Em 28 anos, passei por 27 países e 4 continentes. O privilégio de pessoas como eu está a ameaçar a vida dos 80% da população mundial que nunca pôs os pés num avião, começando por quem está mais longe de o fazer, diz Diogo Silva, ativista nos coletivos Climáximo e Art for Change
É impossível ignorar a realidade distópica para onde nos leva uma aviação em expansão infinita nas viagens, e exclusiva nos viajantes. Tivemos a sorte ou o azar de nascer na época em que a ação humana esteve mais próximo de destruir as condições de vida das quais depende toda a humanidade.
E não foi uma ação humana qualquer: as linhas da desigualdade que vivemos são as mesmas da responsabilidade que carregamos. A ideia de que a aviação democratizou a viagem é um mito: é o meio mais elitista de transporte, visto que apenas uma em cada cinco pessoas já viajou de avião. É também o paradigma da desigualdade estrutural: 1% dos viajantes causam 50% de todas as emissões globais da aviação.
O problema não são os voos essenciais como os que ligam o continente às ilhas. O problema é que enquanto uns podem viajar de jacto privado ou fazer Lisboa-Porto em “low cost” — quando existe uma viagem de comboio de mesma duração e menos 98,6% (!!!) de emissões — outros pagam o preço do luxo.
Vejam-se os fogos fora da época de incêndios que mataram mais de 100 pessoas em 2017, ou a subida do nível do mar que ameaça as vidas na Cova do Vapor (onde se paga IMI, água e luz à Câmara de Almada mas estes só lá chegam porque cada morador pagou directamente a obra).
Quem é que tem mais capacidade para sobreviver a um mundo em caos climático: os executivos que podem andar de jacto privado ou os habitantes da Cova do Vapor?
É esta a injustiça da crise climática: qualquer moderação na ação continuará a agravar as desigualdades de forma radical e só o privilegiado se pode dar ao luxo de ser moderado. Não é a sua vida que está em risco. Se queremos trazer alguma justiça e evitar o caos climático, temos menos de dez anos para cortar três quartos das emissões de gases com efeito de estufa em Portugal.
É impossível cortar emissões aumentando-as com mais aviões no ar. Isto significa que em Portugal precisamos no imediato de tornar impossível a existência de novos aeroportos, acabar com voos domésticos no continente e garantir que as taxas médias de ocupação de quaisquer voos nunca descem abaixo dos 90%.
Implica também construir muito mais ferrovia e garantir uma transição que seja justa para todos os trabalhadores diretos e indiretos no sector da aviação. Não chega eu reduzir os meus voos, não chega eu convencer outros a reduzi-los, não chega continuar a falar com responsáveis políticos com quem já falámos, não chega assinar petições que já lhes chegaram.
Só a mobilização social nos pode levar onde temos que ir. A nossa casa está a arder. Este sábado, às 16:00, temos encontro marcado no Aeroporto de Lisboa para o protesto Em Chamas. Não chega. Mas é, sem dúvida, o que é preciso.
Artigo originalmente publicado no jornal Expresso a dia 20 de Maio de 2021.