A relação entre a luta feminista e a luta por justiça climática, exacerbada pelo contexto de múltiplas crises em que vivemos, tem se tornado numa questão cada vez mais presente. Já sabíamos isto, tendo saindo às ruas com o movimento feminista, e após vários momentos de partilha, reflexão e construção – realizados tanto a nível interno como em conjunto com outros coletivos e vozes (nomeadamente durante o Acampamento em Ativismo Climático) –, partilhamos, neste texto, a resposta do Climáximo sobre porque é que as lutas climática e feminista devem ser encaradas e combatidas em conjunto e como é que uma análise (eco)feminista nos permite imaginar e construir uma alternativa ao capitalismo e uma resposta conjunta às suas crises – entre as quais a climática e a dos cuidados.
Problema e Elaboração – Sobrevivência e Cuidado da Vida
A luta por justiça climática é uma luta pela sobrevivência e pela qualidade de vida, que procura garantir que todas as pessoas tenham o que precisam para satisfazer as suas necessidades reais. Ora, todas essas necessidades são cobertas pela esfera dos cuidados/reprodutiva, ou seja, o trabalho essencial à renovação diária e geracional da vida que garante o sustento das sociedades e suas economias: trabalho de cuidados não pago (como o doméstico), mas também trabalho pago, doméstico ou em serviços que deveriam ser públicos, tais como a educação e a saúde, e, segundo algumas autoras, outras formas de lutar pela vida, diretamente impedindo o aumento de emissões (como na resistência contra a apropriação capitalista de mais terras e mais vidas, não permitindo o aumento de emissões, especialmente no Sul Global, onde a maioria do extrativismo tem lugar).
Embora sob o sistema capitalista seja feita uma subvalorização e divisão sexual e racial deste tipo de trabalho, associando maioritariamente o trabalho produtivo à esfera masculina, e o reprodutivo à esfera feminina, não é possível pensar num presente, nem muito menos num futuro cada vez mais assoberbado pela crise climática, sem aumentar, valorizar e repartir de forma justa o trabalho reprodutivo. Assim, resolver a crise climática implica necessariamente resolver a crise de cuidados, tratando–os como um trabalho de baixo–carbono que constitui a base para a fundação de um novo sistema que seja mais justo e sustentável, fomentando uma nova forma de nos relacionarmos entre nós e com o mundo, que coloque a vida no centro de todo o nosso planeamento económico e organização social.
4 princípios ecofeministas para responder às crises que enfrentamos:
1. Descolonização e justiça global
Séculos de colonialismo, neocolonialismo e racismo por parte do Norte Global produziram e continuam a resultar num aumento desenfreado de emissões para gozo dos países mais ricos, em profundas desigualdades sociais e de género e consequências climáticas desastrosas. É preciso reconhecer que a crise climática é um problema global que precisa de soluções globais. Qualquer política local e nacional por justiça climática tem de se articular com o resto do planeta e ter um compromisso de solidariedade e, especialmente, justiça global, pois a crise climática só pode ser resolvida de forma global. Para além disso, não só os efeitos da crise climática irão afetar desproporcionalmente pessoas do Sul Global, como dentro dessas pessoas as mulheres serão especialmente afetadas – por estarem, por exemplo, mais sujeitas a desastres climáticos extremos devido a muito do trabalho de cuidados, em particular o providenciamento de alimentação, se realizar em zonas mais vulneráveis a tais fenómenos, ou por estarem muitas vezes menos abrangidas por redes de proteção social. Assim, é essencial confrontar o legado colonial e racista do Norte Global e pagar a dívida social, ambiental e de género existente para com o Sul Global.
2. Outra forma de (re)produzir
Alterar o modelo de produção para um modelo focado na necessidade e na distribuição equitativa de recursos e não no crescimento infinito e no extrativismo, baseando a produção, cuidados e distribuição de bens numa economia de distâncias curtas, que tenha a vida, e não o lucro, no centro. Esta transformação deve quebrar com a lógica do mercado e ir de mão dada com o controlo democrático dos processos e bens essenciais à vida.
3. Planeamento democrático e inclusivo
Nesta transição urge tomar em consideração a experiência e os conhecimentos de grupos marginalizados por opressões de género, etnico–raciais, de classe, entre outras. O planeamento do território deve ser feito junto das pessoas que nele habitam, delineando soluções comunitárias que garantam que a reprodução social é partilhada equitativamente e usa os recursos de forma eficiente. Deve igualmente haver uma transição para formas democráticas de gestão de energia e recursos, tais como as cooperativas e a propriedade pública.
4. Transição justa com cuidados no centro
É essencial que se valorize o trabalho reprodutivo e que seja abolida a divisão de género nele existente, que se desenvolva e crie emprego nos setores de cuidados que já são de baixo carbono, e que se tomem medidas para que os empregos criados para travar a crise climática não perpetuem as mesmas desigualdades de género atualmente existentes. Os serviços básicos devem ser públicos e garantidos incondicionalmente, como necessidades essenciais à vida. Indo mais longe no pensamento sobre a sociedade que queremos construir, podemos pensar na abolição da barreira entre trabalho produtivo e reprodutivo, pois todo o trabalho social e ambientalmente necessário é trabalho reprodutivo.
