Recentemente, na televisão pública nacional, num programa sobre a exploração de gás e petróleo em Portugal, um consultor da Portfuel anunciou que em 2040 60% de toda a energia mundial ainda seria produzida utilizando combustíveis fósseis [1]. Igual coisa disse também o CEO da Exxon no encontro deste ano de accionistas da empresa, em que 38% dos investidores exigiram, novamente sem sucesso, que a companhia fosse mais transparente sobre como a ameaça do aquecimento global e as resoluções da Conferência de Paris em 2015 poderiam afectar o seu funcionamento.
De onde vêm pois estas estatísticas, se todos os dias novas notícias vêm a público sobre o espantoso crescimento das energias renováveis? A fonte pode ser facilmente traçada à Agência Internacional de Energia (em inglês, International Energy Agency, ou IEA). A IEA foi formada em 1974, por um conjunto de países consumidores de petróleo, no seguimento da crise de petróleo que estava então a decorrer. Um dos seus principais objectivos é o de produzir relatórios fiáveis sobre o consumo actual de energia e as tendências expectáveis para os próximos anos. Para isso, a agência confia sobretudo nas informações disponibilizadas pelas próprias empresas produtoras de energia, o que já por si nos deveria pôr em alerta.
Ao longo dos anos a IEA tem sido alvo de críticas duras por parte de várias organizações. Nomeadamente, a agência é acusada de falhar sistematicamente na previsão do crescimento da energia renovável e pouco ou nada fazer para corrigir os seus erros gritantes nessa área. Um especialista sueco apelidou um dos relatórios da agência como um “documento político”, desenvolvido para países consumidores, com interesse em preços baixos de combustíveis.
O último relatório anual da agência sobre o consumo global de energia foi publicado em Novembro de 2015, um mês antes da Conferência de Paris. No sumário executivo podemos ler que (e vale a pena citar em extenso): “Promessas feitas pelos vários países antes da COP21 indicam um novo impulso no sentido de um sistema energético mais eficiente e com menores emissões de carbono, mas não alteram o quadro de crescente necessidades globais de energia. O uso de energia em todo o mundo deverá crescer em um terço para 2040 no nosso cenário central, impulsionado principalmente pela Índia, China, África, Médio Oriente e Sudeste Ásiatico. (…) Os declínios em emissões são liderados pela União Europeia (-15%), Japão (-12%) e Estados Unidos (-3%). Os preparativos para a COP21 têm sido uma rica fonte de orientação sobre política energética no futuro e as componentes relacionadas com a energia nos compromissos nacionais para a COP21 são reflectidos no nosso cenário central. Eles fornecem um impulso aos combustíveis e tecnologias de baixo carbono em muitos países, trazendo a parcela de energia não baseada em combustíveis fósseis acima do valor actual de 19% a nível global para 25% em 2040.” (O sublinhado é meu.)
Ou seja, a IEA diz-nos que, no cenário que considera mais provável, tendo já em conta os compromissos nacionais submetidos à COP 21 (admitidamente demasiado fracos, e implicando um aumento de temperatura de pelo menos 2.7ºC, e não os 1.5º-2ºC do Acordo), o peso das energias renováveis (incluindo a hídrica e bio-massa) vai aumentar apenas 6%, em relação ao consumo total, nos próximos 25 anos. Isto dá uma média de crescimento de ~0.25% por ano. Em relação à capacidade de energia renovável já implementada, este aumento é de cerca de 33%, o que ainda assim significa uma previsão de crescimento de pouco mais de 1% por ano. Até a economia portuguesa tem conseguido crescer acima desses valores nos últimos anos, mesmo em tempos de crise económica e intensa austeridade orçamental!
Mas quais é que têm sido afinal as taxas de crescimento das renováveis nos últimos anos? Um artigo publicado na conceituada revista “Nature Climate Change” em Dezembro de 2015 mostra-nos o seguinte: taxas de crescimento anual de 10.5 % para energia hidro-eléctrica e de 34% para as outras renováveis, na China, entre 2010 e 2014. No resto do mundo temos taxas mais moderadas, mas ainda assim de 3% para a hídrica e 16% para as outras renováveis, no mesmo período. Ainda que estes valores possam estar ligeiramente inflacionados, não há qualquer razão para a IEA prever apenas uma média de crescimento de pouco mais de 1% por ano nas próximas duas décadas e meia, a menos que esteja deliberadamente a proteger os interesses das empresas de combustíveis fósseis, através da propagação de desinformação.
