Uma janela de responsabilidade – João Camargo

A ideia de “regresso à normalidade” é a expressão máxima de alienação na sociedade. A “normalidade” é um comboio desembestado em direcção a um precipício. As expressões máximas dessa normalidade são a sexta extinção em massa de espécies no planeta, a modificação extrema dos padrões climáticos da última era, a disrupção do ciclo do azoto e a perda dramática de solos. Estes fenómenos não são futuros. Estes fenómenos são o presente.

Além do “regresso à normalidade”, há a ideia de oportunidade. “Nas crises há sempre oportunidades, por isso olho vivo que agora podemos beneficiar-nos da instabilidade que existe para fazer dinheiro, para ganhar vantagem competitiva, para avançarmos com a integração nos mercados internacionais, para aproveitar o caos para ultrapassar constrangimentos anteriores, para destruir práticas rígidas e abrir caminho para a inovação, aumentar a produtividade com novas tecnologias e mutações industriais alterando a estrutura económica para criar uma nova economia”. Este discurso é comum a um ministro do Ambiente brasileiro que diz que “é hora de passar a boiada” mas também a uma ministra canadiana que diz que “agora é uma excelente altura para construir um oleoduto porque não pode haver manifestações com mais de 15 pessoas.”.

Os fenómenos que destroem o sustento da nossa vida colectiva não são independentes da forma como funciona a nossa sociedade. A destruição de ecossistemas, o desaparecimento de espécies, a crise climática, articulam-se com a forma de organização da sociedade para rasgá-la. Começam por reabrir as velhas feridas (a maior parte das quais nunca se fechou) e cicatrizes que nos corroeram historicamente: ódio à diferença, exploração de classe, racismo, sexismo, homofobia, medo dos fenómenos migratórios, do desemprego, da escassez, da fome.

Num dos espectros mais avançados da alienação, propõe-se aprofundar o modo de produção capitalista como resposta aos problemas que o mesmo criou. Perante a materialização dos riscos anunciados à décadas (crise climática, perda de biodiversidade, disrupção de ciclos biogeoquímicos, guerras, deslocações forçadas em massa), há quem prometa segurança e para uns escolhidos especiais, o regresso a um passado mistificado, a uma história de cordel, contada de e para os “vencedores” da mesma. As promessas políticas de um regresso ao passado são, nas melhor das hipóteses, ingénuas e, enquanto projectos políticos, tenebrosas. O mundo em que vivíamos já não existe.

O regresso à “normalidade” na sequência da crise do Covid19 é a aposta na “segurança” de um passado normal, sem contar com um presente radicalmente diferente. Também implica não tentar travar o futuro desembestado que são as tendências que garantem a destruição de condições básicas para uma vida social remotamente saudável.

O que temos hoje não é uma janela de oportunidade. Já só existe uma janela de responsabilidade. Essa responsabilidade é devida às gerações actuais e futuras, é a responsabilidade de garantir que haverá condições para a viabilidade da vida em sociedade. As vertentes ambientais aqui articulam-se obviamente com as vertentes sociais. O medo de um planeamento social da produção para garantir a vida nada mais é do que alienação. Vivemos numa economia planificada para a reprodução de capital e esta economia é contrária à reprodução da vida, da diversidade, da justiça e da resiliência aos choques que sofremos e sofreremos ainda mais no futuro.

É necessário ultrapassar a alienação que transforma o debate público e social num beco sem saída porque só procura respostas aos constrangimentos políticos e económicos dentro do decadente capitalismo global. A janela de responsabilidade implica reconhecer a monumentalidade desta tarefa, a coerência que será necessária para tentá-la e a possibilidade real de falhar. Também implica reconhecer que só será atingida se for tentada e que não tentar significa desistir da ideia de futuro.

Vivemos hoje numa tentativa de regresso à normalidade no nosso país, com âncora na limitada ideia de que é possível continuarmos no rumo da integração internacional, da globalização, do capitalismo neoliberal. Não há sequer o tradicional teatro político feito à volta de mudar alguma coisa para nada mudar. Não há sequer um plano para resolver a crise social e económica estritamente ligada ao Covid19, quanto mais para o tsunami da crise ambiental e climática. A janela de responsabilidade não será aberta pelos mecanismos institucionais, mas somente pela mobilização social e reiterada para a ideia de um plano para a sociedade, com centro na justiça, na reparação histórica, no reconhecimento dos limites ambientais e na redistribuição de poder e riqueza. Devemos esta responsabilidade à vida.


Este artigo foi originalmente publicado no Expresso.pt a dia 1 de Junho de 2020.

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