‘De te fabula narratur‘: é de ti que esta história fala, como escreveu Horácio há mais de dois mil anos atrás. Apesar da realidade da crise climática já não ser um fenómeno distante, podendo nós relembrar directamente os incêndios florestais de 2017, e apesar da sucessão inabalável de recordes de temperatura batidos e de fenómenos climáticos aberrantes, como a onda de calor no Canadá há escassos dias atrás ou a devastação de Moçambique pelo ciclone Idai em 2019, estes continuam a ser retratados como se não fossem expectáveis. E a sociedade continua a aceitar esta alienação produzida para proteger o status quo da mudança que precisamos.
Este fim-de-semana as previsões apontam para temperaturas acima dos 40ºC em quase toda a zona Sul do país, podendo chegar aos 45ºC em alguns lugares e aproximando-se dos 50ºC no Sul de Espanha. Não se prevê, no entanto, que se torne uma onda de calor, com reduções acentuadas da temperatura nos dias seguintes. Ainda assim, o risco de termos um país em chamas nos próximos sábado e domingo é elevado. No entanto, a esperança serve-nos de pouco quando a concentração de dióxido de carbono na atmosfera continua a aumentar. A nossa esperança não terá qualquer efeito sobre a absorção de radiação solar feita por essas moléculas de dióxido de carbono e outros gases de efeito de estufa na atmosfera. A esperança também nos serve de pouco se, mesmo depois deste fim-de-semana, a vegetação que secar um pouco mais sem arder, vai continuar em lume brando, com risco cada vez maior para outros picos de temperatura nos próximos meses.
Feitas por alto algumas contas acerca do que se passou no Canadá há pouco mais de uma semana, há pelo menos 500 mortes de calor, além de que a cidade de Lytton, onde o recorde foi batido, foi devorada pelas chamas. Nunca tantos recordes de temperatura tinham sido batidos por margens tão elevadas como na onda de calor no Oeste da América do Norte. Há cientistas que classificam aquela como a mais extrema onda de calor na história moderna. Isto é dizer alguma coisa, já que esta onda de calor ocorreu apenas duas semanas após outra onda de calor ter varrido recordes de temperaturas no Sudoeste dos Estados Unidos. A 22 de Junho, no Kuwait, atingiram-se os 53.2ºC e no vizinho Iraque os 51.6ºC a 1 de Julho, com vários recordes acima dos 50ºC no Irão, Emirados Árabes Unidos, Omã e Arábia Saudita. A 23 de Junho estavam 34.8ºC em Moscovo e uma onda de calor varria a Sibéria (em Verkhoyansk registaram-se 38ºC). Na semana passada uma onda de calor manteve a temperatura em vários locais da Índia acima dos 40ºC mais do que quatro dias de seguida (com 43.1ºC em Nova Delhi). É apontar para um lugar no mapa e a probabilidade de ter sido batido um recorde de temperatura máxima nos últimos cinco anos é quase certa. Esta semana, 33.6ºC na Lapónia do Pai Natal e o Junho mais quente alguma registado na Nova Zelândia.
O risco de ondas de calor graves em Portugal não é bem um risco: vão acontecer e vão acontecer muito mais vezes, às vezes todos os anos, outras vezes com tempo para “respirar entre anos”. Todos os outros riscos já os conhecemos: incêndios florestais, cheias, secas, tempestades marítimas. E os miseráveis governos da gestão do capitalismo extractivista português nada fazem para evitá-lo. Quando ocorrerem, dirão que com as alterações climáticas é assim agora, não há nada a fazer. Não prepararam o território, as populações e, ainda mais grave, não cortaram o suficiente das emissões nem exigiram aos outros países que fizessem o mesmo. Quando acontecerem estes fenómenos, finalmente, lamentá-los-ão como os acidentes, e rejeitarão tomar qualquer medida sistémica contra os mesmos. A imprensa alinhará na conversa dos acidentes.
Não há aqui nenhum acidente. O que já está e continuará a acontecer não são aberrações climáticas. Este é o novo clima. Houve uma decisão deliberada de deixar o planeta avançar para o colapso para poder manter os lucros das empresas fósseis e garantir os privilégios das elites capitalistas. E esta história é sobre nós. Nós estamos a viver essa decisão.
No entanto, por mais grave que a situação seja, outra decisão também já foi tomada: continuar a aumentar esta crise e ultrapassar todos os limites da viabilidade dos territórios onde hoje habitamos milhares de milhões de seres humanos. Este é o futuro clima que está contido nas emissões que eles querem continuar a aumentar para continuar a acumular lucros e garantir os privilégios da elite. Esta história é sobre nós.
Vivemos na maior crise da história da humanidade e numa das maiores crises da história do próprio planeta. Essa história é sobre nós – Canadá, Moçambique, Austrália, Índia, Brasil e Filipinas são aqui, somos nós. A decisão final sobre o que vai acontecer pertence, pelo menos parcialmente, a nós. Quem manda no mundo já só quer convencer-nos da nossa impotência. Já só querem aguentar mais uns aninhos na mó de cima.
Esta história é sobre nós. O papel passivo que nos atribuíram, cumprindo-se o guião, leva ao nosso colapso colectivo. Esta história foi escrita pelo sistema capitalista que domina os meios de produção e as relações sociais, foi impressa e é repetida por todos os mecanismos do sistema – governos, empresas, imprensa, redes sociais. Mas nós também cá estamos, vivos e vivas, neste tempo.
O guião que eles escreveram não é um destino. O guião deles tem de ser rasgado e mandado para o lixo. Mais do que ser sobre nós, temos de transformar o nosso tempo no tempo em que escrevemos a história. Temos de transformar uma história sobre nós na nossa história.
Artigo originalmente publicado no Jornal Expresso a dia 09 de Julho de 2021.