O fracasso das negociações de Marraquexe para implementar o Acordo de Paris, representando apenas a última desilusão de um processo com 22 anos sem avanços na travagem do aquecimento global, é o momento-chave para definir os campos de batalha pelo clima: em cada novo projecto de combustíveis fósseis pelo planeta luta-se contra a catástrofe. Mas o combate ao capitalismo suicida conta ainda com demasiado poucos militantes.
Em 22 anos, a Convenção-Quadro das Nações Unidas nunca conseguiu fazer com que as emissões de gases com efeito de estufa se reduzissem. O Protocolo de Kyoto, forçado pelos Estados Unidos para evitar a imposição um imposto sobre as emissões de carbono, não foi ratificado por três países: o Sudão, o Afeganistão… e os Estados Unidos, o maior emissor de gases com efeito de estufa à data. Mesmo sem este país, o Protocolo não conseguiu reduzir as emissões nos restantes. O único período nos últimos 22 anos em que as emissões se reduziram foi durante a crise financeira de 2007-2008. No ano seguinte, retomaram a sua ascensão, que continuou até 2015, primeiro ano em que tiveram crescimento zero. Em 2016, as emissões retomaram um modesto crescimento ascendente. Estamos neste momento no terceiro ano consecutivo em que se bate o recorde de temperaturas médias globais. 2016 será o ano mais quente desde que há registos. Entretanto os Estados Unidos foram ultrapassados pela China em emissões (largamente devidas à indústria que alimenta o resto do planeta de tecnologia e outros produtos), embora ocupem o primeiro lugar na produção de combustíveis fósseis, muito à custa da “revolução” do fracking, técnica da fractura hidráulica que envolve a destruição do subsolo com mais de seis centenas de químicos diferentes, contaminando solos, águas, subsolo e atmosfera para obter gás e petróleo de difícil extracção. Para o Acordo de Paris, uma vez mais os países do mundo adaptaram as negociações para Barack Obama conseguir ultrapassar a Câmara dos Representantes, e por isso o acordo não é vinculativo. Um ano depois, a vitória de Trump ameaça tornar um acordo impotente num acordo inexistente. A ascensão da China como “líder” no processo de transição para as energias renováveis demonstra como de facto a vanguarda do capitalismo industrial se deslocou definitivamente para esse país onde se coordena a produção com uma mão-de-obra massiva e basicamente escrava. A China posiciona-se na frente de uma nova revolução industrial que mudará a produção energética, respondendo à sua própria falta de recursos como o petróleo e o gás e baseando-se no carvão, no nuclear, no vento e no solar. Os Estados Unidos sob Trump terão dificuldades em conseguir responder e uma aliança com a Federação Russa de Vladimir Putin pode ser a grande coligação final em defesa dos combustíveis fósseis.
Paradoxalmente, é hoje o “mercado” que lidera a transição energética, com o investimento privado em energias renováveis a ultrapassar o investimento privado em fósseis no ano de 2015. As empresas fósseis dependem dos estados para sobreviver, com o investimento público, os subsídios e os perdões fiscais em fósseis a suplantarem as renováveis numa escala de 4 para 1. O capitalismo de Estado, tal como preconizado na visão eleitoral proto-fascista protecionista de Donald Trump, é a única possibilidade de sobrevivência das indústrias do carvão, do petróleo e do gás.
Hoje, os conflitos ambientais contra a exploração de fósseis e demais formas de extractivismo não são apenas lutas locais pelo ambiente, senão conflitos abertos pelos bens comuns, pela água, pelo ar, pelos solos e pela terra. Os conflitos anti-fracking no Brasil, em Inglaterra, em Itália, no Estado Espanhol, na Argélia, na Roménia e em muitos outros locais são os principais campos de batalha contra as alterações climáticas. Os conflitos contra as infraestruturas de transporte e armazenamento de fósseis, contra a construção de oleodutos e gasodutos nos Estados Unidos como o Keystone XL ou Standing Rock no Dakota do Norte, como Kinder Morgan no Canadá, como o MedCat na Catalunha, a central de armazenamento de gás no Parque de Doñana ou o gigantesco Transadriátrico do Azerbeijão até Itália, são e serão os campos de batalha contra as alterações climáticas. Perante a necessidade de manter-se o aumento da temperatura na ordem dos 2ºC quando comparado com a era pré-industrial até 2100, o orçamento de carbono exige que 80% das reservas conhecidas de combustíveis fósseis não podem ser exploradas, isto é, que nenhum novo projecto de exploração de fósseis pode avançar. Significa também que nos próximos 15 a 20 anos o planeta tem de entrar num declínio vertiginoso do consumo de combustíveis fósseis. Nada menos do que uma revolução (social, económica, produtiva, energética, alimentar, de transportes e comércio) alcançará isto.
