A batalha de Lützerath – João Camargo

Em Lützerath estiveram em confronto duas forças históricas. De um lado, o movimento pela justiça climática, que há décadas se organiza e que desde 2019 se tornou um movimento global de massas. Em oposição a este, a RWE, multinacional alemã de carvão, e milhares de polícias vindos de pelo menos 14 cidades alemãs, em defesa das decisões do governo federal alemão e do governo da Renânia do Norte – Vestfália. Mais do que simbólica, a batalha de Lützerath travou-se por iniciativa do movimento pela justiça climática para travar a extração de 280 milhões de toneladas de carvão que estão por baixo da devastada aldeia.

Durante os últimos dois anos, centenas de ativistas ocuparam as casas da aldeia. Entretanto os governos federal e estadual e a RWE negociaram e coagiram os habitantes de Lützerath, abreviada para Lützi, a desocuparem as casas que habitavam. No início deste ano, mais de 300 pessoas montaram várias estruturas para resistir ativamente à destruição, evitando o despejo e a demolição das casas e abate da floresta, marcada para 10 de Janeiro. Os ativistas que lá estavam, assim como outros que se juntaram, barricaram casas, portas e janelas, ruas, construíram casas nas árvores e prepararam-se para o embate.

Do outro lado, não estava apenas uma empresa, mas grande parte do aparelho de Estado alemão, posto em campo a favor da expansão da mina de Garzweiller e da indústria fóssil. O estado alemão mobilizou milhares de polícias e sua infraestrutura, vindos de todo o país, para expulsar os ativistas e deixar passar as máquinas. A polícia alemã usou as empresas de comunicação da RWE, camiões, instalações e máquinas da RWE na sua ação, numa verdadeira parceria público-privada. O Estado alemão gastou milhões de euros para garantir o direito à destruição de Lützi pela RWE.

No centro da decisão da destruição da aldeia para expansão da mina de carvão está o partido “Os Verdes”. Faz parte do governo da Renânia do Norte – Vestfália, em coligação com a CDU (direita) e faz parte do governo federal alemão em coligação com o SPD (centro-esquerda) e o FDP (centro-direita). O Vice-Chanceler e ministro da Economia e Ação Climática é mesmo Robert Habeck, ex-líder e dirigente d’Os Verdes. Os resultados eleitorais deste partido em 2021, com 14,8%, foram conseguidos após as enormes mobilizações pelo clima no país. O partido justifica o seu apoio à decisão de destruir Lützi para expandir Garzweiler indicando que assim a RWE antecipará para 2030 o fim do carvão em vez de em 2038. No entanto, a expansão de Garzweiler significa apenas que queimará o carvão mais rápido, o que na verdade ainda piora a situação em termos de crise climática.

Na quarta feira, 11 de Janeiro, filas de polícias a perder de vista, a pé, a cavalo e em jipes marcharam sobre este lugarejo como se fossem um exército, com tanques, helicópteros e canhões de água, preparados para combaterem um autêntico inimigo. Em Lützi encontraram dezenas de ativistas pendurados em tripés em todas as ruas, nos telhados de casas, presos e equilibrados no topo das árvores. O aparato policial precisava de escaladores, mas trazia escudos, cassetetes e gás pimenta, à procura de violência, que só a espaços e em pequenos recontros encontrava. Entretanto, funcionários da RWE cortavam com serras elétricas as árvores onde ativistas resistiam, abatendo a floresta para dar espaço a mais carvão. Não pararam um momento durante os três dias seguintes, com turnos de polícias a retirarem e a prenderem um a um os ativistas pela madrugada dentro. Parecia que tudo ia acabar antes do fim-de-semana. Foi nessa altura que receberam a notícia de que havia um túnel subterrâneo, escavado pelos ativistas, onde duas pessoas – autodenominadas Pinky e Brain – resistiam debaixo de Lützi, mais perto do carvão mas longe da mão pesada da polícia. A força bruta, os milhares de polícias mobilizados, os milhões de euros gastos, não podiam tudo.

Fora de Lützi, a questão tornou-se enorme em termos de comunicação, com uma parte da imprensa alemã a chamar aos ativistas “terroristas climáticos”, enquanto sedes dos Verdes e da RWE eram ocupadas e ações internacionais de solidariedade aconteciam em países um pouco por todo o mundo. Foi feita uma sondagem na Alemanha acerca da manutenção de Lützerath, e 59% das pessoas pronunciaram-se a favor, com 33% a favor da demolição.

