Desobedecer – João Camargo

Olhei à volta antes de clicar neste artigo. Tantas notícias, tanta variedade. Coisas e coisinhas. Algumas importantes, outras irrelevantes. Conteúdos patrocinados. Mais um político acusado de alguma coisa, mais duas engenhocas inventadas não se sabe bem para quê: uma para um grande problema, outra para uma coisa que ninguém sabia sequer que era um problema – estão lado a lado. Opiniões para todos os gostos. Tudo é importante, portanto nada é importante. Dir-se-ia que vivemos no melhor dos mundos possíveis, mas na verdade argumenta-se abundantemente que vivemos no pior deles. A cacofonia da abundância.

Aprender era um acto de emancipação. Aprendemos porque até agora o que era importante era só determinado por quem mandava. Entretanto como aprendemos todas a ler, passou a ser importante que ler deixasse de ser útil, ou pelo menos tão útil como já foi um dia. Se não falta água, enche-se essa água de lixo. Produzir lixo. Todas as horas do dia. Canais de televisão que dão “notícias” 24 horas por dia, noticiários a todas as meias horas – são iguais! alguém disse, mas qual é o problema, é para ter a certeza que estamos informados. Não sabes que na comunicação parlamentar de inquérito o bilionário já não sabe de onde lhe vem o dinheiro, são tantos sítios, já não sabe quem lhe emprestou, quem lhe reestruturou a dívida – e que interessa tudo isso? é só o que sempre foi, mas agora dá em directo, “live”!. Se soubermos mais estamos emancipados, mais conscientes e informados.

Apesar das redações só com relutância reafirmarem que há uma emergência climática (à terceira vez que há uma emergência, já não é notícia e portanto já não vale a pena dizer que há uma emergência – aliás, estamos em estado de emergência ou calamidade neste momento? Isso ainda significa qualquer coisa?). Corre, corre, que é preciso ir ao Parlamento entrevistar todos os dias um deputado de cada grupo parlamentar para ouvir a sua opinião sobre determinado tema, depois um especialista da academia e se houver uma ordem ou um movimento cívico que também possa comentar, fica o ramalhete completo, ouviu-se toda a gente, está feita a comunicação democrática. Se é para ser ainda mais “exaustivo”, por exemplo, ainda se vai fazer um debate e perguntar alguma coisa assim escabrosa, mas que rende: “será que há alterações climáticas?”; “Será que há racismo?”; “Será que todas as pessoas são mesmo iguais?”. A cacofonia aumenta.

No meio disto, às tantas apetece é apoiar a ordem. Que alguém ponha ordem nisto, porra. Ordem, e progresso, como já diz a bandeira do Brasil e o Augusto Comte. Positivo, moderno, rumo ao infinito e mais além. Havemos de “progredir” para um lado qualquer, e para isso é preciso manter a ordem, para manter a estabilidade, a tranquilidade e quem está por baixo que se aguente, porque é preciso é mérito para andar para cima. Mérito ou esperteza, ou uma boca grande ou dizer asneiras alto e bom som, ou qualquer coisa, que dê aquela vantagem competitiva que monta a efémera elite do capitalismo do século XXI.

E é para garantir a ordem que estão as instituições e os documentos fundadores. A extrema-direita quer mudar a constituição para impor uma nova ordem, enquanto à esquerda se defende a mesma como salvaguarda do ordenamento. E quem de direito que a defenda, que ela defende os direitos. Aquele papel. Aquele parlamento. Aquele exército e aquela polícia. Aquela escola e aquela academia, aquela imprensa. Cá temos as nossas instituições para defender a democracia avançada. A cacofonia empurra no mesmo sentido. Rumo ao futuro.

A média da concentração de dióxido de carbono na atmosfera em Abril de 2021 foi de 416 partes por milhão. É a mais alta dos últimos 800 mil anos, pelo menos. O Homo sapiens terá entre 200 e 300 mil anos de existência enquanto espécie. 2020 foi o segundo ano mais quente desde que há registos, batendo o recorde de 2016. O actual rumo das emissões fará com que ultrapassemos os limites de segurança teórica de aumento de temperatura nas próximas duas décadas. Mas há vários pontos sem retorno que podem ser atingidos antes disso. A Amazónia brasileira já está a emitir mais dióxido de carbono do que a absorvê-lo. A Gronelândia está a aproximar-se de um ponto de ruptura que garantirá o seu colapso. Muitas zonas onde hoje se produz comida já estão a baixar a sua produtividade e deixarão de conseguir produzir o que quer que seja. E muitas zonas já estão no limiar da habitabilidade. Apesar da cacofonia que existe, as instituições empurram rumo ao futuro, mesmo se o futuro já não for nada daquilo que se pensa. O Bill Gates escreveu um livro, estejam descansados. E agora o Biden foi eleito. E há um Green Deal europeu. E as instituições fazem a sua parte. O governo cria negócios nas renováveis, o Público fala sobre a emergência climática num sub-departmento da categoria Ciência, o Expresso tem uma jornalista que trabalha em questões de ambiente, o Guardian tem uma subcategoria alterações climáticas na secção ambiente e até tem uma declaração de compromisso de continuar a soar o alarme. Os outros vão replicando os takes da Lusa, da Reuters ou da Associated Press – sobre isto e sobre tudo, copy-paste. A vida continua. As políticas actuais põe-nos num rumo de aumento de temperatura entre os 2,7ºC e os 3,7ºC – se forem cumpridas. Quem é que o Sporting vai contratar para a próxima época? Viste o insta da Rita Pereira? O que o Bolsonaro disse hoje de manhã? E a recuperação económica? A bazuca deve estar quase a chegar.

Este artigo não muda nada e até pode ajudar a compor o ramalhete, parecendo que a crise climática é só mais um dos mil temas que “acontecem” na nossa complexa sociedade que cá vai andando debaixo de uma atmosfera diferente de qualquer uma sob a qual a nossa espécie alguma vez viveu. Escrevo-o em contraposição ao bloqueio do Aeroporto de Lisboa, que vai acontecer no próximo sábado. No âmbito da acção “Em Chamas”, dia 22, às 16h vai haver uma manifestação e uma acção de desobediência civil em protesto contra a decisão suicida do governo português de expandir a aviação e construir um novo aeroporto. Eu vou participar, desobedecer, mesmo no meio desta cacofonia que diz que tudo é igualmente importante. Deixar o rumo actual seguir é atentar contra a vida de todas as sociedades e todas as gerações hoje vivas – e isso é, inequivocamente, mais importante. Vou desobedecer deliberadamente. A desobediência civil é uma táctica colectiva, assumida responsavelmente e usada com sinceridade e convicção moral. Num contexto de emergência climática e ecológica, a inação é criminosa e há uma responsabilidade histórica objectiva se não violarmos as leis que estabelecem, protegem ou amplificam o colapso do nosso contexto ambiental.


Artigo originalmente publicado no jornal Expresso a dia 19 de Maio de 2021.

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