Saímos já tarde de Lisboa, porque tive a bela ideia de sugerir para me apanharem no meio da Avenida Almirante Reis. Fui à frente, com a missão de manter o André acordado, enquanto o António tentaria dormir no banco de trás até Madrid, encafuado num molho de malas, sacos-cama, dois colchões e farnel q.b. para o caminho. Assim que chegámos à auto-estrada, disse ao André que tinha ainda que trabalhar mais uma hora e meia no computador. Só consegui fechar a última vez o computador quando já estávamos a menos de duas horas de Eroles, em cerca de catorze de caminho até à aldeia catalã onde ficámos uma semana em retiro offline para aprender sobre organizações leaderful e solidariedade activa.
Começo assim porque este curto episódio representa para mim muito do que sei que quero mudar em mim e gostaria de mudar na forma como funcionamos, depois de absorver que nem esponja o máximo da oportunidade que tivémos para aprender com a equipa de facilitação e as activistas que estiveram connosco na Ulex.
O Climáximo é um espaço de compromisso a sério. Não acreditamos que outres resolverão a crise climática por nós, e carregamos nos nossos corpos, todos os dias, o peso da missão de fazermos o que hoje parece impossível. Para lá chegar, o que é que estamos a deixar para trás nesse caminho de ensaios até à vitória? Ou quem é que estamos a deixar para trás? Porquê? O que temos que deixar para trás?
Se pude trabalhar aquelas horas, foi porque o André nos disponibilizou o carro e conduziu sem pedir sequer que eu o mantivesse acordado. Conseguimos descansar naquela noite, em vez de fazer o caminho directo bem mais cansativo, porque a Alice nos deu casa em Madrid, e o jantar estava quase pronto à nossa chegada. Pudemos ir porque outres ficaram a garantir tudo o que o Climáximo tinha que fazer naquela semana, e tudo o que tinha que acontecer aqui enquanto nós estávamos lá – dentro e fora das nossas casas. O trabalho de nos ter ali foi colectivo e dependemos de tantas outras pessoas para o conseguir fazer – obrigado a vocês! E ainda há a questão de por que é que precisei de trabalhar naquele tempo se tinha já trabalhado mais de cinquenta horas aquela semana, antes de entrar no carro à hora de almoço de sexta. O que tenho e temos que mudar? O que não estamos a ver? Para onde temos que nos virar?
No meio das montanhas, no norte da Catalunha, entendi que procurar ser uma organização leaderful é mais sobre combater estruturas de poder do que sobre empoderamento individual. Não é tanto uma questão de empurrar pessoas para liderar como é de retirar do caminho o máximo de atrito possível que as está a impedir de o fazer – e esse é um trabalho colectivo. Aprendi que a solidariedade é muito mais do que inclusão e que, para sermos uma organização realmente aliada de quem é alvo de um sistema de opressão, temos que confrontar com muito mais seriedade o nosso papel de agentes de replicação desse mesmo sistema. Percebi que, para ganharmos, temos que ser muito melhores a cuidar, sob o risco de ardermos sob o fogo da nossa casa antes de conseguirmos criar um movimento forte o suficiente para o apagar. Chorei a ouvir uma história sobre o sofrimento da vida não-humana por causa da crise climática. Ouvi algum do feedback mais construtivo que já me deram. Revi partes de mim que já não sabia que estavam cá, adormecidas pelo meu esquecimento. Apercebi-me que tenho muito por desaprender, para conseguir sequer aprender em novas direções. Compreendi que me tem faltado coragem para ser mais vulnerável. No fim de tudo, voltei com a sensação de que tenho agora mais perguntas e menos respostas do que tinha no início deste processo. Talvez seja a direção certa.
Volto desamparado sem saber bem o que fazer comigo e connosco – Climáximo e movimento pela justiça climática. Sei só que preciso de uma pausa para pensar, porque não estou a conseguir pensar a andar tão rápido. Temos tanto por descobrir e tão pouco tempo para trilhar os melhores caminhos que nos levem a onde queremos chegar. Sou (somos?) tão ignorante(s) em relação ao que fazer para ganhar.
Quero acreditar que ainda há tempo.
Estamos em voo picado e sem saber
voar
sem saber travar
a espernear, esbracejar, gritar,
e ainda
– sempre ainda –
sem saber voar.
Não sabemos o que nos fará voar
sair dali,
evitar a colisão.
Temos que aprender no exercício da queda
ainda e sempre
a queda
a esperança
o esforço
a tentativa
de não colapsar
sem antes termos tentado
sem antes conseguir.
Tentamos
ontem, hoje
(e sempre?)
uma e outra
e outra
e outra
e outra
vez.
No final de tudo
quando nos vamos
quando outres vêm
(quando foi em vão?)
nenhum legado me parece agora tão certo
e talvez até certeiro
como uma tentativa
tão contínua
tão falhada
tão próxima…
…de acertar
e aprender a voar,
voando.
Oxalá voamos a tempo.
Texto escrito em seguimento do curso Leaderful Organizing & Active Solidarity no Ulex, em Novembro de 2021.