Sobre 2022 pode-se dizer que estamos sob uma avalanche de fenómenos de escala histórica cuja sociedade é incapaz de processar e cuja comunicação social não interpreta e expressa, e menos ainda de avalia criticamente, em particular omitindo as suas causas
Não existe maneira de simplificar: 2022 foi um impiedoso desastre. Os efeitos do que aconteceu este ano ecoarão durante décadas a séculos, mas longe de haver qualquer aprendizagem sobre isto, o que os gestores do sistema estão a fazer é tentar que o próximo ano seja ainda pior.
O dado mais preocupante do ano, aquele que nos garante que o que se passou em 2022 não é passageiro, é o facto do recorde de emissões de gases com efeito de estufa à escala global ter sido novamente batido. Com um aumento de 1% em relação a 2021, já se ultrapassou o decréscimo de emissões que aconteceu durante a pandemia. Este aumento foi liderado pela crescente queima de combustíveis fósseis, em particular nos Estados Unidos e na Índia.
O volume de eventos extremos este ano, quer de natureza meteorológica, quer de natureza social, económica e política, faz com que a maior parte tenha sido simplesmente varrida da nossa cabeça e consciência coletiva, porque efetivamente não temos capacidade de processamento do que nos está a acontecer, e as instituições que gerem o capitalismo global ainda menos. A crise do custo de vida, intrinsecamente ligada com o gás de que tanto da economia europeia depende, afigura-se como a crise que vai precipitar uma nova recessão global. Essa é a decisão de governos e bancos centrais. Estas instituições decidiram que preços e inflação serão reduzidos pelo aumento das taxas de juros, isto é, por incumprimento generalizado de empréstimos falências, bancarrotas, desemprego e austeridade.
Dir-se-ia que estamos a observar uma avalanche. Sentimo-nos confortáveis, observando a neve a descer do topo das montanhas. Estamos abaixo, mas longe o suficiente para ver o espetáculo. Primeiro precipita-se sobre os vales, sobre as árvores, e a velocidade parece que vai aumentando. Depois, a avalanche começa a subir desde o fundo do vale, e cada vez está mais próxima de nós. Se calhar não estamos numa zona assim tão segura. Começamos a suar. A avalanche não está a abrandar.
A temperatura média global do ano esteve 1.15ºC acima da era pré-industrial, o que fará deste ano o 5º ou 6º ano mais quente alguma vez registado. Isto ocorre no terceiro ano consecutivo em que estamos sob o fenómeno “La Niña”, que em geral baixa a temperatura. No próximo ano não haverá La Niña, pelo que se espera um aumento ainda maior de temperatura.
Este foi um ano de grandes perdas nos glaciares de todo o mundo. Todos os recordes de degelo nos Alpes Europeus foram batidos, com diminuição de entre 3 e 4 metros de espessura do gelo. Nos Alpes Suíços, o volume de gelo reduziu-se em 6,2%. Em Zermatt, cidade suíça na sombra do Matterhorn, a temperatura chegou aos 33ºC a 1620 m de altitude. Pela primeira vez, registou-se uma perda generalizada de gelo nos cumes em Julho, garantindo que não houve acumulação de gelo novo. O ciclo da água nos Himalaias também está em ruptura, com o gelo permanente na cordilheira asiática a derreter cada vez mais rapidamente, levando ao colapso de glaciares, a deslizamentos de terras e cheias a jusante.
O movimento pela justiça climática saiu à rua em grande número e em grandes ações, desde a mobilização de cientistas no Scientist Rebellion, à Letzte Generation, ao movimento pela abolição da dívida para financiar a ação climática, Debt for Climate, ao Just Stop Oil no Reino Unido e as ocupações de escolas pelo End Fossil Occupy. A degradação climática visível está a levar à radicalização do movimento e às articulações com outras causas, nomeadamente a do aumento do custo de vida relacionado com a utilização de gás. Das ações mais espampanantes como atirar sopa às molduras de quadros à sabotagem de uma fábrica de cimento em França, o movimento bloqueou estradas e refinarias, portos e aeroportos, ocupou escolas e marchou em ruas por todo o mundo. Esta subida de atividade tem levado a uma escalada de repressão por parte de governos e sistemas judiciais um pouco por todo o mundo, com detenção e prisão de centenas de ativistas, em particular no Reino Unido, Alemanha e a Austrália. Em Portugal, um juiz condenou quatro ativistas da ocupações pelo Fim ao Fóssil por ocuparem pacificamente a sua própria Faculdade de Letras. O sistema defende-se e, neste momento, defende o colapso climático.
