1- O Acordo de Paris revisitado
2020 é considerado pela maior parte dos especialistas como o ano em que as emissões de gases de efeito de estufa (GEE) devem atingir o seu pico absoluto, começando a cair nos anos seguintes, de forma acelerada. E se isso não acontecer? Bom, por cada ano que passe sem que esse máximo seja alcançado as reduções necessárias terão de ser cada vez mais drásticas. Como uma dívida que tem de ser paga sem falta, mas em que vamos adiando o início dos pagamentos, com os juros a acumular-se e esta a ser cada vez maior. Com o acréscimo que, e uma vez que a Natureza funciona de forma essencialmente não-linear, a taxa de juro não se mantém constante, mas pode dar saltos inesperados de um ano para o outro. Exemplos práticos incluem a Amazónia tornar-se uma fonte líquida de emissões em vez de um sorvedouro, o volume de incêndios florestais aumentar exponencialmente, ou a libertação de enormes reservas de metano (um potente GEE) aprisionadas na tundra siberiana (como ilustrado no mais recente documentário produzido por Leonardo DiCaprio, Ice on Fire).
Como num típico filme de ação de Hollywood, estamos muito condicionados a acreditar que a “salvação” pode sempre chegar no último instante. Só que a Natureza não se rege pelas regras do cinema comercial norte-americano e a experiência ensina-nos que quanto mais tempo adiamos o começo de uma tarefa desagradável (mas imperiosa), mais difícil esta se torna.
Uma nota de esperança no meio de tudo isto é que em 2020 os países signatários do Acordo de Paris (e que são quase todos, incluindo os Estados Unidos, que só poderão sair formalmente a 4 de Novembro de 2020, curiosamente, um dia depois das eleições presidenciais!), devem submeter novas propostas de reduções de emissões. Estas devem ser muito mais ambiciosas do que as anteriormente submetidas, e que nos condenam a um aumento de pelo menos 3⁰C durante este século. Se aumentarmos a pressão sobre os dirigentes políticos para que aumentem a ambição em termos de reduções, podemos ainda evitar um aquecimento acima de 2⁰C, e talvez não ficar muito acima dos 1.5⁰C.
2- O que significa a neutralidade carbónica
E é aqui que surge alguma confusão, em termos de como alcançar este nível de reduções. Duas coisas muito diferentes, mas que são muitas vezes confundidas são o ter 100% de electricidade de origem renovável e a neutralidade carbónica. Se olharmos para a figura 1, retirada do mais recente relatório da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), vemos que a geração de electricidade em Portugal foi responsável por cerca de 29.5% das emissões de GEE em 2017 (“Energy industries”). Logo, atingir 100% de electricidade renovável implicaria um corte nas emissões nacionais de “apenas” cerca de 30% (na prática fechar todas as centrais termoeléctricas de carvão e gás e substituí-las por medidas de redução do consumo e fontes de geração renovável). Mas isto deixaria ainda de fora as emissões associadas a sectores tão importantes como os transportes, a indústria ou a agricultura. Ora, neutralidade carbónica significa que as emissões de GEE devem ser iguais à capacidade de retenção de carbono por parte das florestas, matos e outros usos de solo em território nacional. De acordo com os dados da APA, isto implicaria cortes nas emissões de pelo menos 80-85%, assumindo que a quantidade de retenção de carbono das florestas era reforçada de forma considerável, e que se punha de uma vez por todas fim ao flagelo dos grandes incêndios.
Resumindo: em Portugal, 100% de electricidade renovável implicaria cortes na ordem dos 30% nas emissões de GEE; neutralidade carbónica implicaria cortes na ordem dos 80-85%. Finalmente, a maior parte dos especialistas em sistemas energéticos está de acordo em que a electricidade é de longe o sector mais fácil de descarbonizar, logo esta é uma condição necessária, embora não suficiente, para atingir a neutralidade carbónica.
