Greve pelo Clima: seis lições de Greta Thunberg – João Camargo

Foto: Anders Hellberg

Esta sexta-feira, a primeira greve climática global promete abalar a geopolítica mundial. Mesmo de uma perspectiva cautelosa, o dia 15 de março será um evento histórico à escala global, uma das maiores manifestações de sempre, seguramente a maior manifestação de estudantes e a maior manifestação em defesa da justiça climática que alguma vez ocorreu, com milhões de pessoas em todos os continentes e em mais de 70 países já confirmado. A data, o momento em si, devemo-lo ao contexto cada vez mais desesperante de inacção climática perante uma ameaça existencial em contra-relógio, e ao surgimento de Greta Thunberg na cena pública, com a sua crueza e resolução.

A jovem sueca, que começou a fazer greve climática sozinha todas as sextas-feiras em Estocolmo, em frente ao Parlamento da Suécia, rapidamente ganhou apoios e mais participantes, até se tornar um símbolo global dos protestos pela justiça climática. Nesse momento, e tendo sido convidada a falar na Cimeira do Clima na Polónia, Greta fez uma curta intervenção que produziu ondas de choque que estão a chegar a milhares de pessoas até hoje. Podemos tirar algumas lições muito valiosas para os movimentos sociais e para a luta por um futuro de sobrevivência a partir do que diz e do que faz Greta Thunberg.

1ª lição – Por cima de qualquer compromisso: Greta Thunberg, de 16 anos, foi diagnosticada com Síndroma de Asperger o que, para a mesma, “foi uma ajuda” para o combate às alterações climáticas. Uma pessoa com 16 anos e Asperger do tipo que tem Greta, exibe ausência de filtros sociais e políticos, que lhe permite ser totalmente exacta e dizer aquilo que é totalmente evidente segundo a Ciência: a economia mundial, subjugando a sociedade global, está a destruir a viabilidade da civilização humana no planeta Terra. Perante este diagnóstico – que é aquele que a Ciência nos dá, não só no último ano, como pelo menos nas últimas duas décadas – a única solução é reagir na medida adequada a um desafio tão radical. Os activistas climáticos durante as últimas décadas estiveram envolvidos em duros combates políticos e sabem da enorme dificuldade que é fazer passar simplesmente aquilo que a Ciência diz, esse diagnóstico radical que é permanente enterrado debaixo da narrativa global do capitalismo fóssil. No final do ano passado o IPCC disse o que era preciso fazer para evitar ultrapassar os 1,5ºC até 2100: cortar as emissões globais de gases com efeito de estufa até 2030. Não há nenhum compromisso possível com capitalismo, pinte-se este de verde ou qualquer outra cor e as soluções transitórias são apenas a garantia do colapso.

2ª Lição – “Keep it in the Ground” e Justiça Climática: a conclusão da primeira lição é a necessidade de mudar a forma como funciona a economia, nomeadamente o facto da mesma ter sido viciada em combustíveis fósseis (incentivando-se todas as economias locais e ligando-se todo a produção e comércio internacional para dependerem de petróleo, gás e carvão) como forma de concentrar dominação e poder. Sabemos pelo menos desde o Acordo de Paris em 2015 que não pode haver quaisquer novos combustíveis fósseis e, apesar disso, ainda temos de andar por todo o mundo – incluindo em Portugal – a lutar contra projectos para exploração de petróleo, gás e carvão, contra infraestruturas para manter esse vício durante mais décadas e contra o resgate da indústria petrolífera à conta da nossa destruição. Como refere Greta, precisamos de “Keep It In The Ground” (mantê-lo debaixo do solo) e de garantir que a transição para um novo sistema de produção tem de ter como prioridade máxima a equidade social e a justiça social. A alternativa a isto é só criar novas áreas de negócio, talvez cortar ligeiramente as emissões para a fotografia, ignorar o mar de sofrimento humano que se vai transformando em tsunami e não travar o colapso climático.

3ª Lição – Isto é uma crise: E não sairemos de nenhuma crise sem a tratarmos como uma crise. A emergência climática é a maior crise que a Humanidade já enfrentou. Pela primeira vez, enquanto espécie, vemos um horizonte claro não só de degradação social e ambiental extrema, mas de agravamento da degradação social e ambiental extrema em que já vivemos, ameaçando irreversivelmente as bases materiais que permitiram a existência de agricultura, de escrita, de civilização. São urgentes acções e consequentes para resolver esta crise, e isso implicará a reconfiguração da nossa relação uns com os outros e com o meio que nos sustenta ou, mantendo-se a actual tendência, o nosso colapso colectivo. A emergência é assumida até por negacionistas climáticos e oportunistas de toda a espécie: o estado de excepção está cada vez mais presente na maneira como se governam as nações e as ameaças autoritárias só se agravam com o aumento de frequência de fenómenos climáticos extremos, catástrofes naturais, migrações em massa e escassez crescente de bens totalmente básicos como a água e os alimentos. Se não tratarmos as alterações climáticas como uma emergência para salvar as pessoas, outros tratá-las-ão como uma excepção para destruir pessoas e comunidades.