Em Portugal, entre outras atividades, o movimento pela justiça climática organizou uma Caravana pela Justiça Climática que percorreu a pé e de comboio mais de 400km entre algumas das zonas mais afetadas pela crise climática, pelos incêndios e seca. Em Julho invadiu a Refinaria de Sines da Galp, a maior emissora do país, para apresentar um plano para a transição justa na região de Sines, e no Outono apoiou a ocupação de seis escolas pelo fim ao Fóssil.
As “boas notícias” do ano não causaram até ao momento qualquer obstáculo à espiral descendente onde estamos. A eleição de Lula da Silva, travando Bolsonaro, não representa uma reversão na política extrativista que o mesmo já seguiu no passado. O “Inflation Reduction Act” de Joe Biden está muitíssimo aquém de um Green New Deal útil para travar o colapso climático e este ano as emissões nos Estados Unidos aumentaram mesmo 1,5%. A excitação com um experimento de fusão nuclear bem sucedido, que poderá ser útil em escala daqui a décadas, de nada serve atualmente senão para distrair da necessidade de corte massivo de emissões de gases com efeito de estufa até 2030. Sobra o acordo para a biodiversidade de Kunming-Montreal que, como de costume, é duvidoso que possa ser implementado de forma eficaz.
É muito importante revermos uma parte do tanto que nos aconteceu este ano, para que a cronologia ajude a nossa memória e nos situe no momento.
Aquecendo o lume: de Janeiro a Junho
Em Janeiro e Fevereiro bateram-se recordes de temperatura na América do Sul, com chuvas torrenciais em Petrópolis, no Brasil, que criaram cheias e deslizamentos de terras que mataram mais de 230 pessoas (em Março houve nova tragédia na cidade). Três tempestades em sequência atingiram Madagascar (Ciclone Emnati, ciclone Batserai e tempestade tropical Dumako), devastando o país. Em Março, o Ciclone Gombe atingiu Moçambique em Nampula, matando perto de cinquenta pessoas. Em Abril, a tempestade tropical Megi levaria a deslizamentos de terras nas Filipinas, matando mais de 200 pessoas.
No final de Fevereiro, a Rússia invadiu a Ucrânia, numa ação militar que provocou o caos na Europa, exacerbou a crise energética que já tinha começado com a especulação das empresas de petróleo e gás e aumentou as tensões sobre o comércio alimentar. A tensão alimentar verifica-se em particular nos cereais (trigo, milho, cevada), porque a Rússia e a Ucrânia estão entre os primeiros produtores e exportadores mundiais.
Em Março e Abril a Índia, o Paquistão e o Bangladesh já sofriam sob fortes ondas de calor, enquanto no Quénia, na Somália e na Etiópia a seca criava condições para uma crise alimentar que afectaria mais de 20 milhões de pessoas (é o quarto ano consecutivo em que chove abaixo das necessidades para a produção agrícola na África Oriental). Em Maio, várias zonas do Bangladesh começaram a ficar inundadas, afetando diretamente milhões de pessoas, o que se prolongou até Junho. O degelo dos glaciares, o aumento dos caudais dos rios e a chuva intensa precipitaram a situação.
Em Março, começaram protestos no Sri Lanka, combinação da inflação galopante, escassez alimentar e energética. A queda na produção agrícola levou o país de exportador a importador de arroz num ano. Houve uma escalada nas manifestações contra a família Rajapaksa e o Estado subiu a repressão contra os milhões de manifestantes.
O mundo a ferver: Julho a Setembro
Um dilúvio caiu sobre o Paquistão e a Índia em Julho e Agosto. As cheias no Paquistão mataram pelo menos 1700 pessoas, inundaram um terço do país e provocaram a deslocação de 33 milhões de pessoas, combinando o efeito das chuvas e o degelo de milhares de glaciares nas zonas altas à volta do país. A escala deste evento é de difícil compreensão, já que há uma mudança geológica e social neste momento em plena operação, que durará décadas, se não séculos, a estabilizar. Se houver a possibilidade de estabilizar. Algumas zonas do país estão debaixo de água há meses.
Na China, entretanto, desenrolou-se a maior e mais longa onda de calor alguma vez registada no país, com os rios Yangtze e Wuhan sem água em vários troços. A produção industrial esteve paralisada em várias cidades durante extensos períodos, já que a energia teve de ser cortada ou dirigida a arrefecer casas e hospitais. A circulação nas ruas tornou-se em vários momentos restrita por motivos de saúde pública, em particular para as pessoas mais vulneráveis.
