Há Petróleo Limpo? ou a Noruega não é a Noruega – João Camargo

Artigo publicado em sabado.pt a 18 de setembro de 2016

Este país escandinavo é tomado um pouco por todo o mundo como exemplo de gestão, de Estado Social e de compatibilização da atividade económica com a conservação da natureza. O facto de estar no topo de tantos índices de qualidade de vida, de justiça social e de transparência democrática reforça essa ideia de exemplo. Mas reforço a ideia de que a distância leva a uma visão idílica da Noruega que, somada a práticas sociais e ambientais catastróficas na maior parte dos países produtores de petróleo, construiu um imaginário de que existe exploração de combustíveis fósseis limpa, e que esse fenómeno paradoxal ocorre exactamente nesse reino mágico que é a Noruega.

Há um mês atrás o ministro norueguês do clima e do ambiente, Vidar Helgesen, dizia que a Noruega é uma “nação paradoxo”, porque tem vivido bem do gás e do petróleo, enquanto tem feito mais do que os outros para sabotar a indústria petrolífera. Embora seja de reconhecer a retórica norueguesa sobre a questão das alterações climáticas desde o Relatório Grundtland, este é na verdade um dos poucos países europeus que aumentou as suas emissões de gases com efeito de estufa desde 1990 (e aumentou em mais de 20%). A sua petrolífera principal, a Statoil, é a 40ª entidade responsável por mais emissões de gases com efeito de estufa na História. Hoje, a maior pressão que existe sobre a Noruega, que já assinou e ratificou o Acordo de Paris para limitar as alterações climáticas, é para que pare a prospecção para exploração de combustíveis fósseis no Ártico derretido.

Há um mês atrás o ministro norueguês do clima e do ambiente dizia que a Noruega é uma “nação paradoxo”, porque tem vivido bem do gás e do petróleo, enquanto tem feito mais do que os outros para sabotar a indústria petrolífera

Este paradoxo reveste-se de requintes de injustiça climática: a Noruega, que enriqueceu com a exploração de gás e petróleo e se tornou um dos países com maiores responsabilidades históricas pelo aquecimento do planeta, vê a sua temperatura amenizada (até ao momento) por um lado pelo aquecimento global, pelo outro apela aos países para pararem a exploração de combustíveis fósseis, inclusivamente comprometendo-se a parar de utilizar carros a gasolina ou gasóleo até 2025, enquanto as suas empresas, lideradas pela Statoil (67% propriedade do Estado) querem ir procurar novos recursos fósseis para queimar, abrindo a exploração num Pólo Norte que derrete graças à utilização dos combustíveis fósseis.

Existe até uma parte da comunidade académica norueguesa que defende a ilegalidade da exploração no Ártico, por ser contra vários tratados internacionais, primeiro dos quais o Acordo de Paris mas também contra a Lei do Mar que inclui o Pólo Norte e o Oceano Ártico, e contra os direitos das gerações futuras de terem um ambiente habitável. O crescente degelo do pólo acende a disputa entre a Rússia, o Canadá e a Dinamarca, que pretendem tomar posse dos mares que eram gelo, e a Noruega, apesar da sua magnífica retórica, também avança pelos despojos minerais. Um estudo na revista Nature acerca da possibilidade de se manter a subida da temperatura abaixo dos 2ºC refere que um terço de todas as reservas de petróleo, metade das reservas de gás e 80% das reservas de carvão devem ser mantidas inexploradas, o que significa que a exploração de gás e petróleo no Ártico e aumento da exploração de gás e petróleo através de métodos não convencionais (fracking, Deep Offshore) tornarão impossível manter a temperatura abaixo dos 2ºC. Deixando para trás a hipocrisia norueguesa acerca das alterações climáticas, resta a questão: E o petróleo e gás limpo de que nos falam quando falam do reino mágico da Noruega? Há?

