O argumento mais invocado para apoiar a Estratégia Nacional para o Hidrogénio é a ideia de que a mesma tem alguma coisa que ver com descarbonização e combate às alterações climáticas. Apesar do valor propagandístico, a ligação entre hidrogénio e descarbonização é ténue. A possibilidade desta estratégia ser um travão para a redução das emissões de gases com efeito de estufa é real e quando o governo escolhe articular a estratégia com as grandes empresas poluidoras, fica garantido que a mesma se tornará um travão à descarbonização.
Uma primeira questão a destacar é que o hidrogénio, sendo verde, azul, cinzento ou roxo, não é uma combustível em si mesmo. É necessário utilizar um combustível real – renovável ou fóssil – para produzir o hidrogénio que alimentará um sistema energético. Nesse sentido, o hidrogénio funciona como uma pilha, que pode ser usada para transportar energia de um lado para outro ou para armazená-la durante algum tempo. O que seria uma virtuosidade, será, como veremos, um dos maiores problemas do hidrogénio a partir desta abordagem, porque assim que ouve isto, o capitalismo só pensa em como mercantilizar energia.
A actual estratégia nacional para o hidrogénio é a extensão para a periferia da estratégia industrial do centro da Europa, em particular da indústria do gás fóssil. A estratégia corresponde directamente ao interesse de várias empresas petrolíferas e energéticas com gravíssimas responsabilidades na crise climática, prolongando o investimento em gás e lançando as bases de um novo monopólio, já controlado pelos mesmos de sempre.
Quando foi iniciado um processo de averiguações ao ministro Siza Vieira e ao secretário de Estado João Galamba, o último decidiu divulgar as dezenas de reuniões que manteve acerca do hidrogénio. Interessando pouco do ponto de vista criminal (muitos dos crimes feitos na nossa era são legais, especialmente contra povos, clima ou ambiente), ficámos a saber muito acerca da génese e parceiros da estratégia. Galamba teve 27 reuniões antes de ser divulgado o documento. 21 destas reuniões foram com empresas de energia e de gás, incluindo Dourogás, Akuo Energy Group, LightSource BP, EDP, REN, Galp, Prio Energy, Vestas, e Trustenergy. Depois de encerrada a consulta pública, Galamba reuniu com estas e outras empresas, juntando-se ao grupo, entre outras, as gigantes Endesa e Iberdrola.
Há uma reunião recorrente designada primeiro por “Hidrogénio Verde” e depois por “Projecto Hidrogénio”, que ocorre cinco vezes entre 20 de Dezembro de 2019 e 15 de Março de 2020. Este grupo restrito inclui o Secretário de Estado, a EDP, a Galp, a REN, a empresa holandesa Vestas e o Resilient Group. A última reunião realizou-se uma semana antes da estratégia ter sido disponibilizada para consulta pública, e não mais reuniram. Nas mais de 50 reuniões sobre hidrogénio divulgadas por Galamba, só uma (depois de terminada a consulta pública da estratégia) foi com uma instituição académica. Não houve qualquer reunião com organizações da sociedade civil. Não é preciso fazer um esforço enorme para perceber quem são os autores do cerne da estratégia nacional: os maiores poluidores portugueses e uma parte da indústria holandesa. É por isto que uma tertúlia do capitalismo nacional reumático, não representado nestas reuniões recorrentes de Galamba, faz a sua crítica à estratégia, queixando-se exactamente daquilo que a estratégia não faz: cortar emissões de gases com efeito de estufa em 50% até 2030.
