55/55 ou: Os perigos da procrastinação – Luis Fazendeiro

Se pesquisarmos por “55/55” num motor de busca da internet, uma das primeiras entradas que nos surge é um verso belíssimo do Corão: “So which of the favours of the Lord would you deny?”. Mas, e na senda do grande repórter da RTP Luís Arriaga, neste artigo vamos falar de algo muito diferente.

55/55 refere-se aqui ao Acordo de Paris (ADP), negociado por 195 países em Dezembro de 2015, e assinado por 178 deles. Acordo esse que está muito longe de ser o que necessitávamos para garantir um planeta habitável e seguro para as gerações vindouras, mas que representou ainda assim um passo de gigante na senda das negociações internacionais, dadas as baixas expectativas.

Um facto que talvez seja um pouco menos conhecido é que o ADP, com todos os problemas e insuficiências que manifestamente contem, apenas entrará em vigor 30 dias após 55 países, responsáveis por pelo menos 55% das emissões de gases de efeito de estufa (GHG), o ratificarem. E ratificar, de acordo com o glossário das Nações Unidas, significa um Estado “obter a aprovação necessária para o tratado ao nível interno e promulgar a legislação necessária para dar efeito interno a esse mesmo tratado.”

Dado o alívio com que a aprovação do ADP foi recebida e a fanfarra mediática que se lhe seguiu, seria talvez de esperar que a maioria dos países fizesse tudo ao seu alcance para o ratificar o mais rapidamente possível. Na verdade, uma consWEB.4.23.CARTOON-640x448-procrastulta rápida ao sítio das Nações Unidas mostra-nos que até agora apenas 19 países entregaram os mecanismos necessários de ratificação. Pior ainda, esses 19 países equivalem a uma fracção mínima de 0.18% das emissões de GHG. Quase todos eles são pequenas nações-ilha, como as Fiji, Maldivas, Maurícias ou Tuvalu, os primeiros países a sofrer de forma mais dramática os impactos das alterações climáticas, incluindo o provável desaparecimento de todo o seu território devido à subida no nível do mar. A única excepção é a Noruega, curiosamente o maior produtor de hidrocarbonetos da Europa Ocidental.

Para ajudar a perceber melhor o contexto, caso a China, Estados Unidos e União Europeia ratificassem o Acordo, o número de países subiria logo para cerca de 49 (se incluirmos o Reino Unido…) e a percentagem de emissões para muito perto dos 50%. Bastaria então alguns dos países com emissões mais elevadas, como o Brasil (que já demonstrou a sua vontade de ratificar em breve), Índia ou Japão aderirem para o Acordo, negociado há mais de 7 meses, entrar em efeito. Por outro lado o candidato a presidente dos Estados Unidos Donald Trump já disse claramente o que faria caso fosse eleito. E aqui há que ter em conta que o ADP acabou por não ser vinculativo em grande parte devido à pressão de Obama, para que este não tivesse de ir a votação num Congresso controlado por um partido radical de extrema-direita, que nem sequer reconhece a ciência moderna. Neste ambiente tóxico da política norte-americana é difícil de perceber porque razão o presidente incumbente não está fazer todos os possíveis para que o seu país ratifique o Acordo ainda antes do final deste ano.

Por outro lado, já o anterior Protocolo de Quioto fez uso da mesma regra, 55 países com pelo menos 55% das emissões, para entrar em vigor. E aqui a História talvez nos possa servir de aviso. Tendo as suas negociações finalizado em Dezembro de 1997, apenas entrou em vigor em Fevereiro de 2005, passados mais de 7 anos! Como se isso não fosse bastante, as emissões de GHG a nível mundial aumentaram 25% entre 1997 e 2010, à revelia de tudo o que tinha sido acordado pelas Nações Unidas.

De modo a ficarmos abaixo dos 2ºC de aumento de temperatura média global, o limite acordado em Paris e a partir do qual existem enormes probabilidades de se começar a despoletar mecanismos de feedback positivo potencialmente catastróficos e irreversíveis, o mundo precisa de começar a reduzir as emissões de GHG a uma taxa de ~6% por ano. De momento esse valor parece antes andar por volta de 0%, o que significa que pelo menos as emissões parecem ter parado de aumentar, embora nem isso seja ainda certo. O preço de não fazermos nada, o preço da procrastinação a nível global, começa a ser cada vez mais visível, dia após dia.

Se o processo de ratificação do Acordo não avançar com toda a velocidade, várias conclusões começam a parecer óbvias. Em primeiro lugar, talvez todo este processo não passe de uma manobra de distracção, com poucos ou nenhuns governos, excepto os das já citadas nações-ilha, verdadeiramente interessados em travar a crise climática. A verificar-se, este cenário compromete seriamente a credibilidade das Nações Unidas, numa altura em que as crises que atravessamos são cada vez mais de carácter global e exigem profunda cooperação entre os países.

Por outro lado, toda esta procrastinação lança um sinal claro às empresas de hidrocarbonetos de que não precisam de se preocupar e podem continuar com o mesmo modelo de negócio das últimas décadas por muito tempo ainda. Como exemplo, as indústrias de gás e petróleo gastaram já cerca de 60 milhões de euros no processo de prospecção em Portugal, de acordo com a ENMC. Tudo isto em busca de reservas que muito provavelmente não vão poder utilizar, a menos que destruamos todas as nossas hipóteses de um planeta habitável.

Se esse dinheiro tivesse sido antes aplicado, por exemplo, em geração eólica, poderia corresponder a um total de pelo menos 44 MW de nova capacidade acrescentada à rede de electricidade portuguesa, segundo dados de 2014, um valor modesto (menos de 1% da capacidade de geração eólica actual), mas nem por isso desprezável. Note-se ainda que na geração eólica, tal como na solar, a maioria do custo está na instalação, o combustível (vento) é inteiramente grátis, ao contrário dos combustíveis fósseis. Ou seja, depois do investimento inicial, as empresas têm muito poucas despesas.cartoon-by-ron-tandberg-down-there

Vale a pena repetir. Estas companhias, onde se incluem Repsol, Partex e Galp, preferem gastar 60 milhões de euros em busca de novos reservas de combustíveis fósseis, que talvez nunca venham a poder usar, em vez de investir em energia renovável já, ter o seu investimento coberto num prazo de poucos anos e ver a sua quota de mercado a aumentar. É difícil pensar num sistema económico em que isto possa fazer sentido, a menos que as regras tenham sido completamente distorcidas e tenham pouca ou nenhuma ligação com a realidade física em que todos vivemos. O que parece ser o caso. A aposta deles, que claramente tem sido acertada até aqui, é que a comunidade internacional pouco ou nada vai fazer para resolver o problema e que nas últimas décadas de vida do petróleo, quando as reservas escassearem e o preço for exorbitante, eles farão lucros (ainda mais) astronómicos, mesmo que num cenário de caos global.

E o que fazer nesta situação? Tudo aquilo que possamos! Aderir a um movimento activista. Tomar parte na campanha contra a exploração de gás e petróleo em Portugal. Propôr soluções para o problema e lutar para que estas sejam implementadas. Parafraseando Theodore Roosevelt, “Confrontados com uma crise, a melhor coisa que podemos fazer é tomar a decisão certa, a próxima melhor coisa é tomar a decisão errada. A pior coisa que podemos fazer é não fazer nada.”

Somos nós as pessoas de quem temos estado à espera!

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