Há 60 derrames petrolíferos por mês no Mar do Norte, o que provoca poluição crónica e tem impactos tão graves na biodiversidade como os grandes acidentes nas plataformas e nos petroleiros

A Noruega explora petróleo nas águas muito pouco profundas do Mar do Norte há mais de 40 anos. Nesse período, o Mar do Norte sofreu profundamente com a exploração, quer na Plataforma Continental Norueguesa, quer no lado da Grã-Bretanha. A actividade petrolífera tem impacto no mar, no fundo oceânico e em terra, através de emissões, ruído das sondagens sísmicas, destruição do fundo oceânico e derrames. Há 60 derrames petrolíferos por mês no Mar do Norte, o que provoca poluição crónica e tem impactos tão graves na biodiversidade como os grandes acidentes nas plataformas e nos petroleiros. Os derrames quotidianos provocam impactos cumulativos nas cadeias tróficas e introduzem factores de toxicidade e contaminação nas mesmas. O ruído constante tem impacto directo na reprodução dos peixes, no desequilíbrio do sexos, na sobrevivência dos viveiros e das maternidades.

Como o Mar do Norte é uma massa de água muito fria, reduz-se a diluição do petróleo no mar, o que aumenta os seus efeitos nocivos. Além dos derrames, existem ainda as descargas operacionais: em 2005 as petrolíferas reinjetavam 60 mil toneladas de resíduos nos furos de prospecção, valor que foi reduzido para 22 mil toneladas em 2015. Uma importante parte dos resíduos reinjetados nos poços antigos solta-se frequentemente e contamina novamente o mar. A redução de despejo de resíduos fez-se pelo envio para terra dos resíduos e pela reinjeção dos resíduos nos poços vazios. Ora, destes resíduos perigosos enviados para terra, alguns foram exportados ilegalmente para países em desenvolvimento. Existem ainda mais descargas feitas directamente no mar, em média 2000 toneladas por ano. Nos 65 poços explorados pela Statoil no Mar do Norte, no Mar da Noruega e no Mar de Barents, ocorrem 100 a 150 incidentes com perda de petróleo por ano.

Os pássaros são afetados pelo petróleo que dá à superfície, havendo anos em que a quantidade de pássaros contaminados é elevadíssima, inclusivamente em áreas protegidas como Jaerstrendene. Muitas espécies de peixes que eram relativamente comuns no Mar do Norte desapareceram ou existem hoje em quantidades muito menores: o esturjão, o halibute, a enguia europeia, a raia-comum europeia ou o cação galhudo são exemplos de espécies que já abundaram e hoje estão criticamente ameaçadas segundo a Lista Vermelha da IUCN (União Internacional para a Conservação da Natureza) e a FISHBASE. Mesmo se ignorarmos a abundância de espécies, a diminuição do tamanho do peixe apanhado no Mar do Norte coincidiu com a expansão da actividade petrolífera na Noruega: no pico da produção perto de 2000, só cerca de 5% do peixe pescado tinha mais de 40 cm, hoje voltou para perto dos 20%. É certo que este declínio e estes impactos não têm apenas origem na exploração petrolífera, nos seus acidentes e nas suas descargas operacionais: acresce a sobre-pesca, o comércio marítimo, descargas a partir de terra e o aquecimento do mar devido às alterações climáticas para completar as ameaças que se confirmam permanentemente sobre esta massa de água.piper_alpha_oil_rig_fire

Além dos pequenos acidentes, existiram ao longo da história da exploração de gás e petróleo na Noruega e no Mar do Norte grandes derrames e acidentes mortais: em 1977 na Ekofisk Bravo explorada pela Phillips Petroleum derramaram-se de 202 mil barris no mar, em 1980, na mesma Ekofisk capotou uma plataforma matando 123 trabalhadores, em 1988 na Piper Alpha houve três fugas massivas de gás e 165 mortes, em 1993 o MV Braer encalhou derramando 86 mil toneladas de petróleo enquanto era destruído por ventos fortes e mar agitado, em 2001 um reservatório em terra na Noruega, em Brevik, derramou 870 mil litros de petróleo, contaminando terra e mar, em 2004 o navio Rocknes afunda frente a Bergen, morrendo 18 tripulantes e derramando-se uma quantidade indeterminada de resíduos químicos e petróleo, em 2007 no campo petrolífero de Statfjord houve um derrame de 31900 barris e em 2011 a Gannett Alpha, da Shell, derramou 1300 barris. No Mar do Norte, de 4123 derrames de petróleo ocorridos entre 2000 e 2012, só houve 7 multas aplicadas, e todas a pequenos acidentes.