A Europa assou sob temperaturas recorde, com onda de calor atrás de onda de calor. No velho continente, que é o que está a sofrer os maiores aumentos de temperatura, ocorreu a maior seca dos últimos 500 anos. Enquanto no Reino Unido a temperatura chegou ao extremo de 40ºC, largos trechos dos rios Reno, Danúbio, Tejo, Ebro ou Tamisa estavam secos e toda a navegação esteve impossibilitada. No meio desse cenário, incêndios florestais voltaram a varrer o Mediterrâneo. Muitas paisagens submersas há décadas ou séculos voltaram a ficar à vista, incluindo aldeias submersas por barragens e as “pedras da fome” na República Checa e na Alemanha. A produção de eletricidade a partir de barragens e de energia nuclear baixou drasticamente, por escassez de água, o que combinando com restrições de gás, fez com que a Europa dependesse quase exclusivamente de energia solar e eólica, que ainda não construiu em quantidade sequer próxima do necessário para ter segurança energética. Uma parte da indústria do centro da Europa está suspensa ou reduziu a produção por causa de falta de energia. A produção de milho na Europa terá caído 16%, de soja 15% e de girassol 12%, aumentando ainda mais a tensão sobre o preço dos alimentos.
No meio de Julho houve um acordo breve entre a Rússia e a Ucrânia para abrir os portos de Odessa, Pivdenny e Chornomorsk, no Mar Negro e deixar alguns cereais dos milenares Trilhos Negros rumarem a outros países. Avanços e recuos, encerramentos e bombardeamentos de portos e navios nos meses seguintes alimentariam especulação e incerteza no abastecimento alimentar.
Perto desta altura, milhares de manifestantes invadiram o palácio presidencial em Colombo no Sri Lanka, derrubando a família no poder e criando poderosas imagens de contraste entre a miséria popular e a luxuosa mansão do poder político.
A temperatura continua a subir nos oceanos, que estão mais energéticos, continuando a provocar cada vez mais tempestades que também são cada vez mais intensas. Este ano, 55% dos oceanos experimentaram pelo menos uma onda de calor marítima. No verão, no Mediterrâneo, a água chegou a estar 5ºC acima da média dos últimos trinta anos. Com estas temperaturas, muitas espécies e a vegetação marítima colapsaram.
Especulação, revolta, repressão e o maior espetáculo do mundo: Setembro a Dezembro
Em Setembro, a sabotagem dos gasodutos Nordstream 1 e 2 tirou das mãos de Vladimir Putin diretamente para as mãos das empresas de gás ocidentais e do Golfo Pérsico o controlo sob o poder da especulação e da determinação unilateral dos preços da energia. Os lucros históricos obtidos por estas empresas transformaram-se em preços sem comparação na Europa, reverberando por todo o mundo. Cheias na Nigéria acentuaram esta pressão, acrescentando poder aos países do Golfo Pérsico.
A época de furacões no Atlântico deixa como grandes registos Fiona, Julia e Ian. O Furacão Fiona notabilizou-se por durar muito tempo, formando-se perto da costa ocidental de África, dirigindo-se para as Caraíbas e subindo até ao Canadá oriental, onde se dissipou. Matou várias dezenas de pessoas em Puerto Rico e foi o furacão mais forte de sempre a chegar ao Canadá. O Furacão Ian deixou 11 milhões de pessoas em Cuba sem eletricidade antes de seguir para a Florida, onde mais de 2.4 milhões de pessoas ficaram sem eletricidade e pelo menos 140 morreram. O Furacão Julia matou mais de 90 pessoas devastando Colombia, Venezuela, Nicarágua, Honduras e El Salvador. É um dos furacões atlânticos que chegou mais a Sul de sempre. Enquanto isto acontecia, no Pacífico o Tufão Merbok chegava ao Alasca, alimentado pelas águas quentíssimas para aquela altura do ano. Produziu ondas de 15m no Estreito de Bering, inundando várias comunidades do litoral, em particular indígenas, em plena época das colheitas.
Em Outubro, aquele que era então o homem mais rico do mundo, Elon Musk, comprou a rede social Twitter, desencadeando uma ressurgência de negacionismo climático que ultrapassou em grande escala o trumpismo. A obsessão com o mito do self-made man, focada em Musk, tem-se revelado muito útil ao renascimento cultural da extrema-direita, compensando as derrotas de Bolsonaro e Trump. O negacionismo climático, no entanto, continua a colidir com os termómetros. Em 2022 ocorreu o Outubro mais quente alguma vez registado na Europa, o rio Mississipi secou em vários trechos do seu percurso, impedindo a navegação marítima em pleno Outono, e no fim do mês a tempestade tropical Nalgae matou mais de 100 pessoas, uma vez mais nas Filipinas.
