Clima e pandemias: crises interligadas – Manuel Araújo

Uma pergunta esteve na cabeça de muitas pessoas no movimento pela Justiça Climática nos últimos meses: porque é que a reação dos governos à COVID-19 foi tão diferente da maneira como lidam com a crise climática? A resposta inicial de muitos governos a esta pandemia foi uma verdadeira resposta de emergência, com confinamentos que interromperam o normal funcionamento do capitalismo e uma intervenção direta dos Estados na economia que uns meses antes seria impensável: até Donald Trump ordenou que fábricas de automóveis passassem a produzir ventiladores. Em Portugal, a diferença entre as consequências práticas da declaração de Emergência Climática em Julho de 2019 e o Estado de Emergência em Março de 2020 não poderia ser mais evidente.

Há algumas formas de explicar esta discrepância. A COVID-19 afetou os ricos logo no início, enquanto a crise climática afeta primeiro as pessoas mais desprotegidas. Quando Boris Johnson é internado e há dezenas de milhares de mortos na Europa, os líderes europeus decidem que esta é uma emergência a sério.

Além disso, a pandemia chegou de repente e não houve tempo para o desenvolvimento de narrativas que permitissem colocar os interesses do lucro acima da sobrevivência das populações. A crise climática está aqui há décadas, e há autênticas indústrias que servem para atrasar a transição energética. Alguns setores promovem o negacionismo explícito, tentando espalhar a dúvida sobre a própria existência das alterações climáticas. Outros reconhecem a existência e seriedade do problema e montam autênticos circos de reuniões, cimeiras, planos, tratados, roteiros e comissões, enquanto as emissões continuam a subir. Agora começamos a ver a mesma coisa a acontecer com a COVID-19: de um lado o negacionismo de Bolsonaro ou Trump, do outro lado os governos que acabam com os confinamentos e tentam individualizar a responsabilidade, enquanto as pessoas são forçadas a ir trabalhar todos os dias em transportes públicos sobrelotados.

Mas de certa forma, a própria comparação desta pandemia com a crise climática é um erro. Faz mais sentido compará-la por exemplo com o ciclone Idai, que matou em poucos dias mais de 1300 pessoas em Moçambique, Zimbábue, Malaui e Madagáscar. Faz mais sentido não por uma questão de escala – a pandemia já matou mais de um milhão de pessoas em todo o mundo ao longo de 9 meses – mas sim porque ambos são eventos catastróficos que fazem parte de duas tendências seculares e profundamente interligadas, alimentadas pelo capitalismo. De um lado a crise climática, do outro a transmissão cada vez mais frequente de agentes patogénicos, como vírus e bactérias, de animais para humanos, em eventos ditos de transbordamento zoonótico.

A ciência demonstra que as emissões antropogénicas de CO2 provocam um aumento da temperatura média global, que por sua vez leva à ocorrência cada vez mais frequente de eventos climáticos extremos cada vez mais intensos. Nesse sentido, podemos dizer que eventos catastróficos como os incêndios na Austrália em 2019/20 – onde morreram cerca de 500 pessoas e 3 mil milhões de animais – são previsíveis e são consequência direta das dinâmicas do capitalismo fóssil, que consome trabalho humano e combustíveis fósseis, para produzir lucro e CO2 em crescimento exponencial.

Da mesma forma, a ciência deteta uma tendência clara de aumento da frequência de aparecimento de novas doenças infecciosas nas últimas décadas, a maioria das quais foi transmitida de animais para humanos, em eventos de transbordamento zoonótico. A lista inclui o HIV, o Nipah, o Vírus do Nilo Ocidental, o Ébola, o Zika, os coronavírus que causam as doenças SARS, MERS e COVID-19, o H1N1 (gripe suína) e o H5N1 (gripe das aves), entre outros. Os mecanismos que levam ao aumento da frequência dos eventos de transbordamento zoonótico também são cientificamente bem compreendidos.

O primeiro fator é o desmatamento, principalmente de florestas tropicais. As florestas tropicais são locais de enorme biodiversidade, e por isso mesmo propícios ao aparecimento de uma enorme variedade de agentes patogénicos, como vírus e bactérias. Estes vão saltando de animal em animal, mas a maioria das cadeias de transmissão são interrompidas, porque o agente não encontra um novo hóspede que lhe permita multiplicar-se, ou porque o hóspede morre, por exemplo. Em circunstâncias normais, seriam raros os casos em que uma destas cadeias de transmissão chegaria a uma população humana, mas a destruição de vastas áreas de floresta tropical para utilização em agropecuária industrial obriga os animais a deixarem os seus habitats e assim aumenta a probabilidade de contacto com populações humanas, aumentando o risco de eventos de transbordamento zoonótico.

Outro fator é a perda de biodiversidade, com vários estudos que ligam esta tendência ao aumento da frequência do aparecimento de epidemias. A teoria é que a existência de maior diversidade genética coloca mais barreiras às cadeias de transmissão. Quando há um contacto entre dois animais, um dos quais está infetado, há uma possibilidade de transmissão. Mas se o segundo animal for geneticamente muito diferente do primeiro, é pouco provável que o vírus consiga multiplicar-se no seu novo hóspede. Quando todos os animais são geneticamente semelhantes, o agente patogénico transmite-se de hóspede para hóspede com grande facilidade. Por esta razão, a pecuária industrial é particularmente propícia à propagação destes agentes. Basta que um animal fique infetado, para que todos os outros fiquem também, devido à grande proximidade física e semelhança genética.

Há outros mecanismos que explicam o aparecimento cada vez mais frequente de epidemias por transmissão de animais para humanos, como o comércio de animais selvagens, mas estes dois são os principais. Depois da passagem de animais para humanos, é preciso ainda explicar como é que se passa de um surto local a uma pandemia mundial. Aqui a explicação é bastante mais simples: a enorme mobilidade de alguns setores da população e o caráter global das cadeias de produção e comércio. Ambas são possíveis graças a enormes indústrias de aviação comercial e de transporte marítimo de mercadorias.

Há uma coisa em comum entre todos estes fatores: estão também ligados à crise climática a desflorestação, a agropecuária industrial, a aviação e as cadeias de produção globalizadas como causas; a perda de biodiversidade como efeito. Mas há uma ligação ainda mais direta entre pandemias e clima. É que a própria crise climática provoca migrações de animais, que provocam novos contactos entre espécies e criam novas cadeias de transmissão que por vezes acabam por chegar a humanos. Estas migrações são provocadas diretamente pelo aumento das temperaturas, mas também pelas catástrofes naturais que lhe estão associadas. Por exemplo, o surto de Ébola que deflagrou na África Ocidental em 2014 e matou cerca de 11.300 pessoas ao longo de dois anos e meio foi precedido por uma época seca excepcionalmente longa, que pode ter contribuído para aumentar a frequência de encontros entre pessoas e morcegos forçados a deslocar-se para procurar água.

A imagem que surge é então a de uma crise ecológica, climática, sanitária e social que é alimentada pela interminável expansão do capitalismo e pela sua relação destrutiva com a natureza. Pandemias, incêndios e ciclones são as várias caras de um mesmo monstro que consome recursos naturais com um apetite insaciável, para produzir lucro para uns poucos e miséria, doença e morte para a maior parte da espécie humana.

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