Incêndios: governo e celuloses garantem repetição de 2017 – António Assunção, Eunice Duarte, Fábio João Marçal, João Camargo, Jorge Paiva, Maria Teresa Rito, Matilde Alvim, Matilde Ventura, Mónica Casqueira, Nina Van Dijk, Paulo Pimenta de Castro, Serafim Riem

Cada lágrima chorada hoje será, de forma inequívoca, uma farsa, uma mentira, uma chapada na cara das famílias de quem morreu e uma machadada no futuro de quem pensa continuar a viver em Portugal.

Cinco anos depois, Portugal é um país mais perigoso, mais despreparado e mais frágil. Cinco anos depois, os donos da floresta mandam mais do que nunca. Cinco anos depois, o abandono expandiu-se, como se expandiu o eucaliptal e como se expande o deserto. Cinco anos depois temos menos florestas, menos pessoas no interior, menos poder no meio rural e nenhum respeito pelas comunidades devastadas pelos incêndios de 2017.

Houve breves momentos, em 2017 e 2018, em que pareceu que seria possível mudar algo no país. Depois da enorme tragédia que queimou mais de 5% do território do país, que ceifou mais de 100 vidas, pensámos que esses factos avassaladores obrigariam um governo que, como os anteriores, se vergava ao poder das celuloses, a corrigir o rumo. Fomos ingénuos. Ao considerarmos o valor da vida humana incalculável, pensámos que as perdas após os incêndios teriam valor suficiente para obrigar o regime a questionar se era possível manter a maior área relativa de eucaliptal do mundo, com as maiores áreas ardidas da Europa ano após ano, com o custo humano, social e ambiental que tal acarretava. Estávamos errados.

Os incêndios de 2017 e o novo regime de incêndios que existe hoje em Portugal, articulando três factores essenciais – um novo clima inclemente, mais quente e seco, provocado pelas alterações climáticas, uma paisagem composta maioritariamente por eucalipto, uma espécie pirófita e invasora, e o abandono do interior pela população com cada vez piores condições para habitá-lo – já não ocupam um só minuto das preocupações da elite governante deste país. Cada lágrima chorada hoje será, de forma inequívoca, uma farsa, uma mentira, uma chapada na cara das famílias de quem morreu e uma machadada no futuro de quem pensa continuar a viver em Portugal.

Alguns de nós atravessaram recentemente uma parte do território na Caravana pela Justiça Climática e observaram, em conjunto com a população, como tudo está pior. Pior. Cinco anos depois da enorme tragédia de Pedrógão Grande, cinco anos depois dos piores incêndios da história deste país, as condições estão reunidas para uma tragédia ainda pior. Pior. Não são fenómenos “naturais” que ocorrem por acaso, há responsáveis pela situação atual: este governo, sem dúvida, e as empresas de celulose que proliferam nesta degradação, que se expandem e se beneficiam neste caos. Pior: o governo entregou nas mãos das celuloses a “reorganização” da estrutura de combate e prevenção de incêndios. Resultado: o território nacional tem reunidas as condições para tragédias ainda piores.

Após os incêndios de 2017 foram prometidas pelo governo duas coisas em Pedrógão: um projeto piloto de ordenamento florestal e um monumento às vítimas. Nenhum existe. Todos os discursos de circunstância, as vozes embargadas e as lágrimas que caírem hoje por parte dos responsáveis por 2017 e pelo pós-2017 devem ser desprezados e caracterizados pelo que efetivamente são: insignificantes.

Em 2017 e 2018 fomos ingénuos e deixámo-nos embalar pela possibilidade de haver lógica, decência e Humanidade na elite governante deste país. Enganámo-nos e deixámo-nos ser enganados. A virulência e a gula da indústria do papel não tem qualquer limite nem reconhece qualquer possibilidade de restrição, mesmo perante os piores cenários. Não voltaremos a ser ingénuos nem voltaremos a ser enganados, apesar do enorme poder da máquina de fumo e mentiras que dá aval à manutenção deste caos. Cinco anos mais tarde, respondemos que não assistiremos com complacência à condenação do interior e do país ao colapso.

Artigo originalmente publicado no Expresso a 16 de Junho de 2022

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