Refugiados do clima – João Camargo

Em Março de 1971 Hafez al-Assad liderou um golpe de Estado e tornou-se presidente vitalício da Síria. Entre os anos 70 e 90 os governos do Partido Baath de al-Assad promoveram políticas agrícolas no sentido do aumento do auto-aprovisionamento alimentar, utilizando para isso a expansão dos poços subterrâneos e a utilização de métodos de rega intensiva e com elevado desperdício. A primeira grande seca registada desde o início destas políticas públicas ocorreu entre 1988 e 1993, cinco anos de seca severa no país. Entretanto, em 1995 a Síria atingiu a auto-suficiência em produção de trigo. A segunda grande seca registou-se entre 1998 e 2000, coincidindo o fim da mesma com a morte de Hafez al-Assad e a sua sucessão pelo seu filho Bashar al-Assad. Nesse mesmo ano o rio Khabur, no Nordeste do país, secou.

A 2ª Guerra do Iraque, iniciada em 2003 sob a batuta de George W. Bush, Tony Blair e Durão Barroso, produziu milhões de refugiados, muitos dos quais se deslocaram para a Síria, país vizinho. Dois anos mais tarde começou nova seca na região, que durou entre 2005 e 2010. Entre o início da Guerra do Iraque e 2010 houve 3 milhões de refugiados de climáticos e de guerra na Síria, estimando-se em 1,5 milhões de iraquianos deslocados e 1,6 milhões de sírios que se deslocaram internamente, em particular das zonas rurais e agrícolas para as cidades. O inverno de 2007/2008 é o mais seco de que há registos na Síria. Simplificando, no primeiro ano de seca (2006), os agricultores perderam as suas colheitas, no segundo (2007) os agricultores perderam as suas sementes, no terceiro (2008) perderam as suas propriedades, no quarto (2009) foram viver para Damasco, para Aleppo, para Homs. Em 2010 o influxo de mais de 3 milhões de pessoas aos grandes centros urbanos, quase duplicou a população dos mesmos. Em Março de 2011 o preço de um apartamento em Damasco mais que duplicara em relação a 2005. Entre 2007 e 2011 o preço do trigo e do arroz duplicou. Em Março de 2011 começaram os motins que levariam à Guerra Civil.

A Primavera Árabe nasceu também também num caldo ambiental em ebulição – o aquecimento global e as alterações climáticas. Isto não significa que tenham sido estes os únicos factores que determinaram a explosão de motins e revoluções no Egipto, na Tunísia, na Algéria, na Jordânia, no Iémen ou na Tunísia. Mas as alterações climáticas foram e são decididamente multiplicadores de ameaças de riscos. Certo é que as alterações climáticas não foram gatilho suficiente para espoletar as revoltas – mas perante democracias frágeis ou ditaduras caducas, perante instituições afastadas da realidade e desprezando as populações, foram decisivas.

Em Março de 2011, apogeu inicial da Primaveras Árabe, a FAO declarou que os preços globais de alimentos estavam no valor mais alto de sempre. Em Fevereiro de 2011, o trigo custava mais de o dobro de em Julho de 2010. Tudo isto apanhou as instituições oficiais de surpresa: o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos tinha previsto para 2011 produções recorde de trigo e preços recorde em baixa. Mas um quarto das colheitas no Canadá foram destruídas pela chuva recorde na Primavera de 2010, a seca e os incêndios florestais na Rússia e na Ucrânia reduziram em 2010 a colheita para 60 milhões de toneladas, quando em 2009 tinha sido de 2010. Para manter preços e garantir auto-aprovisionamento, a Rússia proibiu as exportações desde Agosto. O Egipto, por exemplo, recebeu na segunda metade de 2010 menos de metade do trigo russo que recebera em 2009. A Ucrânia também limitou as suas exportações para o Médio Oriente e Norte de África. O açúcar passou de 17 cêntimos a libra para 33 cêntimos a libra, devido a ciclones e seca no Paquistão e no Brasil. Enquanto isso a União Europeia e os Estados Unidos subsidiavam a produção de biocombustíveis, aumentando há anos o preço dos alimentos (e a emissão de gases com efeito de estufa).

