Na semana passada, o Parlamento Europeu aprovou a ratificação do CETA, o Acordo Económico e Comercial Global entre o Canadá e a União Europeia, quase oito anos após o começo das negociações. As elites políticas europeias conseguiram assim oferecer um excelente presente a si próprias e às maiores corporações americanas e europeias. A esmagadora maioria dos 21 deputados portugueses votou a favor, com a excepção honrosa de Ana Gomes (PS), João Pimenta Lopes, João Ferreira e Miguel Viegas (PCP) e Marisa Matias (BE), que votaram contra. Maria João Rodrigues (PS) não esteve presente na votação.
Se lermos as comunicações oficiais da UE, fica-se com a sensação de que esta foi uma vitória gigantesca para o multilateralismo e a cooperação entre os povos. A Comissária Europeia para o Comércio, Cecilia Malmström, realçou que o Canadá “é um aliado próximo da Europa. Compartilhamos valores e ideais, e um compromisso com mercados abertos e políticas sociais justas”. O que fica aqui subentendido é que o Canadá, tal como a União Europeia, é um país “bonzinho”, que protege os seus trabalhadores, o ambiente, os mais desfavorecidos, que acolhe refugiados. Ao contrário de outros países “mauzões”, com os Estados Unidos e a sua nova administração Trump à cabeça, que querem “construir muros em vez de pontes” (assumindo aqui que o CETA é uma dessas pontes…), e até (horror dos horrores!) retirar-se dos acordos de comércio livre, como o NAFTA.
O que estará então errado com esta narrativa? Porque razão têm tantas organizações civis europeias e canadianas lutado contra este acordo com tanta veemência nos últimos anos? Vamos aqui tentar responder a esta questão, mantendo sempre em primeiro plano as questões ambientais e terminando com uma consideração geral sobre o futuro político da Europa.
Os acordos de comércio livre
Apesar de ser um parente próximo de outros grandes acordos internacionais, como o TTIP (entre UE e EUA), o TISA (acordo de serviços entre 23 membros da OMC, incluindo a UE), o TPP (entre EUA e nações do Pacífico) ou o NAFTA (entre México, EUA e Canadá), o CETA tem recebido muito menos atenção e escrutínio por parte do público europeu. Um dos elementos que une todos estes tratados é aliás o secretismo com que têm sido negociados e a falta de consulta pública. Em contrapartida assiste-se em todo o processo a um enorme envolvimento das maiores empresas multinacionais, desde os gigantes da agro-pecuária e da indústria financeira, às (como não podia deixar de ser) grandes petrolíferas, com particular destaque para a Exxon. E que em muitos casos se crê terem escrito largas porções dos Acordos.
Uma das componentes mais perigosas destes acordos é o mecanismo de resolução de disputas entre os estados e as empresas. No caso do CETA este começou por chamar-se IDSD (investor–state dispute settlement) para se chamar agora ICS (Investment Court System). Além da mudança de nomes, o princípio fundamental mantém-se. Trata-se de um tribunal que, actuando à margem dos sistemas jurídicos nacionais e europeus, é convocado para julgar casos em que uma determinada corporação (com vastos recursos monetários e legais) alega que um governo agiu de forma considerada injusta para os interesses dessa empresa. Após intensa pressão pública a UE alterou algumas das regras respeitantes à composição destes tribunais à revelia da lei, mas os principais riscos mantêm-se. Um estudo recente da ClientEarth refere que a aprovação deste sistema equivale à criação de um sistema paralelo de (in)justiça dentro da UE.
Devido a este mecanismo de ISDS, o Canadá foi já alvo de 39 processos, tendo de pagar cerca de 130 milhões de euros de indemnizações, na sua maioria a companhias norte-americanas. Alguns casos típicos incluem a implantação de duas plataformas offshore ao largo da costa leste do Canadá ou a oposição contra a proibição de fracking no Quebec. Estes casos ocorreram até agora no âmbito do NAFTA, mas o CETA apenas vai alargar o leque de possibilidades, expondo agora a UE a esta nova realidade. Os Governos passam assim a ter receio de adoptar leis que protejam o ambiente, os direitos dos trabalhadores ou populações locais (ou mesmo de pôr em prática a tímida legislação já em vigor), devido à ameaça permanente de serem processados por estas grandes corporações.
As tar sands de Alberta
Em relação à noção do Canadá como um país amigo do ambiente, esta é uma ideia que precisa urgentemente de ser descontruída. Sobre a liderança de Stephen Harper, entre 2006 e 2015, o Canadá adoptou algumas das políticas ambientais mais regressivas que podemos encontrar entre as economias ditas avançadas. Sobretudo devido ao enorme ímpeto dado à exploração petrolífera na região de Alberta, que acabou por culminar com a retirada do país do Protocolo de Quioto, em 2011.
