Chechénia, Geórgia, Cazaquistão, Quirguistão e Síria. Faz parte do restabelecimento do poder russo e da sua influência na região da antiga União Soviética e no anterior império russo.
No entanto, Putin também está receoso dos movimentos em prol da democracia que se expandem na Bielorrússia e na Ásia Central. E está receoso da crescente oposição interna na Rússia. Excursões militares para solidificar poder interno são uma constante na história da Rússia de Putin.
Uma vitória para a Ucrânia fortaleceria os movimentos pela democracia na Ásia Central e na Europa do Leste.
Mas depois há o segundo aspecto: esta é uma guerra verdadeira entre a Rússia e a Ucrânia. Mas também é um ponto intermédio na guerra entre os Estados Unidos /OTAN e a Rússia.
O que isto não é, é um confronto entre as forças da democracia lideradas por Biden, Scholtz e Macron e as forças da ditadura lideradas por Putin. O que a Rússia está a fazer com a Ucrânia agora, os EUA fizeram com muitos países. Joe Biden apoiou as invasões americanas no Vietname, na Somália, no Afeganistão e no Iraque. Washington, Paris e Frankfurt apoiaram os israelitas, os Assad na Síria, os sauditas no Iémen e Sisi no Egito. A lista continua e continua.
O crime climático mais importante no mundo neste momento é o bloqueio económico dos EUA ao Afeganistão. O objetivo deste bloqueio é punir o governo Taliban e o povo afegão por derrotar o exército americano. O bloqueio transformou uma seca grave provocada pelas alterações climáticas e um enorme terramoto numa grave crise de fome.
Uma vitória da Ucrânia contra a invasão russa também fortaleceria o poder da OTAN e do imperialismo americano em muitas partes do mundo.
O terceiro aspecto da guerra é político. Putin é a figura principal no crescente movimento global da direita racista. Outras figuras importantes incluem Modi na Índia, Bolsonaro no Brasil, Trump nos Estados Unidos, Orban na Hungria, Le Pen em França e Duterte e Marcos nas Filipinas. Há muitos mais líderes, em muitos outros países, que constituem essa internacional reacionária, que é uma garantia para o caos climático.
Estes são movimentos de massas. Estes apelam a muitas pessoas da classe trabalhadora de uma forma que o fascismo clássico nunca conseguiu. De diferentes maneiras, combinam apoio ao capitalismo, um ódio apaixonado por elites, racismo e ódio a migrantes, muçulmanos, judeus, gays, lésbicas e pessoas trans.
São movimentos sexistas, patriarcais e abertamente tolerantes à violência, especialmente violência sexual. Modi presidiu durante a violação em massa de mulheres muçulmanas em Gujerat, Bolsonaro e Duterte falaram com tolerância em relação à violação, Trump é aberto na sua brutalidade. Os principais partidos encobrem violações e assédio sexual, a extrema-direita é abertamente permissiva. Putin, em particular, é obcecado pela hostilidade às pessoas trans.
Uma vitória de Putin na Ucrânia seria uma vitória importante para esse movimento reacionário. A derrota e humilhação de Putin seria uma derrota para a extrema-direita globalmente.
Mas há contradições em todo o lado. Para dar outro exemplo, o apoio em quase toda a Europa aos refugiados ucranianos tem sido profundamente comovente. Este apoio é suportado pelos mesmos governos que tratam refugiados da Síria, do Iraque, do Afeganistão e da África com racismo e crueldade ao mesmo tempo.
Então, não é simples e não há respostas fáceis. Temos de compreender as contradições e não tomar partido com nenhum dos líderes do mundo. Ao mesmo tempo, temos de ficar do lado dos invadidos e da revolta popular. Num mundo, em espiral em direção às mudanças climáticas, devemos aprender a ficar ao lado de todos os refugiados e migrantes.
As Consequências Ambientais
O resto deste artigo é sobre as consequências ambientais globais da guerra. Estas são terríveis.
Primeiro, Biden, a UE e os governos por todo o mundo têm usado a guerra para argumentar por um desenvolvimento muito mais profundo e amplo dos combustíveis fósseis – e frequentemente de energia nuclear também. Eles têm tido um sucesso importante em atrasar o impulso para as energias renováveis. O que significa que o caos climático virá mais cedo do que previsto.
Temos de mudar isso.
Em segundo lugar, os preços estão a subir rapidamente em todo o mundo e os preços do trigo, do petróleo e do gás são os que estão a aumentar mais rápido. Isto cria uma ameaça de sofrimento económico para milhares de milhões de pessoas.
Mas estes aumentos de preços não vêm simplesmente da guerra, pois os preços já estavam em subida antes do início desta. Há forças mais profundas em marcha.
Primeiro, o preço da energia. O investimento global em combustíveis fósseis tem vindo a cair há sete anos, desde 2015. [Vejam as tabelas de IEA World Energy Investment 2021.] A razão é a ameaça das alterações climáticas. A maior parte dos investimentos em combustíveis fósseis e centrais elétricas demoram quarenta anos para dar lucro. Os investidores entendem que quando o caos climático se tornar realmente sério, os governos mudarão as políticas e os seus investimentos ficarão retidos.