Por onde começar a alternativa?
Para além de medidas que propomos noutros contextos, entre as quais as da campanha Empregos para o Clima – como a redução do horário laboral e serviços básicos incondicionais – outras propostas com base nestes princípios para um mundo de justiça climática e onde o cuidado para com a vida esteja no centro são:
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- Desinvestir em forças de segurança e na indústria militar – usadas para subjugar e impor formas de opressão e exploração colonialistas e racistas, e também responsáveis por uma fatia considerável de emissões – e investir na criação de um “serviço nacional do clima” para gerir a transição energética e em empregos de emissões zero do setor dos cuidados.
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Reconhecer que grande parte do trabalho de cuidados atualmente é protagonizado por mulheres, em especial migrantes e racializadas, sendo urgente uma distribuição, valorização e reconhecimento deste trabalho para acabar com esta precarização laboral e social.
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- Promover um planeamento urbano que privilegie uma divisão comunitária do trabalho reprodutivo e de cuidados.
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Criação de creches, lavandarias e refeitórios públicos e gratuitos, para diminuir o tempo de trabalho, tornar este tempo numa atividade social, e promover a eficiência energética e de recursos e o combate ao desperdício.
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- Rejeitar falso alarmismo de crescimento populacional e argumentos que culpam as alterações climáticas nas pessoas, especialmente nas capacidades reprodutivas das mulheres.
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Educação acessível que aumenta a literacia e o entendimento de justiça climática, de género e reprodutiva. Autonomia sobre o corpo e direitos sexuais e reprodutivos em todas as circunstâncias.
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- Planeamento urbano de “distâncias curtas” e desenvolvimento massivo de transportes públicos com as comunidades locais.
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Planos concebidos para reduzir os movimentos pendulares, diminuindo assim o tempo gasto em transportes e as emissões associadas aos mesmos. A par disto, desenvolvimento massivo de rede de transportes públicos, 100% renováveis, construindo com as comunidades locais uma rede de resposta às suas necessidades (transportes escolares/creches, transportes adequados a pessoas de mobilidade reduzida).
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- Defender a proteção, liberdade e direitos integrais de migrantes.
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Partindo da consciência de que uma das maiores causas de migração é o colonialismo e a crise climática, defender a proteção, liberdade e direitos integrais de migrantes, acabando com o ambiente hostil e abrindo fronteiras. A par disto, é necessária a inclusão de comunidades migrantes e do seu conhecimento e experiência no planeamento de políticas climáticas locais e nacionais.
Este texto é apenas um começo sobre a visão que temos para uma sociedade que coloca a vida e as necessidades de todas no centro, e apenas contém alguns primeiros passos. Reconhecemos que há muito trabalho que temos ainda por fazer, e iremos continuar a fazê–lo.
Disponibilizamos também alguns recursos que utilizámos como inspiração para a elaboração deste texto:
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- Arruza, Cinzia; Bhattacharya Tithi; Fraser, Nancy. Feminism for the 99 percent: a manifesto. Verso, 2019.
- Barca, Stefania. Forces of Reproduction: Notes for a Counter–Hegemonic Anthropocene. Cambridge University Press, 2020.
- Bhattacharya, Tithi. Social Reproduction Theory: Remapping Class, Recentering Opression. Pluto Press, 2017.
- Cohen, Maeve; Macgregor, Sherilyn. “Towards a Feminist Green New Deal For the UK: A Paper for the WGB Comission on a Gender–equal Economy”. Women’s Budget Group, 2020. https://wbg.org.uk/wp–content/uploads/2020/05/Feminist–Green–New–Deal.pdf
- Comas, Júlia Marti. “Ecofeminist Review of the Proposals for a Green New Deal”. Transform! Europe, 2020. https://www.transform–network.net/fileadmin/user_upload/epaper_ecofeminism–end.pdf
- Federici, Silvia. Revolución En Punto Cero: Trabajo Doméstico, Reproducción y Luchas Feministas. Traficantes De Sueños, 2018.
- Herrero, Amaranta. “Ecofeminismos: Apuntes Sobre La Dominación Gemela De …” Ecología Política, 2017, https://www.ecologiapolitica.info/novaweb2/wp–content/uploads/2018/01/054_Herrero_2017.pdf
- Herrero, Yayo. ¿Crisis civilizatoria o crisis (únicamente) climática?. Youtube. Aula Virtual Fundación de los Comunes. 2019. https://www.youtube.com/watch?v=_wWnPhuyLEw
- Mies, Maria; Shiva, Vandana. Ecofeminism. Zed Books, 2014.