Em Portugal, as 15 concessões de prospecção e exploração de gás e petróleo são o primeiro campo de batalha no combate às alterações climáticas. Aljezur, Tavira, Batalha, Pombal e todos os municípios do litoral, desde Vila Real de Santo António até ao Porto são os mais evidentes locais onde este combate tem de se intensificar. Isto significa pouco menos do que todo o país. Intensificar este combate significa também levá-lo às suas consequências óbvias: se não podemos obter a nossa energia a partir de combustíveis fósseis, como fá-lo-emos? Em Portugal a inexistência de cooperativas de produção energética local (com excepção da Coopérnico) dificulta passos decididos nesta direcção. A nacionalização da EDP e da REN em favor do Estado Chinês é um monstro contra uma mudança democrática na produção energética e porventura um dos maiores crimes perpetrados pelo anterior governo PSD-CDS, mas facilita escolhas que poderiam ser espinhosas: não será a partir de gigantescas fontes concentradas de energia, quer barragens, quer centrais eléctricas de ciclo combinado (o gás “natural” emite tantos ou mais gases com efeito de estufa do que o carvão), quer gigantescas instalações de energia solar ou energia eólica que se poderá fazer esta transição, mas sim a partir de uma deslocalização da produção. Não nos enganemos: a tecnologia para esta transição energética existe, mas também tem impactos ambientais. A questão é que neste momento não existe nenhuma dúvida que o corte de emissões de gases com efeito de estufa é a prioridade absoluta. Concorremos neste campo com uma panóplia de enganos: carros eléctricos, biocombustíveis, gás natural como “energia de transição”. O capitalismo verde não está preocupado em cortar emissões, está preocupado, como sempre, em obter lucro. A criação de campanhas massivas de desinformação e da ideia de transições suaves num clima em convulsão é apenas mais uma fraude: a redução de consumos energéticos e a conservação de solos e águas é imprescindível. Dirão que isso significa “viver nas cavernas”. O business as usual, ou mesmo a “transição suave” do capitalismo verde (que não corta as emissões e em muitos casos até as aumenta enquanto massaja o cérebro descontraído de quem não aceita mudar de vida) significarão muito literalmente viver nas cavernas: a falência em grande escala de colheitas, os fenómenos climáticos extremos, cheias e secas em escala sem precedentes, com as consequentes migrações em massa, em fuga da escassez e dos inevitáveis conflitos derivados da mesma, atirarão a Humanidade para uma situação desconhecida em que, mais do que nunca, o “Socialismo ou Barbárie” será a questão.
Em Marraquexe, António Costa declarou que Portugal será “carbono neutro” até 2050. A formulação “carbono neutro” não equivale a não ter emissões, mas sim a que o balanço entre emissores e sumidouros de carbono se anule. Em Portugal alimenta-se a fábula de que a floresta é um sumidouro de carbono, isto é, que retém dióxido de carbono, como se de três em três anos não ardessem mais de 100 mil hectares, o que torna a floresta um dos maiores emissores de gases com efeito de estufa no país nesse ano. Mas esta declaração significa que nos próximos 34 anos (excedendo o tempo de acção efectiva para travar o caos climático) tudo, desde a produção energética, os transportes, as habitações, a agricultura, a floresta, terá de mudar. E obviamente que a questão das concessões de petróleo e de gás terá de ser definitivamente encerrada. A tarefa hoje é repensar estas questões a partir de uma perspectiva de justiça climática, combatendo simultaneamente as alterações climáticas a partir da mitigação e adaptação, e a partir da justiça social, socialista, internacionalista e revolucionária. A disputa, organizativa e em termos de perspectiva, prende-se com quem liderará este processo: aqueles que veem as alterações climáticas como apenas mais uma nova oportunidade de negócio e que estarão sempre disponíveis para negociar a extensão das emissões e a morte de milhões de pessoas pelo planeta em troca da continuação do lucro (e que mais cedo abdicarão de salvar a espécie humana ou de abandonar-se à resignação, do que de derrubar o capitalismo), ou uma esquerda radical e ecossocialista, criando e apoiando no terreno as linhas da frente no combate aos fósseis ao mesmo tempo que pensa e materializa a produção e a economia que possam cumprir a gigantesca tarefa da justiça climática. Não há nada de abstracto e de longínquo nisto, os efeitos das alterações climáticas já estão a sentir-se amplamente e magnificarão todas as desigualdades: de classe, género, etnia, orientação sexual, religião e cultura. Esta é a maior tarefa que alguma vez poderíamos imaginar, e não é um compromisso vago: tem uma data de validade, o que significa que a maioria dos militantes que hoje se envolvem nesta luta saberão em poucas décadas se sucederam ou não. Não há outra luta final que não seja esta.
[Artigo originalmente publicado na revista Anticapitalista #1 Jan/Fev 2017]