Situadas no Noroeste do Canadá, junto ao rio Athabasca, e numa região que era até há bem pouco tempo ocupada por floresta boreal pristina, as tar sands, ou areias betuminosas, de Alberta correspondem a uma das maiores reservas de petróleo do mundo, apenas superada pela Venezuela e Arábia Saudita. Só que ao contrário do que sucede nestes países, os depósitos canadianos consistem numa mistura densa e viscosa de betume e areia que tem de ser processada de forma intensa de modo a daí extrair o petróleo. Ora, além de utilizar vastas quantidades de água e destruir todos os ecossistemas em redor, este processo implica um dispêndio de energia muito maior do que o necessário na extração convencional de petróleo. Energia essa que é sobretudo fornecida por mais combustíveis fósseis. O famoso climatologista James Hansen avisou já que a exploração completa destas reservas, naquele que é por muitos considerado o maior projecto industrial de sempre, equivaleria ao fim das nossas possibilidades de manter um clima semelhante ao que a Humanidade conheceu nos últimos milhares de anos.
Com os preços do petróleo a atingirem valores mais baixos nos últimos 2 anos e com a oposição que tem havido tanto nos EUA como no Canadá à construção de novos oleodutos, as petrolíferas estão agora desesperadas para encontrar novas formas de exportar este produto tóxico para novos mercados. Ora, segundo o CETA, e como se pode ler no Capítulo 21 sobre Regulação, Artigo 21.3d: “A cooperação em matéria de regulamentação tem, entre outros, os seguintes objetivos: d) contribuir para melhorar a competitividade e a eficiência da indústria, procurando: iii) seguir abordagens compatíveis em matéria de regulamentação, que contemplem, se possível e adequado: a aplicação de abordagens em matéria de regulamentação que sejam tecnologicamente neutras”.
Todo este legalês quer apenas dizer uma coisa, como outros já antes realçaram: se o Estado está preocupado em, por exemplo, gerar electricidade, não deverá discriminar a favor de uma tecnologia e contra outra, apenas porque esta seja mais poluente ou emita mais CO2. Ou melhor: pode fazê-lo, mas depois também vai ter de defender essa decisão em “tribunal”, um pseudo-tribunal constituído por advogados escolhidos a dedo por corporações com recursos quase ilimitados.
Portugal livre de petróleo? Se calhar já não…
Muito se tem escrito nos últimos meses sobre a prospeção de gás e petróleo em Portugal, desde o cancelamento pelo Governo dos 2 contratos da PortFuel, até à consulta pública da DRGM sobre o furo em Aljezur, que ignorou a opinião e as preocupações legítimas de mais de 42 mil pessoas. Mas o que se pode dizer é que a ratificação do CETA dificilmente poderia ser pior notícia para a luta contra a extração de hidrocarbonetos e por uma sociedade mais justa e sustentável.
No artigo 8.10.4 do CETA podemos ler sobre aquilo que as empresas consideram um tratamento justo e legítimas expectativas. Assim, o tribunal chamado para julgar o caso (sim, ainda o tal dos ISDS e ICS) deverá ter em conta “se uma Parte fez uma representação específica a um investidor para induzir um investimento coberto, que criou uma expectativa legítima, e em que o investidor confiou na decisão de fazer ou manter o investimento coberto, mas que a Parte tenha posteriormente defraudado.” O que é que isto quer dizer? Se a legislação de um país (Parte) é caduca e completamente desadequada aos tempos actuais, como sucede com o nosso Decreto-lei 109/94, que regula a prospeção e exploração de combustíveis fósseis, isto cria “expectativas legítimas” nas empresas (investidor) de fazer lucros formidáveis, que não devem depois ser frustradas. Mesmo que a saúde das populações, da economia local ou do próprio planeta estejam em jogo.
Para sermos justos, é verdade que o CETA também inclui alguma linguagem vaga e anódina sobre desenvolvimento sustentável (capítulo 22), direitos laborais (23) e comércio e ambiente (24). Mas creio que já todos sabemos que quando chega a hora da verdade o factor “comércio” vai prevalecer sobre tudo o resto. Felizmente só temos que preocupar-nos com as tais multinacionais canadianas “boazinhas”… Ou será que não?
O cavalo de Tróia das empresas norte-americanas
Pouca coisa pode ser dita com certeza acerca das posições políticas do novo presidente Trump, ou mesmo da sua estabilidade mental. Mas em relação ao comércio internacional a sua postura tem sido bastante menos inconsistente que noutras áreas. O novo presidente dos EUA em nenhuma ocasião se mostrou contra o comércio entre nações, apenas contra os termos em que este era feito que, segundo ele, não beneficiam suficientemente as corporações americanas (ou, para usar a sua linguagem: “a América e os trabalhadores americanos”). O seu repúdio recente do TPP, bem como a vontade de renegociar o NAFTA apenas vêm reforçar esta ideia.
