Em 2015 existiam 15 concessões para exploração de hidrocarbonetos – gás e petróleo – no território continental de Portugal, distribuídas desde o Algarve até à zona da Figueira da Foz. As concessões começaram a ser atribuídas em 2007 pelo governo de José Sócrates, com o ministro da Economia, Manuel Pinho, a entregar as concessões no mar de Peniche e no mar do Alentejo. Inicialmente as concessões foram entregues à Petrobras, à Partex, à Hardman Resources e à GALP. Houve diversos trespasses de concessionárias e, passados oito anos, os contratos estavam nas mãos da Repsol, da Kosmos Energy, da GALP, da Partex e da ENI. Em 2011, já sob o governo de Passos Coelho, foram entregues concessões no mar do Algarve à Repsol e à RWE, sendo que a segunda transferiu a sua concessão mais tarde para a Partex. Em setembro de 2015, nos últimos dias do governo PSD-CDS, o ministro do Ambiente, Jorge Moreira da Silva, entregou mais duas concessões no mar do Algarve à Repsol e Partex, além de quatro concessões em terra, duas no Algarve (à Portfuel de Sousa Cintra) e duas em Batalha e Pombal (à Australis Oil&Gas). A coligação PSD-CDS perdeu as eleições mas estes contratos mantiveram-se.
Durante os útimos cinco ano desenvolveu-se a mais consequente luta “ambiental” das últimas décadas em Portugal, com amplitude regional, informação socializada para o grande público e um confronto social e político de grande intensidade. Além disso, e talvez o mais relevante, é a sucessão impressionante de vitórias, contra probabilidades consideradas por vezes inultrapassáveis, criando alianças sociais e políticas decisivas e articulando simultaneamente vários tabuleiros tácticos e estratégicos.
Quaisquer anúncios de operações, furos, sondagens, sessões de esclarecimento, consultas públicas, mobilizaram milhares de pessoas. Inicialmente, o centro esteve no Algarve, onde a ameaça era mais iminente e a mobilização mais rapidamente organizada. Dos vários movimentos algarvios destacam-se a ASMAA, a Plataforma Algarve Livre de Petróleo, o Tavira em Transição, o STOP Petróleo Vila do Bispo, o Movimento Algarve Livre de Petróleo, o Preservar Algarve – Aljezur e o Preservar Algarve – Odeceixe. Apesar de dispersos por toda a região, estes movimentos foram incansáveis na mobilização local contra a exploração, com tácticas e estratégicas diversas e em muitos casos complementares. A expansão nacional da luta ganhou um carácter mais amplo, com a entrada da questão das alterações climáticas como um dos vértices centrais de contestação. A organização das Marchas Mundiais do Clima, o surgimento do Climáximo e, mais tarde, do Futuro Limpo e da ZERO, colocou a questão da exploração petrolífera em Portugal no centro da então ainda incipiente agenda climática. Rapidamente houve um esforço organizativo no sentido de mobilizar localmente na zona Oeste em Peniche e no Alentejo, o que deu origem ao Peniche Livre de Petróleo, ao Alentejo Litoral pelo Ambiente, à mobilização de Tamera e São Luís e, mais tarde, ao aparecimento do Movimento do Centro do Gás e da campanha Linha Vermelha. Foram quatro anos de um profundo escrutínio cidadão e voluntário, de mobilização social quase ininterrupta, de estudo e divulgação informativa, científica, popular.
Os movimentos conheciam os contratos melhor do que os governantes, conheciam as receitas, os impactos, os prazos, as datas, as portas giratórias, apanharam mesmo ministras a dizer em viagens oficiais que a exploração estaria para breve, apanharam funcionários das petrolíferas a trabalhar dentro dos ministérios, petrolíferas que ganharam os contratos e não tinham seguros ou mesmo funcionários, barcos a fazer trabalhos sem autorização, isenção de avaliações de impacto ambiental para furos em alto mar, governantes que assinaram os contratos pelo Estado a entrar nos Conselhos de Administração das petrolíferas. Tudo isto está registado em vários jornais e as denúncias dos movimentos foram sem dúvida centrais nas vitórias obtidas. Souberam também usar esta informação para articular estratégias, mobilizar na rua e agir judicialmente, pressionar politicamente e no campo da informação, fazer todas as perguntas difíceis e não largar a pressão até ganhar, apesar dos amorfos arranjos institucionais que tendem sempre a enterrar as lutas em questões acessórias. A afirmação e compromisso de não desistir foi central na vitória, abandonando as culturas de compromisso e negociação permanente que têm sido catastróficas para tantas lutas sociais e ambientais.
Os primeiros contratos a cair foram os de Sousa Cintra em terra no Algarve. Seguiram-se os contratos no mar do Algarve ainda em 2016. No final de 2017, foram ultrapassados os prazos dos contratos do mar de Peniche e os mesmos caducaram, embora a GALP ainda tenha tentado resgatá-los sem sucesso. O mar do Alentejo era a zona mais apetecida, e o nessa altura já famoso “Furo de Aljezur” mobilizou não só as concessionárias GALP e ENI como todo o governo do PS, nomeadamente os ministros do Ambiente, João Matos Fernandes, e dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva. António Costa chegou mesmo a defender em directo na RTP a realização do furo em Aljezur. Contra alguma imprensa bastante adversa, que chegou mesmo a anunciar, em dia de manifestação contra o furo, que havia “1500 milhões de barris petróleo” ali no mar do Alentejo, a mobilização social nunca parou e milhares de pessoas em todo o país mobilizavam-se por esta causa, enquanto acções directas escarafunchavam as contradições, invadindo a GALP para enchê-la de areia e algas ou o Ministério do Ambiente para pagar o dinheiro sujo de “petróleo”. Esta mobilização social tinha consequências institucionais: municípios por todo o país, e em particular no Algarve, tomavam posição e acção contra os furos; no Parlamento o tema era discutido frequentemente, com dois campos antagónicos (BE, PAN e PEV contra a exploração, CDS, PCP, PS e PSD a favor) e moções discutidas, aprovadas, rejeitadas, criando mais clareza de que nada passaria “pelos pingos da chuva”. No fim, não foi da decisão do governo de António Costa, mas sim da ENI e da GALP que veio a decisão de desistir dos contratos do mar do Alentejo. O movimento derrotou as petrolíferas e o governo que as apoiava.