Por isso, os investimentos em combustíveis fósseis têm diminuído.
Investimentos globais em energias renováveis também têm caído desde 2017. A razão é que o preço da energia renovável tem vindo a diminuir. Isto parece de loucos. Mas isto é o capitalismo.
Sean Sweeney e John Treat da União Sindical pela Democracia Energética (Trade Unions for Energy Democracy) explicam bem esta contradição.
Três coisas estão a acontecer. Primeiro, quando o preço da energia eólica e solar caiu muito, os governos retiraram todos os subsídios para as energias renováveis. Então não havia lucro garantido. Em todos os lugares, os investidores recuaram.
Segundo, agora as energias renováveis são muito baratas. Isso significa que os lucros também são menores.
Em terceiro lugar, as energias renováveis exigem novas redes de electricidade em massa. Os governos não estão a investir o suficiente nisso.
Assim, o investimento em combustíveis fósseis caiu. O investimento em renováveis caiu. O resultado é: o investimento total em energia caiu. Quando a procura recomeçou depois da Covid-19, não havia oferta suficiente.
Nesse momento, a Guerra da Ucrânia foi um ponto de viragem. Levou à redução da oferta de petróleo e gás. Mais importante, fez com que as pessoas receassem que os preços subissem. Com este ponto de viragem, houve muito açambarcamento, lucros inesperados e especulação. Mas o problema de fundo, que é possível que se acentue, é que a energia é insuficiente.
O que precisamos agora é de um investimento massivo em energias renováveis por governos, em todo o mundo. Imediatamente, milhões de Empregos para o Clima. E, entretanto, tributação massiva dos lucros das corporações energéticas.
Só os governos podem fazer isto. Mas agora estão a fazer o oposto, incentivando os combustíveis fósseis.
Alimentação
O preço dos alimentos está a aumentar. Alterações climáticas significam que podemos esperar que a produção de cereais e outros alimentos caia ao longo dos próximos anos, de forma esporádica e combinada. Este processo já começou para algumas culturas, enquanto para outras há divergências entre os cientistas (especulação e apropriação de terras com o propósito de concorrência enlameia tudo). Mas está claro que a crise no preço dos cereais este ano é algo que vai piorar na próxima década.
Aqui também, porém, a guerra na Ucrânia é uma viragem. A guerra bloqueia a exportação de trigo russo e, sobretudo, ucraniano. Isto afeta o preço de todos os cereais a nível mundial. Para além disso, houve aumentos de preços mais amplos. Parte da razão para isto é que ocorreram muitas diferentes quebras nas cadeias de abastecimento globais, especialmente na China, mas também em muitos outros lugares. Cadeias de abastecimento globais não são facilmente ativadas e desativadas.
Não se trata de uma simples crise de inflação por razões econômicas. É uma crise de inflação porque fisicamente não há oferta suficiente. As pessoas não conseguem encontrar comida, energia e bens suficientes.
Os ricos ganham e ficam com a oferta. Os pobres perdem.
Os pobres -a maioria da humanidade- precisam de ajuda.
Nesta situação, sabemos através de gerações de experiência o que acontece a seguir. Especialmente, e mais importante, o que acontece no sul global.
Primeiro, revoltas alimentares. Depois, tumultos e protestos por causa dos preços dos combustíveis para cozinhar, para transporte e para aquecimento. Tumultos e protestos provocados por tudo o resto, na espiral em cascata da crise capitalista. E greves em países com sindicatos fortes.
O que vão as pessoas exigir? O que elas precisarem. Controlos e subsídios nos preços dos cereais, alimentos e combustíveis. É por isto que elas sempre lutam nessas situações. A Guerra da Ucrânia mostra a crueldade de Putin. Mas a crise dos preços mostra a diferente crueldade de Biden e da União Europeia.
Em junho, o Banco da Reserva Federal dos EUA aumentou a taxa de juro de base em 0,75%. Parece pouco, mas é o maior aumento em 40 anos. O Banco Central Europeu anunciou um aumento de 0,25% na taxa de juros e fez uma promessa de maiores aumentos nos próximos meses. Este anúncio irradiará, para que as taxas de juro aumentem em grande parte do mundo. O que provocará uma crise de dívida em muitos dos países mais pobres.
Os aumentos das taxas de juro significam que as pessoas, empresas e países terão menos dinheiro para gastar, porque terão de gastar mais em juros. A teoria económica diz que reduzir a procura desta forma reduz a inflação. Talvez, às vezes. Mas apenas quando a causa da inflação é demasiada procura. O problema desta vez é não haver comida suficiente, energia insuficiente, bens suficientes. Assim, vão ser necessários cortes muito mais profundos na procura para que a inflação reduza.
Em termos simples, cortes profundos na procura significam que muitas, muitas pessoas terão fome, frio e perderão os seus empregos.