Em Novembro realizou-se a enésima cimeira inútil do clima, a COP27, desta vez organizada por e para a indústria petrolífera, na estância turística de Sharm-El-Sheik. Os cantos de sereia do institucionalismo apelam a cada vez menos incautos, e o movimento pela justiça climática – em grande medida por impossibilidade física – afastou-se deste processo institucional que foi, nos seus próprios termos um sucesso, já que travar a crise climática deixou há muito de ser o objetivo desta cimeira comercial. Foi também este mês que começou aquela que provavelmente é uma das maiores lavagens da história a um estado islâmico sob um regime medieval: a realização do Mundial de Futebol no Qatar. Os estádios erigiram-se sob os cadáveres de milhares de escravos pagos com o dinheiro do gás que está a cozinhar o planeta. As elites políticas, económicas e desportivas uniram-se para prestar vassalagem ao emirado, com pequenos gestos inúteis que não apagam a vergonha e a amnistia à barbárie. Os dividendos económicos e políticos retirados pelo Qatar são a maior evidência do colapso de qualquer espécie de vergonha democrática que ainda subsistia nas elites que gerem o capitalismo europeu. A detenção de uma vice-presidente do Parlamento Europeu, acusada de suborno como outros, incluindo o secretário-geral da ITUC (confederação sindical) foi o corolário da bem sucedida estratégia Qatari, que usa a dependência europeia de gás como salvo-conduto para todas as eventualidades. E o plano da Europa continua a ser mais gás.
Uma grande área da América do Sul, incluindo partes da Argentina, Bolívia, Chile, Paraguai e Uruguai sofreu duas ondas de calor consecutivas entre o final de Novembro e o início de Dezembro. Este mês, incêndios florestais de grande dimensão devastaram os eucaliptais no Chile.
Em Portugal, depois de uma vaga de frio, chuvas intensas assolaram várias partes do país, em particular Lisboa. Dois episódios de forte precipitação provocaram cheias que bloquearam a capital e algumas zonas do Alentejo. Nas segundas cheias, bateram-se recordes de precipitação em 24 horas, que combinados com a crónica má construção e impermeabilização da cidade, provocaram enormes prejuízos para a vida de milhares de pessoas.
Nos Estados Unidos ocorreu a maior onda de frio dos últimos cinquenta anos, com vários estados a experimentarem simultaneamente temperaturas abaixo dos -30ºC (-41ºC no Wyoming, -45ºC no Montana) e quedas abruptas de temperatura, caindo até 26ºC em menos de duas horas (de 8ºC para -18ºC no Colorado). Morreram dezenas de pessoas – várias delas presas dentro dos seus carros – e a infraestrutura elétrica falhou em vários locais, com milhões de pessoas presas no escuro e no frio, enquanto nevava abundantemente. Mais de 150 milhões pessoas estão nos territórios afectados por este ciclone-bomba, uma tempestade glacial com ventos de mais de 120km/h e temperaturas que matam em minutos.
Concluindo, em termos climáticos, sobre 2022 pode-se dizer que estamos sob uma avalanche de fenómenos de escala histórica cuja sociedade é incapaz de processar e cuja comunicação social não interpreta e expressa, e menos ainda de avalia criticamente, em particular omitindo as suas causas.
O cenário devastador não deve ser interpretado como desmotivador. Não temos tempo para isso. Conhecer a realidade é o primeiro passo para agir, mas precisamos agir, com mais força do que nunca. As instituições só têm um plano, que repetem todos os dias: aceitar o colapso. A força da juventude que se mobiliza indica o caminho, mas a juventude não pode caminhar sozinha. Numa sociedade em que é promovida a mesquinhez e a cobardia, em que só nos dizem que temos de safar-nos ou procurar oportunidades para enriquecimento, precisamos de recuperar a coragem, porque as narrativas do passado não servem para o tempo em que vivemos. Temos de parar o caminho para a colapso.
Sim, conseguimos mudar. Sim, somos responsáveis pelo sítio onde vivemos. Sim, temos coragem. Sim, somos milhões de pessoas que não vão aceitar ficar paradas a assistir enquanto o futuro é atirado precipício abaixo.
Artigo originalmente publicado no Expresso a dia 29 de Dezembro de 2022.