[Artigo publicado no jornal Público em 5 de novembro de 2016]
A ratificação do Acordo de Paris pelo Parlamento Europeu fez com que este acordo geral climático entrasse em vigor, ultrapassando a barreira dos países responsáveis por mais de 55% das emissões de gases com efeito de estufa à escala mundial. A Europa juntou-se aos Estados Unidos e à China no lote dos grandes poluidores que aceitaram a urgência da redução das emissões de gases para tentar evitar alterações climáticas descontroladas, acima da barreira dos 2ºC de aumento de temperatura. No entanto, a União Europeia tem os seus planos próprios, entre os quais estão a Estratégia Europeia de Energia e a União Energética.
Estes planos têm um denominador comum: o gás. É anunciado como combustível de transição para uma economia de baixo carbono, uma vez que a sua combustão origina menos gases com efeito de estufa do que o carvão ou o petróleo, e tem sido aposta reiterada da União Europeia para teoricamente alimentar uma transição energética para a ascensão das energias renováveis. Estas estratégias respondem ainda ao problema geoestratégico da ascensão russa, no que é definido como diversificação, isto é, acabar com as importações de gás da Gazprom russa. Tal seria feito através da substituição de importação de gás da Rússia por gás do Azerbeijão, da Argélia, da Líbia e de gás de xisto proveniente dos Estados Unidos, Canadá e Austrália.
Esta estratégia assenta na negação da realidade, nomeadamente no facto do gás estar em evidente declínio na Europa: o consumo real de gás caiu 10% desde 2010, está em queda em todos os sectores da Economia, as projecções (exceptuando as dos produtores de gás) revelam que a queda continuará. Além disso, só entre 2000 e 2014 o preço do gás natural triplicou, segundo a BP. Nada que impeça a União Europeia de tentar revitalizar e até inventar um novo monopólio fóssil: nas linhas de orientação para a criação das infraestruturas de uma futura Rede Transeuropeia de Energia, a UE estabeleceu um regime de “Projectos de Interesse Comum” (PCI), financiando infraestruturas com 5,85 mil milhões de euros até 2020.
Do orçamento europeu, isto é, dos nossos impostos, foram entregues 612 milhões de euros para infraestruturas de gás em 2015 e 2016, estando previstos mais 930 milhões de euros dos fundos de desenvolvimento regional e coesão até 2020 para o mesmo fim. O Banco Europeu de Investimento e o Banco Europeu para a Reconstrução e o Desenvolvimento entrarão com o resto do dinheiro. O objectivo é criar uma política de facto consumado que prenda o futuro da Europa ao gás, aumentando em 58% as suas infraestruturas, em conflito directo com os objectivos climáticos e com a expansão das energias renováveis e dando, uma vez mais, um enorme apoio com dinheiros públicos às petrolíferas.
A União Europeia prevê expandir a sua rede de gasodutos em mais 3761km, a maior parte dos quais no corredor Transadriátrico que viria do Azerbeijão até Itália, expandir os terminais portuários de Gás Natural Liquefeito (já espalhados um pouco por toda a Europa e que funcionam a menos de 30% da sua capacidade, isto é, sobredimensionados para receber mais dinheiro do que aquilo que valem), entre os quais está o Terminal de Gás Natural do Porto de Sines. Curiosamente a Comissão Europeia anuncia como projecto futuro um gasoduto entre Celorico da Beira e Zamora, em Espanha, projecto conjunto da REN e da ENAGAS, no valor de 505 milhões de euros. Talvez venhamos um dia a ouvir falar dele.
O Comissário Europeu da Energia e Clima, o espanhol Arias Cañete, ex-presidente de duas petrolíferas, afirmava em 2015 que o gás é a ponte de transição entre o carvão e as renováveis, e que “ainda estará por cá em 2050”. É a “transição” mais confortável que a indústria petrolífera alguma vez poderia sonhar: já o faz há décadas, não implica nenhuma transição tecnológica e o único investimento sério é o das infraestruturas de distribuição, que como já se viu, prepara-se para ser garantido através do dinheiro público. E continua a emitir gases com efeito de estufa.
No fim interessa saber se de facto o gás emite menos gases com efeito de estufa. Segundo avaliação nos Estados Unidos, onde a revolução do gás de xisto extraído por fracking catapultou a produção de gás para níveis de produção sem paralelo, o gás “natural” emite mais gases com efeito de estufa do que o carvão. Sim, a energia limpa, de “transição”, principalmente porque não se vê, contribuirá mais para as alterações climáticas do que os outros fósseis. Porquê? Porque o gás é composto principalmente por metano, que tem um poder de efeito de estufa 72 vezes superior ao dióxido de carbono.
E se a sua queima produz menos dióxido de carbono do que a queima do petróleo e do carvão, a verdade é que o nível de perdas na extracção, armazenamento e distribuição é bastante significativo (entre 1,8% e 3,8%), libertando directamente metano na atmosfera. Recentemente nos Estados Unidos uma equipa de cientistas realizou ensaios aéreos de medição de metano perdido sobre as zonas de fracking de gás de xisto e registou perdas entre 5 e 12% (só na extracção).
Assim, o gás extraído de forma convencional emite mais gases com efeito de estufa do que o carvão. O gás extraído através de fracking emite mais do dobro dos gases com efeito de estufa do que o carvão. Este ano chegou o primeiro navio metaneiro com gás de xisto ao Porto de Sines, o Creole Spirit, vindo do Louisiana (EUA). Estima-se que tenha perdido 0,6% do metano que transportava por dia. Em 20 dias, libertou 12% da sua carga em metano directamente para a atmosfera.
Em Portugal, o conforto para a indústria petrolífera em Portugal é um governo conformado com 15 concessões de petróleo e gás. Também aqui há quem anuncie a extracção limpa de gás, em terra e no mar, como combustível de transição para uma mudança energética. Na Europa, o gás e as estratégias europeias de energia baseadas no mesmo são apenas uma bóia de salvação, um gigantesco bailout às petrolíferas, uma vez mais feito à custa do dinheiro público, que garante que as alterações climáticas continuam a dirigir-se para o patamar da catástrofe.