Esta é afinal a abordagem típica de um homem de negócios, pensando no curto prazo e em assumir a posição de negociação mais forte possível. Ao
retirar o país de acordos multilaterais, como o TTIP ou o TPP, o seu plano parece ser o de negociar acordos bilaterais com cada um dos países envolvidos. Nesta situação, os EUA terão obviamente sempre a mão mais forte, enquanto maior potência económica a nível mundial. Mesmo que o parceiro de negócios se chame Japão, China ou Alemanha (isto, claro, assumindo sempre que o seu governo não tenha sido comprometido por alguma potência estrangeira…).
Neste novo contexto geo-político, o CETA pode agora funcionar para as grandes corporações americanas como o perfeito cavalo de Tróia. As empresas norte-americanas com subsidiárias canadianas (e que são a grande maioria das maiores corporações) podem à partida fazer uso do CETA tal como qualquer companhia canadiana ou europeia. Sendo assim, estas passam a beneficiar de um acesso quase ilimitado ao mercado europeu (com mais de 500 milhões de consumidores, e com o nível de vida mais alto de todo o planeta), e sem que a que a nova admistração norte-americana tenha que perder tempo com negociações morosas e aborrecidas (ficando assim com mais tempo para assistir ao canal “noticioso” da Fox). Ou seja, todos os benefícios sem o potencial prejuízo da administração Trump parecer “fraca” a negociar com a Europa. E aqui, todo o crédito deve ser dado em Portugal à Plataforma Não ao Tratado Transatlântico que já de alguns anos a esta parte tem vindo a dizer aquilo que deveria ter sido óbvio para todos nós – que o CETA é afinal ainda mais perigoso do que o TTIP!
E o futuro da democracia europeia?
Depois de ter sido ratificado pelo PE, o CETA será agora votado em todos os parlamentos nacionais dos 28 (ou 27?) países da UE. Em Portugal, o Governo aprovou recentemente um Projecto de Resolução proposto pelo PAN (606/XIII), com vista a promover “o debate alargado com a sociedade civil, nomeadamente com as organizações não-governamentais, sobre o Acordo Económico e Comercial Global (CETA), antes da votação no Parlamento Português”. É agora de enorme importância que o maior número de pessoas e organizações se envovlva neste processo e procure saber mais sobre o Acordo. Supostamente, bastará apenas um dos Parlamentos dos 28 estados-membros votar contra o CETA para este não entrar em vigor, pelo menos na totalidade, mas ainda não é claro como isto poderá funcionar. O que é mais claro é o seguinte.
Em primeiro lugar, que existe hoje uma aliança cada vez mais clara entre partidos de extrema direita e o negacionismo das alterações climáticas. Partidos esses que, se subirem ao poder, como foi o caso de Donald Trump nos EUA, não perderão tempo a destruir todas as poucas regulações ambientais em vigor e a descreditar cientistas e comunicação social. Esta aliança inclui claramente a Rússa de Putin e agora possivelmente a nova administração norte-americana.
Em segundo lugar, e após as vitórias do Brexit e de Trump, os partidos europeus de extrema-direita estão agora na expectativa de um ano verdadeiramente histórico. E poderá 2017 ser visto daqui a 100 anos da mesma forma que hoje olhamos para 1933, ano em que Hitler subiu ao poder? Creio que a resposta é claramente “sim”! Sabemos que a História nunca se repete verdadeiramente mas, e como sucede com a órbita no espaço de fases de um atractor estranho, pode passar por pontos muito próximos dos que já percorreu, tal como está a acontecer hoje em dia.
Face a esta ameaça de proporções históricas, com Le Pen (ela agora prefere que lhe chamem apenas “Marine”, soa melhor) a liderar claramente as sondagens na França, e partidos de extrema direita a posicionarem-se para bons resultados eleitorais na Holanda e Alemanha, a resposta das elites europeias parece ser apenas “mais do mesmo”. Mais acordos de comércio livre, mais medidas neoliberais, menos proteção ambiental e laboral. Ao contrário do que a maioria dos deputados europeus (os 408 que votaram a favor do CETA) parece acreditar, a escolha com que somos hoje confrontados não é entre o nacionalismo exacerbado e o internacionalismo, mas sim entre fascismo ou democracia. Prosseguir cegamente em políticas neoliberais que amplificam as desigualdades sociais, ao mesmo tempo que destroem o planeta e as condições de vida para as gerações futuras, apenas dá mais força aos argumentos da extrema direita, por mais aberrantes ou desumanos que estes nos possam parecer. Tal como aconteceu no princípio do século passado, se não fôr invertido a tempo, o neoliberalismo será apenas o prelúdio para o fascismo.
No meio de toda a fanfarra sobre “construir pontes”, através de mais acordos de “comércio livre”, uma larga porção das elites europeias parece hoje marchar para o precipício sem ter qualquer ideia do que está a suceder à sua volta…
É um excelente artigo, ao mesmo tempo que é um caso muito bicudo…!