4ª Lição – Os 99% estão a ser sacrificados: o capitalismo, o sistema mais plástico e adaptável que já conhecemos, atingiu os seus limites físicos, pelo que para manter o processo de concentração de riqueza depende da destruição do meio ambiente, cujo sintoma mais evidente (mas não único) são as alterações climáticas. Assim, as civilizações humanas estão a ser sacrificadas “pela possibilidade de um número muito pequeno de pessoas poder continuar a ganhar enormes quantidades de dinheiro. A biosfera está a ser sacrificada para que as pessoas ricas possam viver no luxo”. Neste momento de crise climática, a crise da desigualdade produziu a maior concentração de riqueza alguma vez vista. Apesar dos mega-ricos se acharem imunes ao colapso climático e alimentarem ficções científicas acerca de Marte e outras bolhas de protecção, estão totalmente expostos a um novo clima com pouca atenção a distinções sociais. A resposta tem de vir de baixo, dos que estão a ser conscientemente sacrificados.

5ª Lição – Mudar o sistema: “Se as soluções dentro deste sistema são tão impossíveis de encontrar, então talvez tenhamos que mudar o próprio sistema” disse Greta. Nas últimas três décadas, e porque vivemos dentro de uma narrativa capitalista fóssil e de uma hegemonia tecnopositivista, muita gente andou à procura de quadraturas do círculo, de soluções de mercado, de comércios de emissões de gases com efeito de estufa, de taxas de carbono, de emissões negativas, de capturas e armazenamento de carbono, de créditos de offset de carbono, de frotas de carros eléctricos, de Protocolos de Kyoto e, no fim, 2018 foi o ano com maior nível de emissões de gases com efeito de estufa de sempre. O sistema não está desenhado para produzir bens e serviços, muito menos bens e serviços colectivos, não está desenhado para distribuir, mas sim para concentrar. Qualquer boa ideia a que seja aplicada uma ideia de lucro, rentabilidade, mercado e escala, arrisca-se a tornar-se apenas mais um problema – e foi o que vimos com os biocombustíveis, com as barragens, com a biomassa. Em nome do combate às alterações climáticas o capitalismo produziu mais dezenas de novas áreas de negócios – na energia, nos transportes, na agricultura, na floresta, na engenharia financeira – e não produziu nada daquilo precisava produzir, as emissões de gases com efeito de estufa não só não desceram, mas subiram, rumo ao colapso climático. O sistema também produziu a crise climática baseando-se na ideia de crescimento infinito num espaço finito: até hoje a Economia ortodoxa ainda não entendeu a Física e por isso mesmo a hegemonia “só fala de continuar com as mesmas más ideias que nos colocaram neste desastre, mesmo quando a única coisa razoável a fazer é puxar o travão de emergência”. Não existem soluções para as alterações climáticas dentro do quadro do sistema económico actual, pelo que a solução para as alterações climáticas passa por mudar este sistema.

6ª Lição – Não pedir licença: “Não viemos pedir aos líderes que se preocupem. Ignoraram-nos no passado e ignorar-nos-ão de novo”. As elites políticas e económicas já demonstraram amplamente que a realidade lhes é tão-somente mais um artifício para manobrar no exercício do poder, e exaltam a ignorância como virtude sempre que lhes é conveniente, em acções e discursos. Greta colocou a acção muito além do campo formal, não apenas apelando à realização da greve climática como indo aos centros de poder e, mesmo nesse contextos tão intimidatórios, falando a verdade sem filtros. Depois da Cimeira do Clima na Polónia, foi convidada a ir a Davos ao Fórum Económico Mundial e à Comissão Europeia. Ao lado dos homens mais ricos e poderosos do mundo, Greta disse exactamente o mesmo. A sua 1ª lição e a sua condição inflexível são a sua arma poderosa, e uma das armas mais poderosas do movimento pela justiça climática. Naturalmente esta arma será testada em outras geografias: por todo o mundo, políticos e empresários tentarão neutralizar os mais recentes movimentos apresentando-lhes a moderação, a ponderação e o realismo, denunciando a consequência claríssima do que nos diz a Ciência como “radicalismo”. A acção destes políticos e empresários só é decidida e forte quando serve para tentar travar a tempestade política que é a luta pela justiça climática: são agentes do caos climático e civilizacional. As próprias instituições hoje existentes, desde a justiça às grandes estruturas de poder internacionais, como a Organização Mundial de Comércio, o Banco Mundial ou o FMI, passando por parlamentos nacionais e regionais, representam por enquanto muito pouco além da manutenção de uma ordem que está a acabar. “A mudança está a chegar, quer queiram quer não”, e as instituições que não servirem para resgatar a civilização não são só inúteis, são um obstáculo ao resgate da civilização humana. Não há ninguém a quem pedir autorização: nós somos aquelas e aqueles de quem estávamos à espera.

Damos, enquanto civilização, um novo passo em frente com a greve climática estudantil, mas não nos podemos acomodar, por mais retumbante que seja o seu sucesso. É mais um pequeno grande passo, e a tarefa que nos calhou viver enquanto gerações vivas, é modificar tudo na sociedade na economia. Que aprendamos com as lições de Greta que a pulsão para a conformidade é hoje o maior obstáculo ao nosso futuro colectivo e que a desobediência é a arma do futuro.


Artigo originalmente publicado no Expresso a dia 14 de Março de 2019.

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