No sábado, pelo menos 35 mil manifestantes vieram até Lützi, incluindo Greta Thunberg. Milhares de polícias cercaram a manifestação enquanto esta avançava, outros cercavam a aldeia. Milhares de manifestantes invadiram a mina de Garzweiler e obrigaram à paragem dos trabalhos de extração de carvão. A polícia fez cargas violentas em pequenos grupos, experimentando táticas de guerrilha contra os ativistas, embora as imagens mais marcantes tenham acabado por ser a detenção de Greta e um grupo de polícias atolados na lama, gatinhando para tentarem pôr-se de pé, perante um “monge da lama”, imune a afundar-se. A polícia conseguiu evitar que os manifestantes “reconquistassem Lützerath”, mas precisou de usar toda a espécie de meios para fazê-lo. Nos dias seguintes, a coligação Ende Gelaende invadiu a mina de Garzweiler e obrigou à paragem da extração de carvão inúmeras vezes.

Apenas no dia 16 de janeiro Pinky e Brain saíram do túnel debaixo de Lützi, por sua vontade, uma vez que a polícia não tinha de retirá-los. No dia 23 a polícia e a RWE declararam a aldeia despejada.

Lutzerath está neste momento arrasada. Ao seu lado, a mina de carvão que a vai começar a engolir parece a superfície da Lua, um território irrecuperável por milhares de anos. Esta foi a conquista da aliança capital fóssil – Estado alemão.

A detenção de centenas de ativistas e a expectável condenação de alguns deles a penas de prisão serão os passos institucionais que se seguem. Mas algo essencial mudou com a Batalha de Lützerath. A mobilização e utilização massiva dos recursos do Estado para garantir a continuação da destruição foi necessária. E sê-lo-á muito mais vezes, com o agravar da crise climática.

No Reino Unido, novas leis draconianas contra o direito à greve e sobre as manifestações políticas foram aprovadas para tentar conseguir travar o Just Stop Oil, o Insulate Britain, o que sobra do Extinction Rebellion e a forte onda de greves no território. Ativistas climáticos em vários países da Europa estão a ser detidos preventivamente para tentar travar grandes ações disruptivas. Nos Estados Unidos um ativista climático que protegia uma floresta na Geórgia foi assassinado a sangue frio pela polícia.

Claro que nada disto é novidade em países mais pobres na América Latina, na Ásia ou no continente africano. A novidade é estarem a acontecer mesmo nos centros de poder do capitalismo.

Na escolha entre travar o colapso climático ou acabar com o privilégio do lucro capitalista, o sistema decidiu: vai mobilizar todos os recursos que forem necessários para manter a destruição. Não só não vai fazer o que reconhece ser necessário e o que assinou em acordos como o de Paris, mas usará da força bruta para manter a máquina imsaciável do lucro a funcionar, mesmo que tal custe o colapso climático. Aliás, sabendo que isso custaria o colapso climático se o movimento desistisse ou se resignasse.

Qualquer protesto climático (ou social) consequente terá de ser proibido.

Isto será feito tanto com o aval dos Verdes na Alemanha como com o do Labour no Reino Unido, e por tantas organizações políticas mais preocupadas com a ordem do que com a vida. Escolheram o campo da catástrofe.

Se recordarmos que o anunciado presidente da cimeira do Clima deste ano é o presidente de uma das maiores petrolíferas do mundo, fecha-se o nó: a via institucional para travar a crise climática enforcou-se em público e todos podemos observar o seu cadáver a baloiçar. Nenhuma eleição e nenhuma cimeira vai travar o caminho para a catástrofe desenhado pelo capitalismo. Sem a ação e a coragem do movimento pela justiça climática não haverá caminhos para o futuro. Além de parar o dano atualmente feito, tem de construir a transformação que o momento histórico em que vivemos exige.

A batalha de Lützerath marca o início de uma nova etapa. O sistema já escolheu: quer o colapso e confrontará violentamente quem se lhe opuser. Em Lützi o movimento já mostrou que não vai recuar. Chegou a hora do movimento avançar.


Artigo originalmente publicado no Expresso a 1 de Fevereiro de 2022.

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