Fig. 1 – Distribuição por sector das emissões de GEE em Portugal em 2017. Fonte: APA, Portuguese National Inventory Report on Greenhouse Gases, Amadora, 8 maio 2019.
3- O que Portugal (não) está a fazer
A figura 2 mostra o percurso das emissões de GEE em Portugal desde 1990. O termo LULUCF (linha verde) refere-se às emissões totais líquidas de carbono, quando a retenção por parte de florestas e outros usos de solo é tida em conta. Normalmente estas funcionam como sorvedouros de carbono, excepto nos anos de maiores incêndios (2003, 2005 e 2017), em que foram fontes líquidas de emissões. Após um máximo histórico atingido em 2005, as emissões tiveram uma queda pronunciada – apenas para voltar de novo a subir, após o fim oficial da crise económica em 2013-14.
Fig. 2 – Emissões de GEE em Portugal, entre 1990 e 2017, sem (azul) e com (verde) LULUCF. Fonte: APA, Portuguese National Inventory Report on Greenhouse Gases, Amadora, 8 maio 2019.
A Tabela 1 compara as metas de descarbonização do actual Governo para as próximas décadas, com a meta proposta pela UE para 2030 e com o que o relatório especial do IPCC em Outubro passado disse que deveria acontecer, em termos globais, de modo a evitar um aumento de temperatura de 1.5⁰C ou 2⁰C neste século, em relação aos valores pré-industriais. Em todos os casos utilizaram-se valores médios. Por exemplo, o Plano Nacional Energia e Clima (PNEC) para 2030 fala em reduções nas emissões de 45% a 55% em 2030, face a 2005. Usa-se aqui o valor intermédio, 50%.
O que a Tabela nos mostra é que a o nível de ambição de Portugal para 2030 (43 MtCO2eq) fica claramente abaixo do que a meta europeia exige (35 MtCO2eq). Como é que isto acontece? Devido à escolha de 2005 como ano de referência para os cortes nacionais, em vez de 1990, o ano adoptado pela UE, que permite ao Governo falar em “reduções de 45% a 55%”, mas que são na prática menores do que seriam as reduções de 40% em relação a 1990. Quanto ao alvo de neutralidade carbónica em 2050, talvez ainda seja compatível com o manter o aquecimento global abaixo dos 2⁰C, mas seguramente nunca abaixo dos 1.5⁰C, como se discute no ponto seguinte.
-
Ano
Emissões PT (MtCO2eq)
UE, meta para 2030 (-40% face a 1990)
IPCC, meta para 2030, 1.5⁰C (-45% face a 2010)
IPCC, meta para 2030, 2⁰C (-25% face a 2010)
PNEC/RNC2050 2030 (PT, -50%, face a 2005)
1990
59
2005
86
2010
69
2017
71
2030
35
38
52
43
2050
?
Net zero (Mundo)
Net zero (PT)
2070
Net zero (Mundo)
Tabela 1. Emissões históricas de GEE em Portugal (1ª coluna), em milhões de toneladas de CO2eq, sem tomar em conta LULUCF (APA, 2019). 2ª coluna: meta geral da EU e o que implicaria para Portugal em 2030. Depois, metas (globais) referidas pelo IPCC no relatório especial de Outubro de 2018 e o que implicariam para Portugal em 2030. Última coluna: Plano Nacional Energia e Clima (PNEC) 2030 e Roteiro para a Neutralidade Carbónica (RNC) 2050.
4- Responsabilidades comuns… mas diferenciadas!
