Foi lançado no dia 4 de Abril o novo relatório do Painel Governamental sobre Alterações Climáticas (IPCC) da ONU. O relatório é do Grupo de Trabalho III, e é sobre Mitigação das Alterações Climáticas. O relatório de síntese do trabalho dos três Grupos de Trabalho vai ser publicado no outono deste ano.
Este relatório (de 3 mil páginas) contou com 278 autores, de 65 países, (e contribuições de mais de 354 autores), e tem mais de 18 mil referências de literatura. Lemos o sumário executivo do relatório e aqui estão alguns pontos essenciais.
1. Se decidires ler o sumário, fica atenta: o consenso científico aponta para uma situação muito mais grave do que a apresentada.
O Sumário Executivo é aprovado em plenário, na presença dos governadores e lobbyistas. Sim, estão na sala funcionários das empresas petrolíferas que devem ser persuadidos sobre cada linha para o documento ser aprovado. Aliás, foi por isso que pela primeira vez o lançamento foi atrasado. O papel da indústria dos combustíveis fósseis em travar políticas climáticas é bastante visível no relatório, mas é inexistente no Sumário.
2. É preciso cortar emissões drasticamente, mas na verdade estas estão a aumentar, e prevê-se que continuem a aumentar.
As emissões aumentaram 19% entre 2010 e 2019, em vez de diminuir.
Com as políticas actuais, o pico das emissões nem está previsto para esta década. Na verdade, para limitar o aquecimento nos 1.5 ºC, seria necessário cortar emissões de CO2 por metade até 2030, de metano por um terço.
Os governos estão a apontar para um aquecimento de 3.2 ºC até ao fim do século. Tendo em conta que já estamos num mundo 1.1 ºC mais quente, isto implica aquecer mais 2.1 ºC, em vez dos 0.4 ºC que nos permitiram ficar abaixo dos 1.5 ºC. Em outras palavras, a “ambição” está 5 vezes aquém do necessário.
3. Os governos estão a planear acabar o orçamento de carbono de 1.5 ºC já esta década.
O que nos resta das emissões cumulativas de CO2 para limitarmos o aquecimento em 1.5 ºC são 500 Gt CO2. Ou seja, temos um orçamento de carbono de 500 Gt CO2, depois teríamos de abruptamente parar toda a actividade emissora, para ficarmos abaixo de 1.5 ºC de aquecimento. As emissões anuais são de 59 Gt CO2-eq.
Por outras palavras, todas as declarações sobre 2040 ou 2050 são meramente retóricas, porque apontam para políticas pós cairmos no abismo do caos climático.
“Global GHG emissions in 2030 associated with the implementation of nationally determined contributions (NDCs) announced prior to COP26 would make it likely that warming will exceed 1.5°C during the 21st century. (This implies that mitigation after 2030 can no longer establish a pathway with less than 67% probability to exceed 1.5°C during the 21st century)”
4. Ganhos com eficiência energética foram ultrapassados pelo crescimento no uso.
“Emissions reductions in CO2 from fossil fuels and industrial processes, due to improvements in energy intensity of GDP and carbon intensity of energy, have been less than emissions increases from rising global activity levels in industry, energy supply, transport, agriculture and buildings.”
Isto significa que apostar na eficiência sem mudar o modo de produção e sem questionar a lógica de crescimento não dá resultados e existem provas empíricas deste problema.
5. Desigualdades globais estão no centro do problema.
“Globally, the 10% of households with the highest per capita emissions contribute 34-45% of global consumption-based household GHG emissions, while the middle 40% contribute 40-53%, and the bottom 50% contribute 13-15%.”
Os 10% mais ricos são responsáveis por 40% das emissões, enquanto os 50% mais pobres são responsáveis por 15%.
6. Houve ganhos reais do movimento que podem ser observados empiricamente. Mas resultaram principalmente na redução do aumento das emissões, mas não numa redução absoluta.
“From 2010–2019, there have been sustained decreases in the unit costs of solar energy (85%), wind energy (55%), and lithium-ion batteries (85%), and large increases in their deployment, e.g., >10x for solar and >100x for electric vehicles (EVs),”
“By 2020, there were ‘direct’ climate laws focused primarily on GHG reductions in 56 countries covering 53% of global emissions.”
“Multiple lines of evidence suggest that mitigation policies have led to avoided global emissions of several Gt CO2-eq/yr. … Growing numbers of laws and executive orders have impacted global emissions and were estimated to result in 5.9 Gt CO2-eq/yr less in 2016 than they otherwise would have been.”
A pressão criada pelos movimentos sociais está a ter resultados calculáveis, apesar de serem completamente aquém do que é necessário. Vale a pena lutar.
7. Os governos nem estão a cumprir o que disseram que iam fazer.
Pondo as necessidades que a ciência climática dita, os governos nem estão a cumprir o que tinham declarado voluntariamente.
Antes do Acordo de Paris, os Estados tinham oferecido “contribuições nacionalmente determinadas” para cortar emissões. Estas obviamente não estavam alinhadas com a meta de 1,5ºC ou 2ºC de aquecimento. A história contada na altura era que iam aumentar as suas ambições.
“Global GHG emissions in 2030 associated with the implementation of nationally determined contributions (NDCs) announced prior to COP26 would make it likely that warming will exceed 1.5°C during the 21st century. … Policies implemented by the end of 2020 are projected to result in higher global GHG emissions than those implied by NDCs.”