Esta é a solução deles. Esta é a política neoliberal de austeridade dominante em todo o mundo mais uma vez, no meio da crise climática, duma forte extrema-direita em muitos países, e guerra na Síria, Iémen, Ucrânia e Etiópia.
O aumento das taxas de juros terá outro efeito. Os países mais pobres não conseguirão pagar as suas dívidas. O FMI vai intervir e insistir que os governos cortem os subsídios para alimentação e energia. Isto é o que eles sempre fazem.
Biden, Lagarde, Macron, Scholtz e os banqueiros, e todos os seus acólitos transformarão tempos maus, em ainda piores e confrontarão populações em alvoroço. De que lado estarão os ativistas pela justiça climática e os ecossocialistas?
Devemos estar com os pobres e trabalhadores em todos os países.
Isto parece óbvio, mas não é. Uma das confusões nesta área é o preço da energia.
Muitos ativistas climáticos, muitos ecossocialistas e muitos ambientalistas confortáveis em países ricos dirão que não podemos subsidiar o preço dos combustíveis fósseis. Não, face às alterações climáticas. Não, este é o momento para começar a transição cortando os combustíveis fósseis.
Está meio certo. Precisamos começar a transição agora. Programas massivos de Empregos para o Clima devem ser centrais para todo o nosso trabalho agora.
Gastos massivos em energia renovável este ano mudarão a situação em cinco anos. Salvarão o planeta em vinte anos. E darão empregos a milhões de trabalhadores agora. Este ano e no próximo ano, as pessoas necessitam de apoio directo para electricidade, aquecimento ou electricidade para ventiladores e ar condicionado nos países quentes, bem como para gasolina para automóveis e gasóleo para autocarros.
Olhem para o Sri Lanka no mês passado: não havia combustível suficiente, portanto não havia suprimentos suficientes para as lojas, electricidade para os hospitais, combustível para a indústria, as pessoas perderam os seus empregos, a economia estava em colapso.
Numa situação de pobreza crescente e sofrimento, não podemos favorecer uma abordagem de decrescimento e encerramento de fábricas. Isso só irá levar a um maior colapso económico.
Temos de lutar por duas coisas ao mesmo tempo. Primeiro, controlo sobre o preço da energia e comida agora, para todos. Segundo, investimento massivo em energia renovável pelos governos, também neste momento. Isto significa programas de Empregos para o Clima imediatamente.
Por isso, precisamos fazer parte do movimento de revolta e argumentar nesse movimento pelo que precisamos para salvar o mundo do caos climático e da repetição deste ciclo introduzido pelo capitalismo.
A direita racista global de Putin, Modi, Trump e outros irá organizar-se em todos os lugares sobre os aumentos dos preços, nomeadamente sobre o aumento do preço da energia. Fizeram-no antes, fá-lo-ão de novo. Se recuarmos, o movimento de revolta irá fortalecer a extrema-direita racista.
Vejamos o exemplo da COVID-19. À esquerda, o movimento pela justiça climática e os sindicatos por todo o lado afastaram-se.
Nós não nos organizámos e lutámos por equipamento protetor. Nós não nos organizámos e lutámos por ajuda do governo para que as pessoas doentes pudessem ficar em casa em segurança. Mal lutámos pela vacinação gratuita global.
Esperámos que as pessoas deixassem de estar obcecadas por causa da COVID-19, e que a política usual retomasse.
Enquanto esperávamos, a COVID-19 dividiu as pessoas por classe. Os trabalhadores nos escritório e os profissionais ficaram em casa. Os mal pagos, os trabalhadores de cuidados de saúde, os trabalhadores manuais, foram trabalhar. Estes morreram em maior número, tiveram medo, e as suas famílias morreram. Havia medo, solidão, um sentimento de traição. Os nossos movimentos, em geral, não abordaram estas questões.
A COVID-19 também dividiu o mundo por classe, com a maioria da população do Sul Global deixada desprotegida. Estas pessoas também aprenderam, uma vez mais, que as pessoas no Norte parecem não se importar com elas.
A extrema-direita em muitos países abordou a dor e a solidão dos trabalhadores manuais. A extrema-direita organizou-se. Eles estavam lá, a trabalhar com as comunidades. O que disseram às pessoas foram loucuras, anti-vacinação, anti-máscaras, mas disseram alguma coisa. E o que disseram deu voz à dor e raiva de classe.
Agora a extrema-direita está mais forte. A extrema-esquerda está mais frágil. E ainda mais grave, o movimento climático está mais fraco. A pandemia da COVID-19 foi uma catástrofe ambiental global, um teste para os horrores das alterações climáticas ainda por vir. Foi uma crise global, assim como o caos climático será. Se o movimento pela justiça climática tivesse lutado como tigres por vacinação gratuita em todo o mundo, nós seríamos muito mais fortes agora.
Nós não o fizemos. Desta vez, vamos ficar ao lado das pessoas que estão a sofrer.
Este é um artigo da revista Fight the Fire, traduzido por nossos ativistas.
Para ler o artigo original: Climate Politics and the Ukraine War – Fight The Fire (fighthefire.net)