Um dos princípios fundamentais da Convenção Quadro para as Alterações Climáticas das Nações Unidas (UNFCCC, na sigla inglesa) é a de “responsabilidades comuns mas diferenciadas e respectivas capacidades, à luz das suas diferentes circunstâncias nacionais”. Isto é “legalês” para dizer que ainda que todas as nações tenham uma responsabilidade comum de resolver a crise climática, não se pode pedir aos países mais pobres que tomem a dianteira na redução de emissões de GEE, quando foram estes que menos contribuíram para o problema. Aos mais ricos (e que, regra geral, mais poluíram durante décadas, ou mesmo séculos, com a sua indústria, centrais a carvão ou automóveis) são exigidos os cortes de emissões mais rápidos e mais profundos, além de que auxiliem activamente os países mais pobres na direção de um desenvolvimento económico sustentável – e não à base de combustíveis fósseis. Esta não é meramente uma questão ética (se bem que isso já deveria ser suficiente…) mas eminentemente pragmática: é muito mais barato para os países mais ricos ajudar os outros a evitar o aumento das suas emissões de GEE (ao mesmo tempo que procuram acabar com a pobreza de centenas de milhões de pessoas no Sul global) do que lidar com as consequências de um aquecimento global catastrófico!
Em termos práticos, quando o IPCC fala na meta de neutralidade carbónica global em 2050, de modo a limitar aquecimento abaixo dos 1.5⁰C, isso significa que os países mais ricos (Portugal e toda a UE incluídos) têm de alcançar essa meta muito antes (e quanto mais cedo melhor). Resultado: a meta do Governo actual para 2050 fica assim muito longe de ser compatível com os 1.5⁰C, embora talvez ainda seja compatível com os 2⁰C (com a neutralidade a ser alcançada a nível mundial por volta de 2070).
5- Portugal: a ficção versus a realidade
Finalmente, mais importante do que as promessas que se vão fazendo, seja para 2030, 2050 ou 2100, são as decisões políticas, concretas, que se tomam. Ora, devido a um extraordinário esforço de relações públicas, Portugal tem aparecido sistematicamente entre a lista de países europeus que maior “ambição climática” demonstra, ainda que (como vimos acima), a sua meta de redução de emissões para 2030 nem sequer alcance a média da EU (alguns exemplos: aqui, aqui e aqui). O que não se compreende é como esta suposta ambição pode ser compatível com:
– o projecto de construir um aeroporto civil em pleno estuário do Tejo (Montijo), um dos mais importantes em termos de biodiversidade de toda a Europa;
– a manutenção de contratos de exploração de gás (fóssil) na zona centro, com a técnica de fracturação hidráulica (fracking) expressamente prevista nos mesmos (e quando as reservas de gás já conhecidas, a nível mundial, são muito mais do dobro das que podem ser queimadas);
– o plano de ampliação massiva do porto de Setúbal, incluindo um volume (6.5 milhões de m3) de dragagem de areias potencialmente contaminadas, que pode afectar de forma dramática os ecossistemas e a economia local;
– a vontade de fazer de Sines a porta de entrada na Europa do gás fóssil extraído via fracking, proveniente da América do Norte, com uma pegada de carbono que é frequentemente superior à do carvão;
– a incapacidade de levar a cabo uma reforma estrutural da floresta que a torne num verdadeiro sorvedouro de carbono (e manancial de biodiversidade!) e reduza drasticamente a probabilidade de grandes fogos florestais;
– a atribuição de contratos para exploração mineira (sobretudo lítio) em boa parte do território nacional, incluindo em várias áreas protegidas, e contra a vontade da população local.
Muitos outros (maus!) exemplos se poderiam acrescentar, e que vão na direção exactamente oposta à que o Governo actual afirma pretender seguir. Já não bastam exercícios de contabilidade criativa ou boas campanhas de relações públicas: há que haver coragem e capacidade de liderar!
6- E se os governantes continuarem a insistir em nada fazer?!
Nos últimos meses temos visto uma mudança significativa do discurso público em torno das alterações climáticas, graças sobretudo ao impacto dos jovens da Greve Climática Estudantil (GCE), mas também ao movimento Extinction Rebellion, entre outros. De tal forma, que o Parlamento nacional acabou por declarar um estado de “emergência climática”, ainda que nada tenha feito em seguida para responder à “emergência” que supostamente identificou. Atitude semelhante à de alguém que, acordado pelo barulho das chamas, vem à janela ver o que se passa, apercebe-se que um grande incêndio alastra por toda a rua – e decide ignorar o perigo e voltar a dormir!