Neste momento estão a acontecer duas coisas ao mesmo tempo: Um, as contribuições anunciadas continuam aquém do necessário; E dois, as contribuições anunciadas nem estão a ser cumpridas.
8. Não pode haver nem um novo projecto de emissões.
“Projected cumulative future CO2 emissions over the lifetime of existing and currently planned fossil fuel infrastructure without additional abatement exceed the total cumulative net CO2 emissions in pathways that limit warming to 1.5°C.”
Isto põe em causa os planos de expansão do Terminal GNL do Porto de Sines, a construção do gasoducto no interior, e a insistência do governo num novo aeroporto em Lisboa.
9. Na indústria é preciso reduzir o uso dos recursos drasticamente, mas em vez disso o uso está a aumentar.
O uso de aço, cimento, plástico e outros materiais está a aumentar globalmente. Estes são sectores tecnicamente mais difíceis de descarbonizar. Apesar do discurso da economia circular, o que entra no tal “círculo” continua a aumentar.
10. Nos transportes, a solução é simples: transportes públicos eléctricos
“Demand-focused interventions can reduce demand for all transport services and support the shift to more energy efficient transport modes. Electric vehicles powered by low emissions electricity offer the largest decarbonisation potential for land-based transport,”
Estas frases consecutivas resumem tudo que o movimento pela justiça climática disse ao longo dos anos. Primeiro, é preciso reduzir a necessidade de carros individuais drasticamente, satisfazer as necessidades de mobilidade com comboio, metro, eléctrico e autocarros. Ao mesmo tempo, é preciso electrificar tudo isso.
11. Florestar é bom, mas o sequestro florestal não pode compensar as emissões dos outros sectores.
Isto é muito importante, porque há dezenas de formas de fixar carbono no solo e nas plantas, mas essa lógica de “emissões negativas” não pode servir para prolongar a queima de combustíveis fósseis.
“AFOLU [agriculture, forestry and other land use] mitigation options, when sustainably implemented, can deliver large-scale GHG emission reductions and enhanced removals, but cannot fully compensate for delayed action in other sectors.”
“The projected economic mitigation potential of AFOLU options between 2020 and 2050 … is 8-14 GtCO2-eq/yr … The largest share of this economic potential [4.2-7.4 GtCO2-eq/yr] comes from the conservation, improved management, and restoration of forests and other ecosystems (coastal wetlands, peatlands, savannas and grasslands), with reduced deforestation in tropical regions having the highest total mitigation. Improved and sustainable crop and livestock management, and carbon sequestration in agriculture, the latter includes soil carbon management in croplands and grasslands, agroforestry and biochar, can contribute 1.8-4.1 GtCO2-eq/yr reduction. Demand-side and material substitution measures, such as shifting to balanced, sustainable healthy diets, reducing food loss and waste, and using bio-materials, can contribute 2.1 GtCO2-eq/yr reduction.”
O plano de mitigação que o IPCC sugere é tentar chegar a zero emissões em todos os sectores, e só depois considerar emissões negativas para compensar as últimos toneladas de emissões, provavelmente originárias da agricultura, do transporte internacional e dos processos industriais.
12. Travar a crise climática não é possível sem justiça climática.
A componente de justiça social está muito presente no documento inteiro. Justiça global e transição justa são centrais para a mitigação.
“Consideration of climate justice can help to facilitate shifting development pathways towards sustainability, including through equitable sharing of benefits and burdens of mitigation, increasing resilience to the impacts of climate change, especially for vulnerable countries and communities, and equitably supporting those in need.”
13. Travar a crise climática não é possível sem democracia energética.
“Effective and equitable climate governance builds on engagement with civil society actors, political actors, businesses, youth, labour, media, Indigenous Peoples and local communities.”
Apontamos para este ponto, porque se olharem com atenção podem ver que neste momento só “businesses” estão a ser envolvido nos processos políticos, o que garante que não haja políticas climáticas eficazes.
14. O financiamento climático anunciado até 2030 está aquém das necessidades por um factor de 3 a 6 vezes.
“Average annual modelled investment requirements for 2020 to 2030 in scenarios that limit warming to 2°C or 1.5°C are a factor of three to six greater than current levels, and total mitigation investments (public, private, domestic and international) would need to increase across all sectors and regions.”
Cada vez que o relatório compara a realidade e o que é preciso acontecer, chegamos à mesma conclusão. A escala do erro é tão grande que nos indigna profundamente. No caso do financiamento, é como se trabalhássemos um mês inteiro, com um contrato de salário mínimo, e depois no fim do mês recebêssemos 100 euros só por “falta de ambição” do nosso patrão.
15. Junta-te à luta.
Isto não está propriamente escrito no relatório do IPCC, mas parece-nos uma conclusão relativamente directa. Até o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, conseguiu chegar lá: “Os ativistas climáticos às vezes são descritos como radicais perigosos. Mas os radicais verdadeiramente perigosos são os países que estão a aumentar a produção de combustíveis fósseis.”
O problema não são “os países”, obviamente. O problema é o sistema socioeconómico dominante nestes países. Só um movimento popular forte e alargado tem alguma probabilidade de travar o colapso e construir justiça climática. Junta-te à luta.