A fragilidade da concentração das cadeias de produção e distribuição em poucos agentes económicos agarrados aos regimes levou a um aumento ainda maior o preço dos alimentos. Por outro lado, continuou o declínio da produtividade agrícola que se mantinha desde a década de 90, com acréscimos decrescentes de produção mesmo perante a introdução de mais avanços tecnológicos, máquinas agrícolas, químicos e irrigação insustentável.

Na Tunísia os manifestantes empunhavam baguetes como símbolo dos protestos. Perante uma situação de desemprego e precariedade generalizada, os sobressaltos climáticos precipitavam convulsões para o futuro de regimes e países.

Segundo as Nações Unidas, há 4 milhões e 88 mil refugiados sírios fora do país e 7 milhões 950 mil refugiados internos. Do Iraque, são 370 mil refugiados fora do país e 3 milhões e 600 mil refugiados internos. À Europa chegaram nos últimos meses menos de 300 mil refugiados (243 mil segundo o FRONTEX, agência europeia para as fronteiras), dos quais 106 mil vêm da Síria. Os restantes são principalmente provenientes do Afeganistão, da Eritreia, da Nigéria, do Kosovo, do Paquistão e de mais países da África Subsahariana. Os refugiados sírios não escolheram a União Europeia como seu destino principal, bem pelo contrário: há 1 milhão e 939 mil refugiados na Turquia, 1 milhão 114 mil no Líbano, 629 mil na Jordânia, 132 mil no Egipto e, espantosamente, 250 mil no Iraque e 24 mil na Líbia. Ora esta questão desmente a narrativa infantil acerca da invasão que a Europa estaria a sofrer. Mas a deslocação em massa de populações inteiras, longe de ser um fenómeno episódico, anuncia ter chegado para ficar: os impactos das alterações climáticos, não só futuros como já presentes, são claros. O Mediterrâneo, espaço onde habitam mais de 400 milhões de pessoas, tende a tornar-se uma área crescentemente inabitável. E tanto mais tenderá a acontecer isto quanto mais se insistir em práticas agrícolas, industriais, energéticas e económicas que se recusem a abdicar do ganho imediato pela estabilidade futura.

Desenganemo-nos: as secas extremas são exacerbadas pela escolha de colheitas erradas, de espécies desadequadas e de níveis de humidade que não existem nos solos, mesmo que se apliquem correctivos químicos, mecânicos e irrigação em doses caras e massivas ; a construção em zonas inundáveis e de infiltração de água é a garantia de acidentes, numa escala de tempo que, com as alterações climáticas, tende a acelerar; as cidades sem corredores adequados de ventilação, sem corredores e zonas verdes de dimensão muito relevante, serão fornalhas nas temperaturas futuras, que são os picos de calor de hoje. Não precisamos sequer entrar na subida do nível médio do mar, que provocará sem qualquer dúvida a deslocação de populações dos litorais para os interiores.