Em relação à reivindicação da GCE de que o país seja neutro em carbono em 2030, nem é muito claro que isso seja possível em termos técnicos (como vimos acima, cortes na ordem dos 80-85% em 10 anos, ou seja, um valor constante de 15%-17% de reduções anuais). Mas também sabemos que se não houver pressão para que o objectivo seja atingido em 2030, ele não acontecerá nem em 2035, nem em 2040… E se calhar nem em 2050!
É hoje admitido por quase toda a comunidade científica que as alterações climáticas de origem antropogénica, causadas sobretudo pela queima desenfreada de combustíveis fósseis, são uma enorme experiência involuntária de geoengenharia, induzindo as mudanças mais rápidas e mais drásticas que o planeta experienciou nos últimos milhões de anos. Mas há outra experiência a ser realizada, de cariz social, e que é igualmente inédita. É a de termos hoje, um pouco por todo o Mundo, uma classe governante que se recusa a tratar a crise climática com a urgência que esta exige, e a confrontar os poderes estabelecidos e os grandes interesses económicos que se opõem à resolução da mesma. E que com essa atitude coloca em risco o futuro de toda a Humanidade. Ao mesmo tempo que vemos cada vez mais pessoas a tornarem-se conscientes dos riscos que estão a ser corridos em seu nome, e cada mais revoltadas com a inação dessa mesma classe política.
A longo prazo, sabemos que a vontade popular acabará por prevalecer. Depende agora de todas e todos nós que isto aconteça a tempo de evitar o pior! O primeiro passo deve ser a adesão à semana de mobilização climática que vai ocorrer por todo o Mundo, incluindo Portugal, de 20 a 27 de Setembro!
Obrigado por esta análise séria e extensa. Fico apenas com uma dúvida matemática em relação à Tabela 1: se o volume de emissões em 2005 (e 2010) é maior do que em 1990, isso não significa que uma percentagem que tem como referência 2005 (ou 2010, como o IPCC) resulta num corte maior? Este resultado depois é subtraído às emissões actuais? Isso arruinaria o argumento. Ou o ano de referência em causa pressupõe que temos de atingir um corte e volume final “como se” estivéssemos em 1990? Mas, assim, isso significa que as metas da UE são bastante mais ambiciosas do que as do IPCC… É realmente esse o caso?
Viva Pedro! Obrigado pelo excelente comentário! Resumindo, é verdade que utilizando 2005 como referência,
os cortes actualmente propostos pelo Governo são de facto maiores em magnitude (MtCO2eq) do que
usando 1990 como referência. MAS, no 1º caso acabamos com emissões maiores em 2030 (~43Mt) do que
seria o caso se a meta da EU fosse adptada (~35Mt) e é com este tipo de malabarismos contabilísticos
que os Governos jogam (não só o português, como é óbvio!). Para clarificar a comparação, imagine-se
um empregado que ganhe 1000 euros por mês e outro que ganhe 10.000 euros por mês. O patrão anuncia reduções de
50% para ambos! Ora o corte no caso do 2º é muito maior em magnitude (5000 euros vs apenas 500 euros no 1º caso).
Mas o 2º empregado continuará a receber 5000 euros por mês (valor elevado), enquanto o
outro apenas 500 (valor mais baixo), visto partirmos de níveis salariais diferentes…
No caso das emissões de CO2eq o desejável seria um valor o mais baixo possível, e o mais
rapidamente possível. Já agora, tanto para Portugal como para o conjunto da EU, as
emissões de 2010 não são superiores às de 2005, daí que a meta definida pelo IPCC (para 1.5ºC) seja
menor (mais restritiva) do que o Governo português considera…