O grosso do argumentário favorável à estratégia é de que a mesma alinhará o sistema energético nacional com o Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050. Esclarecimento: o Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050 é insuficiente para manter o aumento da temperatura abaixo dos 1,5ºC e até dos 2ºC até 2100; o Plano Nacional de Energia e Clima também é insuficiente para manter o aumento da temperatura abaixo dos 1,5ºC e até dos 2ºC até 2100. As políticas públicas climáticas europeias, em particular o European Green Deal, também é insuficiente para manter o aumento da temperatura abaixo dos 1,5ºC e até dos 2ºC até 2100. Mesmo que a Estratégia Nacional para o Hidrogénio se alinhasse com estas políticas, não era suficiente. Mas não se alinha, garantindo mesmo o funcionamento das centrais a gás fóssil até pelo menos 2040, através da inclusão de 10-15% de hidrogénio nas redes de gás até 2030 e de 40-50% até 2040.
Há um absurdo claro em Portugal, no que diz respeito ao hidrogénio e descarbonização: nós não temos um excesso de renováveis, nós temos falta de renováveis. Enquanto houver fósseis no sistema, faltam renováveis. E por isso, criar um grande sector de hidrogénio quando não há renováveis sequer para alimentar o sistema energético actual significa apenas que estamos a inventar uma nova indústria para tirar prioridade às renováveis (quer prioridade política, quer prioridade de investimento). Além disso – e é por isso que as velhas indústrias fósseis aqui estão – estaremos a viciar a indústria numa nova tecnologia uma vez mais controlada pelos mesmos monopólios que criaram a crise climática.
O pináculo da estratégia é mesmo o projecto H2Sines, que se apresenta como exemplo acabado de como não utilizar hidrogénio verde. O governo (ou as empresas, ou a estratégia, já é difícil distinguir por esta altura) propõe instalar 1 GW de energia solar, quando em 2019 Portugal apenas tinha 828 MW de energia solar instalada. E propõe usar essa capacidade para transformar energia solar em hidrogénio e enviá-lo para a Holanda, onde seria recebido em Roterdão para distribuir pela petroquímica do centro da Europa, com especial interesse para a Shell e a Gasunie. O ministro Matos Fernandes ainda pôs a cereja no topo do bolo: a Galp está no projecto como um grande consumidor, através da refinaria de Sines, disse em Fevereiro, o que significa mesmo usar hidrogénio para refinar mais combustíveis fósseis. O Governo dá “garantias” de que não haverá custos para os cidadãos, mas santa paciência para esta promessa: nenhum governo em capitalismo não imputa ao povo os custos do seu apoio a actividades privadas, sejam o BPN, o Novo Banco ou o hidrogénio verde.
A nível europeu, a recém-formada Coligação para o Hidrogénio Renovável representa uma nova onda do expansionismo capitalista da Europa Central, em que se importa a partir do centro da Europa a energia renovável produzida no Sul para manter o mesmo ciclo de dependência e dívida. Em capitalismo é incompreensível que introduzir renováveis no sistema só é útil se tirar fósseis do sistema, é incompreensível perceber que o objectivo não é fazer dinheiro. A aposta europeia no hidrogénio é uma nova ronda de cooptação da transição por parte das petrolíferas que deviam estar a pagá-la, mas pela qual continuam a receber, sendo-lhes até entregue a planificação. A estratégia europeia de hidrogénio continua a alimentar os fósseis. Desta maneira, o hidrogénio atrasa a descarbonização e monta um sistema estúpido baseado em preços que em vários momentos vão indicar que faz mais “sentido económico” queimar gás do que usar renováveis, como se a descarbonização fosse opcional.
Não vamos fingir que não sabemos há décadas que no mundo capitalista o Estado é uma extensão mais ou menos directa dos interesses das indústrias e das empresas privadas. A União Europeia contrata a BlackRock, maior investidor mundial em fósseis, para comandar os investimentos na descarbonização, o governo português contrata o administrador da petrolífera Partex para desenhar a estratégia económica para a próxima década e o ministério do Ambiente e Acção Climática entrega a estratégia do Hidrogénio às indústrias poluidoras e depois vende a estratégia como de fosse descarbonização. Mas as regras de antes não contam mais, ou não haverá transição que sirva para travar o colapso climático.
originalmente publicado no Expresso a dia 05 de Dezembro de 2020.