Outro ponto interessante, entre tantos outros que se poderiam realçar, é a previsão de que os Estados Unidos, o país mais rico do mundo e historicamente o maior responsável pelo volume total de emissões, vai (segundo a IEA) diminuir as suas emissões em apenas 3% nos próximos 25 anos! No entanto, num outro relatório recente, a própria IEA diz-nos que as emissões dos EUA, (apenas referentes ao sector energético, mas que é de longe o mais importante de todos), caíram cerca de 12% entre 2007 e 2012.
A razão porque isto é tão importante é o facto da IEA ser o principal órgão de análise que a maior parte da indústria energética, por enquanto ainda dominada pelos combustíveis fósseis, segue – e cita extensivamente! Estes valores aparecem-nos depois replicados de forma acrítica em relatórios governamentais, previsões económicas, etc, como representando a “verdade dos factos” em oposição aos supostos “desejos irrealistas” dos ambientalistas. O facto da IEA não ser uma instituição tão claramente motivada por factores ideológicos como por exemplo o Cato Institute só torna as suas previsões ainda mais perigosas, devido à legitimidade de que ainda vão beneficiando junto de largos sectores da sociedade.
Uma das principais suposições subjacentes às análises da IEA é a de que por muitos cortes nas emissões que os países mais ricos possam fazer (e à indústria não interessam que façam muitos!) tudo isso será compensado pelo enorme crescimento dos combustíveis fósseis nos países mais pobres. E se até aqui todo o foco estava na China, agora que a sua economia começou já a abrandar e a tentar diversificar-se, o foco principal da indústria virou-se para a Índia.
A litania repetida pela indústria é que os combustíveis fósseis são mais baratos (algo que começa a ser cada vez mais disputado, mesmo nesta era de preços historicamente baixos dos hidrocarbonetos) e que para levantar milhões de pessoas da pobreza e fornecer-lhes electricidade esses países vão ter de consumir muito mais gás, petróleo e, sobretudo, carvão, o mais barato dos três. Vemos assim algumas das mais poderosas e rapaces corporações do mundo, como a Exxon, Chevron ou Shell transformadas do dia para a noite em instituições de luta contra a pobreza e a favor do desenvolvimento (neste caso insustentável). Sendo que por acaso (ou talvez não) elas até vão beneficiar de biliões de lucros anuais durante mais algumas décadas, como paga pelo seu trabalho de natureza semi-filantrópica.
Esta falácia é facilmente desmentida. A maior parte da chamada pobreza energética encontra-se hoje na África sub-Sariana e na Índia, concentrada em zonas rurais onde não existe uma rede de distribuição de energia eléctrica. Quando acrescentamos aos custos de uma central de carvão termo-eléctrica os custos de implementar de raiz essas redes já o preço do carvão sobe astronomicamente. Isto, claro, sem contarmos com os custos de saúde, sociais e ambientais que a poluição destas centrais de carvão invariavelmente causa nas populações locais. Nestas regiões (onde, não esqueçamos, a luz solar é abundante) é actualmente mais barato, rápido e eficiente implementar energia solar, uma tecnologia limpa e local. Por outras palavras, é como se as empresas produtoras de telefones fixos, vendo os seus lucros a caírem anualmente, anunciassem que queriam encher a Índia e o continente africano com linhas de telefone, ignorando por completo que o desenvolvimento vertiginoso dos telemóveis nas últimas décadas tornou essa estratégia obsoleta.
Lembrem-se pois destes argumentos da próxima vez que alguém vos acenar com a noção de que “energia renovável, sim senhor, é tudo muito bonito, mas em 2040 ainda vamos precisar de 60% de combustíveis fósseis”, etc. A verdade é que o mundo está já a mudar a uma velocidade muito rápida nesta área e para garantirmos um futuro mais justo e seguro para tod@s no planeta precisamos que mude muito mais rapidamente.
Como diria o grande físico dinamarquês Niels Bohr: “É sempre difícil fazer previsões, sobretudo acerca do futuro!” Está na hora de decidirmos em conjunto que tipo de futuro realmente queremos, em vez de deixar essa decisão nas mãos de grupos de interesses especiais cada vez mais isolados ideologicamente e apenas determinados em proteger as suas margens de lucro, independentemente das consequências. Somos nós aqueles de quem temos estado à espera!
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[1]- Programa Prós e Contras da RTP 1, 23-5-2016, ao minuto 54 da 2ª parte.