Quando lemos os parágrafos anteriores, devemos ter em conta que o Mar do Norte e especialmente o Mar da Noruega é uma das regiões petrolíferas mais controladas, com mais investimento especializado e mais controlo por parte de autoridades governamentais. Não chega. Não existe exploração de gás e petróleo limpa – não existe na Noruega, não existe na Nigéria, não existe no Canadá, não existe em Angola. Pode ser menos louca a poluição, mas não pode ser eliminada. Além disso, com mais ou menos controlo, as emissões de gases com efeito de estufa e as consequentes alterações climáticas, são garantidas, quer o petróleo venha da Ásia, quer venha da África ou do Mar do Norte. E se o controlo apertado neste último caso levou a melhor práticas na Noruega, quando a Statoil se encontrou em outros portos, rapidamente adquiriu os vícios da restante indústria petrolífera.

A Statoil expandiu a sua operação para a Austrália, a Argélia, Angola, Azerbeijão, Brasil, Canadá, Líbia, Nigéria, Rússia, Estados Unidos e Venezuela. Em 2002/2003 a empresa foi condenada por corrupção na Noruega e nos Estados Unidos, por influenciar decisores no Irão para conseguir contratos de concessão. Esteve ainda envolvida, através de operações prévias à fusão com a petrolífera da Norsk Hydro, na utilização de consultores para “facilitar” a obtenção de concessões na Líbia, o que levou à demissão do seu presidente. Neste momento está a ser investigada a entrega de 530 milhões de dólares por parte da Statoil à Sonangol quando assinou uma nova concessão e de mais 100 milhões de dólares para “contribuições sociais”. Os parceiros da Statoil na concessão do campo Kizomba A em Angola são a Somoil e a China Sonangol, de proprietários desconhecidos e sediadas em paraísos fiscais, algo que tem levantado ainda mais suspeitas. Mais recentemente a Statoil envolveu-se no negócio das areias betuminosas no Canadá, o que levantou muita oposição, por razões éticas e pelo violento impacto ambiental da técnica de extracção. As nações Maori da Nova Zelândia por outro lado, levaram os seus protestos até à Noruega, exigindo o fim da prospeção para exploração em Ultra Deep Offshore (exploração a milhares de metros de profundidade) na bacia de Reinga, feita pela Statoil.

A exploração de combustíveis fósseis já é hoje um fóssil vivo. É como um comboio pesado que está sem energia mas que continua a avançar por causa da inércia do sistema

A exploração de combustíveis fósseis já é hoje um fóssil vivo. É como um comboio pesado que está sem energia mas que continua a avançar por causa da inércia do sistema. Sabemos o que já está a ocorrer ao planeta por causa da sede de energia barata sob a forma de fósseis. Apesar disso há quem trave importantes batalhas de desinformação para tentar explicar-nos que é preciso continuar a queimar carvão, petróleo e gás para haver empregos, para haver riqueza, para haver progresso. São as forças da inércia, que por ignorância ou interesse se socorrem de mitos como a Noruega para procurar provar que a exploração de petróleo e gás em Portugal é um caminho para o futuro. Mas apesar de pelo menos reconhecer que as alterações climáticas são o maior problema com que a Humanidade já se deparou, a Noruega que existe é tão parte do problema como estas forças de inércia. Não há petróleo limpo. E assim, tanto Portugal não é a Noruega como a própria Noruega não é o mito que à volta dela se construiu.

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