Seis anos depois dos incêndios de Pedrógão, em 17 de junho, e depois dos de 15 de Outubro, com inúmeros indicadores de um verão devastador a aproximar-se agora, olhar para o legado de cinzas que foram os últimos anos deve erguer em nós, por um lado, vergonha pela inação e, por outro, raiva por quem teve profundas responsabilidades no que aconteceu não só não ter respondido por nada como ainda ter conseguido que a situação, em grande medida, se agravasse. Mais relevante, no final, é que se continuarmos a permitir por omissão que nada mude, a inviabilidade do território nacional vai ocorrer muito mais rápido do que aquilo que estamos à espera.
É preciso reconhecer o enorme desrespeito e desprezo que, enquanto sociedade, dedicámos às pessoas que morreram nos incêndios florestais em Portugal 2017. Depois de mais de 100 pessoas terem morridos nos incêndios, inúmeras coisas deviam ter acontecido para evitar cenários similares. O governo, de mão dada com as empresas de celulose, concretamente a The Navigator Company e a Altri Florestal, firmou os pés no chão, alocou alguns milhões no reforço do combate e principalmente no resgate de pessoas, fez uns anúncios falsos sobre restrições à indústria e decidiu que o caos do território era algo em que não pode tocar.
Cadastro florestal do país? Não existe. Quanto do território está abandonado? Vá-se lá saber. O que está nesses territórios? É tentar adivinhar (se for território florestal a probabilidade de ser eucalipto é elevada). Um país moderno, cheio de optimizações digitais, vias verdes e outras maravilhas tecnológicas, não sabe a quem pertence vá-se lá saber que percentagem do território (há uns anos estimava-se o abandono em 20% mas, desde então, não se ficou a saber mais nada). Bravo.
O país com maior área de eucaliptal relativo do mundo. Confirma-se. Provavelmente perto de um milhão de hectares de Eucaliptus globulus, a planta que dá a matéria-prima para a indústria da celulose e do papel. Uma planta que co-evoluiu com o fogo na Austrália e que se expande em cada incêndio. Uma espécie magnífica, verdadeira candidata a ser mandada por Elon Musk para Marte como espécie pioneira, vai buscar a água mais longínqua, resiste na maior parte dos casos ao fogo e espalha-o e às suas sementes aos quatro ventos.
Terá alguma influência no facto de Portugal ser o país que mais arde no Mediterrâneo? Alguns especialistas juram a pés juntos que não, e que também não consome mais água do que as outras árvores, pelo que como cresce mais rápido do que as outras deve ser uma árvore abençoada pela Nossa Senhora de Fátima, só podendo a magia ou o divino explicar que cresça mais rápido do que as outras consumindo a mesma (ou menos) água.
Para não haver dúvidas sobre o absoluto ultraje que é a ação política e mediática das celuloses, a sua confederação, a CELPA (que entretanto mudou de nome para BIOND) aproveitou uma área aprovada para plantar medronheiros e foi plantar 90 hectares de eucaliptos em… Pedrógão Grande. Para o ultraje ser perfeito, hoje os eucaliptos tapam uma parte da estrada. Eles mostraram, a nós e a toda a gente, que podem mesmo. Uma vergonha para nós. Não é difícil imaginá-los a planearem uma plantação de eucaliptais em cima das pessoas que morreram nos incêndios. Uma vergonha para nós, enquanto sociedade. As celuloses não têm, nunca tiveram e nunca terão qualquer vergonha.
Passados seis anos, a crise climática não se dá por fenómenos espaçados no tempo, mas ininterrupta. A confirmação de um El Niño que até pode vir a ser especialmente poderoso ameaça fazer com que a temperatura suba de forma descontrolada uma vez mais.
Isso faz com que aquela velha máxima de que o que importa para combater a crise climática é plantar árvores vá sendo uma proposta cada vez menos viável. Porquê? Porque em primeiro lugar o que se continua a plantar, apesar de alguma propaganda, é principalmente eucalipto. Segundo porque a seca e a escassez de água fazem com que haja cada vez mais mortalidade de árvores e menos espécies que aguentem. Terceiro porque para uma área florestal ser um sumidouro de carbono ela precisa de não arder ou não morrer, o que não está fácil de acontecer, em particular se for um eucaliptal ou uma área arborizada ao lado de um eucaliptal.
E aqui entra o novo truque e negócio das celuloses: por um lado, estão a usar uma parte da pouca água que temos para regar eucaliptais (puff… eu sei), por outro estão a projetar-se em grande escala no negócio da energia, isto é, a queimar árvores para produzir energia e dizer que ela é “verde”. O único nome para isso é Desflorestação.
Essa é neste momento, a única aposta de governo, celuloses e academia. Aceitar o colapso, a desflorestação e a desertificação. São uma espécie de coligação Doutor Estranho Amor (ou How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb). Não só aceitaram a desflorestação e a desertificação como estão a acelerá-la, queimando partes da floresta no inverno. Se noutro tempo esta proposta poderia despertar alguma curiosidade, em 2023, quando Portugal é cada vez mais fronteira com o deserto do Sahara, fazer isso em escala significa acelerar o deserto.
Tudo isto é uma vergonha para nós.
No entanto, sabemos que se é para ter um território viável, precisamos de operar modificações fundamentais na organização do nosso território, e não daqui a várias décadas, mas nesta. Precisamos de deseucaliptizar e remover outras espécies invasoras em grande escala e operar a nível da paisagem, plantando as árvores que ardem menos e as que podem aguentar um território mais seco e mais quente, mas que podem simultaneamente desempenhar as funções de conservação de solos e água que a eucaliptização e outras monoculturas em grande escala estão a devastar há décadas. Nós temos de fazer isto, não só pela vergonha que é, seis anos depois da devastação que começou em Pedrógão e acabou em 15 de outubro, estar quase tudo pior. Temos de fazê-lo se temos alguma expectativa deste território a que tanta gente chama país continue a ser viável.
Artigo originalmente publicado no Expresso a 16 de Junho de 2023.