Mas as guerras que estão na origem da grande vaga de refugiados a que hoje assistimos não são apenas fruto das alterações climáticas. São fruto, antes de mais, da intervenção militar dos Estados Unidos durante décadas no Médio Oriente. É desolador constatar que as guerras que destruíram estes países foram também feitas apenas para poder obter mais combustíveis fósseis baratos e acelerar a degradação do planeta. Estas guerras são fruto da intervenção reiterada na vida interna e política destes países por parte dos Estados Unidos e da União Europeia. Mais, são fruto destes países serem também desestruturados a vários níveis, se não em infraestruturas, a nível de democracia e de mecanismos institucionais que atendessem às necessidades de populações crescentemente vulneráveis. São estados falhados, não apenas devido às suas condições específicas, mas também devido às intervenções sofridas. Mas as alterações climáticas são um multiplicador que catapulta todas as tensões. Hoje mesmo, olhando para a Europa se pode ver o efeito que uma pressão sobre um sistema mal construído produz: os dirigentes incapazes de olhar para o problema seriamente, estados fascistas que constroem muros de betão e arame farpado para impedir a passagem, que prende a alimenta como animais pessoas que fogem de guerras. A livre circulação de pessoas suspensa, dentro e fora do espaço Schengen, por causa da entrada de menos de 0,05% da sua população da UE. A debilidade das instituições é exposta claramente – não sabem do que estão a tratar e incrivelmente não se prepararam para um cenário que não só conheciam como ajudaram a construir, ao apoiar intervenções militares na Síria, na Líbia e no Iraque. Imbuíram-se as instituições das mesmas teorias alienantes e individualizantes propagadas às populações. Mas digamos que há um acordo e que os refugiados são distribuídos entre os Estados-Membros. Nada faz levar a pensar que não existirão novas vagas de emigração em anos futuros. O El Niño previsto para este ano deverá estar na ordem dos piores conhecidos, o que afectará secas, cheias e colheitas, espoletando naturalmente todas as tensões sociais que a escassez extrema acarreta, em particular em países sem infraestruturas de apoio social.

Apesar de no sul da Europa o êxodo rural já ter ocorrido fortemente nas últimas décadas, as enchentes nas cidades, o desemprego em massa, a precarização e a falta de estruturas sociais apoiou uma migração (também ela de massas) em direcção a norte. Fenómenos climáticos extremos (que não são só futuros, como presentes: Portugal atravessa, uma vez mais, um ano de seca extrema com prejuízos avultados esperados, com incêndios recorde, perdas de colheitas, etc.) aceleram o empobrecimento, a desprotecção, a vulnerabilidade e o movimento. Uma sequência de maus anos em termos de fenómenos climáticos (e não há quaisquer cenários que prevejam melhoria das condições do Mediterrâneo) não deixa de ter consequências sociais e políticas. Especialistas apontam para futuras migrações em massa, em fuga de terras de difícil habitabilidade, mas também de instabilidade social e até de conflito, nos territórios de Portugal, Espanha, Itália e Grécia. O desmantelamento dos apoios sociais e das infraestruturas da sociedade prepara um caldo de ebulição. O índice de desenvolvimento humano da Síria em 2009 era igual ao de Portugal no meio dos anos 80.

As migrações em massa são um processo de adaptação às alterações climáticas e devem ser interpretados dessa maneira: não existe uma maneira de travá-los e colocar obstáculos no caminho só criará uma cultura de ódio, intolerância e xenofobia que, além de serem por isso sós uma vergonha civilizacional, são um empecilho para a preparação que é urgente fazer nos territórios, particularmente nos mediterrânicos, se pretendemos evitar um destino similar aos milhões de habitantes do Médio Oriente que são hoje os mais evidentes refugiados do clima.

Resolver a situação dos refugiados na União Europeia não é apenas uma questão de humanidade e de solidariedade, é uma questão de lógica. Os refugiados do clima, como as alterações climáticas, são a nova normalidade, foram criadas pela acção humana e necessitam da criação de novas estruturas, instituições e planeamento. Não há nenhum espaço que se possa armadilhar, nenhum muro que se possa construir, nenhuma barreira de polícias de choque que se possa colocar no seu caminho. Nem sequer se coloca o paradoxo de uma força imparável colidir com um objecto inamovível. Primeiro, porque a força é imparável e segundo, porque objecto é gelatina assente em ideologia arcaica.

Fontes:

United Nations High Commissioner for Refugees (www.unhcr.org)

Global Warming and the Arab Spring (Sarah Johnstone e Jeffrey Mazo), Survival: Global Politics and Strategy, Março 2011


[artigo primeiramente publicado no Visão Verde: http://visao.sapo.pt/refugiados-do-clima=f830451]

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