Sobram neste momento momento dois contratos, Batalha e Pombal, sobre os quais já passaram os prazos para os primeiros furos, que teriam de ocorrer em 2019. O governo, magnanimemente, ignorou um panfleto que se apresentava como de estudo de impacto ambiental encomendado pela Australis Oil&Gas e empurrou qualquer decisão sobre os furos da Bajouca (Concessão Pombal) e Aljubarrota (Concessão Batalha) para 2020, já depois das eleições. No entanto, no verão passado realizou-se na Bajouca o Camp-In-Gás, Acampamento de Acção Contra o Gás Fóssil e pela Justiça Climática, que culminou com a ocupação por mais de 300 activistas do campo da Australis na aldeia, e plantação de um bosque de árvores autóctones. A força da mobilização local e o enorme crescimento do movimento pela justiça climática, em particular desde o aparecimento da greves climáticas, prometem travar quaisquer tentativas de deixar furar o que quer que seja. Se governo e petrolíferas quiserem avançar com este projectos, espera-os uma enorme derrota social, política e económica.
É difícil projectar adequadamente quanto a luta contra a exploração de petróleo e gás modificou a luta social em Portugal. Ela expressou uma mudança de táctica e de atitude em relação a outras lutas ambientais e em particular ela rebentou a bolha ambiental, para assumir-se como uma luta social, sobre modelo produtivo, sobre modelo de sociedade. Podemos no entanto, ter a certeza de que esta luta foi uma das rochas sobre as quais se ergueu o movimento pela justiça climática em Portugal, através de experiência, tentativa e erro, com convergências e divergências a nunca ditarem hesitação nos momentos de acção.
Não existem grande dúvidas acerca dos efeitos económicos e políticos desta luta. A Gulbenkian foi obrigada a vender a sua petrolífera, a Partex Oil&Gas, depois da forte pressão social que sofreu. Surgiu a campanha Empregos para o Clima, cujo objectivo era também responder à frequente questão “se não fósseis, o quê”, articulando sindicatos e movimentos pela justiça climática para construir um plano para a sociedade e travar o colapso climático. As alterações climáticas deixaram de ser um tema marginal em Portugal ainda antes do aparecimento de Greta Thunberg e das greves climáticas, e em Portugal o movimento grevista assumiu desde o primeiro momento a questão do fim das concessões petrolíferas como bandeira e reivindicação. A luta contra o petróleo e o gás acelerou rapidamente a agenda da descarbonização, escrutinando e expondo a hipocrisia institucional dos programas de neutralidade carbónica que não contavam com os aumentos de emissões associadas a futuros projectos.
Aumentou também o escrutínio de outros projectos com potencial aumento dramático de emissões, como a construção de um novo Aeroporto em Lisboa. O movimento português tornou-se conhecido pela Europa e articulou-se internacionalmente, contra os fósseis, contra a aviação, pela justiça climática. É hoje um movimento mais maduro e radicalizado, e a experiência de ganhar e de lutar sempre para ganhar tem de ser cultivada como cultura organizativa, já que menos do que isso não permitirá travar o caos climático.
No mês passado a campanha “A GALP tem de cair” (GALP must fall), baseada na campanha holandesa “Shell Must Fall” mobilizou vários colectivos nacionais e internacionais (como a Justiça Ambiental, de Moçambique) para exigir a nacionalização da GALP para a transição dos seus trabalhadores e conversão da empresa para o sector das renováveis. A campanha “Gás é Andar para Trás” reúne neste momento 21 organizações nacionais e internacionais e tem como objectivo expresso travar “a narrativa falsa e perigosa que pinta o gás como solução de transição”, focando-se naturalmente nos últimos contratos da Batalha e de Pombal, mas também enfatizando a rejeição das propostas de importação de gás liquefeito e o incentivo público a infraestruturas fósseis a nível europeu e mundial.
A luta contra o petróleo e gás em Portugal, da perspectiva do movimento pela justiça climática, é claramente uma luta defensiva, isto é, apenas permite evitar aumentar ainda mais o fosso da crise climática. As lutas ofensivas, aquelas que constroem alternativas e maiorias sociais para um mundo sem combustíveis fósseis, são as que permitirão travar o colapso climático. Num momento de crise sanitária, social, de emprego e climática, todas em simultâneo, torna-se ainda mais claro que nenhuma delas é independente e nenhuma será verdadeiramente resolvida se as outras não o forem. A manifestação “Resgatar o Futuro, Não o Lucro”, que ocorrerá no próximo dia 6 de Junho, desenha algumas das principais linhas de contra-ataque para deixar de defender e começar a ganhar: proteger imediatamente quem precisa e transformar a sociedade agora, no momento da crise orgânica do capitalismo neoliberal global.
No momento em que a mobilização, mais que nunca, tem de ser ofensiva, a organização pela modificação radical da sociedade, para travar o capitalismo extractivista que só conhece a expansão infinita que garante a destruição absoluta, tem uma lição imprescindível para tirar da luta contra o petróleo: só quem lutar para ganhar poderá ganhar.
Artigo originalmente publicado na BUALA a dia 22 de Maio de 2020.
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