Bravias de cabeça fria – Alice Gato

Faltam os verbos, advérbios e sujeitos para expressar o porquê de lutar. Arranjar uma frase para a qual possa sempre voltar nos momentos de incerteza e de desmotivação é difícil, mas mais difícil ainda é arranjar uma frase perfeita e na semana seguinte perceber que ela já não me serve, que tenho de a reinventar – verbo que até hoje sempre me serviu, mas que eu nem sempre servi -, que tenho de me reinventar, mantendo alguma coerência, ainda que não em demasia.

A coragem das filhas bravias é pouca, cheias de segurança no seu medo de falhar para a frente, para os lados, para trás, falhar. Não enganam ninguém, mas mesmo assim continuam a tentar não mostrar o medo que têm do medo. Correm que nem loucas para tentar chegar ao paraíso onde tudo está por criar, mesmo duvidando da sua capacidade de criação, será que creem mesmo que vão lá chegar?

Cansam-se a lutar sem parar, sem pensar, contra as amarras do poder vigente, dos elementos que perpetuam a hegemonia, não olham para trás, não olham para os elementos, só olham para o paraíso. Continuam a correr, algumas com mais forças do que outras, algumas com umas amarras mais opressoras do que outras. Quando a pressão passa, quando olham para os seus erros, quando percebem que se cansaram sem andar, que entre elas e o paraíso fica um mar de distância que ainda não sabem como navegar — porque se o mar já era perigoso, com chamas dentro de água e sabe-se lá mais o quê, os perigos são ainda mais imprevisíveis —, vão de boca ao chão porque não mediram a trajetória.

Têm tanto para aprender e o tempo para atravessar o mar é tão escasso. A minha vida não chega nem para metade desta livraria, mas às vezes preservar a livraria é ler menos. Às vezes é preciso mais tempo para apagar o fogo que ameaça queimar os livros. Mesmo assim, é preciso deixar algum tempo de parte para ler alguns livros que nos façam querer salvar a sua espécie, e conhecer senhoras que em cenários bucólicos e solitários nos ensinam que, quando a vontade e a compaixão é muita, é possível apagar o fogo com máquinas de sulfatar.

Preciso de desafiar os meus próprios padrões de pensamento machistas, racistas e reformistas, para criar mudança num coletivo que gere mudança no movimento, que crie a mudança necessária no mundo. Preciso de aprender a lidar com as amarras da ansiedade dirigida aos locais errados, deixar o medo do medo e ter coragem de ter medo da realidade.

Vamos sempre falhar, mas já não temos tempo para ter medo de falhar. Aprender a fazer escolhas, aprender a errar, aprender a aceitar o julgamento sem julgar, aprender os meus limites para dançar neles, aprender a ouvir, aprender a dizer que não, e aprender o que significa dizer que sim.

Na ULEX aprendi que a livraria é muito maior do que eu pensava, mas que por agora tenho de aprender a cair, a falhar, a levantar, reavaliar, mudar a forma de andar para frente — aos saltos, a correr, de gatas, a rebolar, a cantar, de barco — com o tempo e a compaixão necessária para pegar em máquinas de sulfatar, dar a mão a quem foi de boca ao chão, aprender com camaradas que sabem caminhar de formas que nunca pensei possíveis, ajudar e ser solidária para com futuras camaradas que hoje crêem (e cremos) que nunca o serão. Ao mesmo tempo, continuar a aprender como confrontar e dizer que não a quem nos ameaça.

Sejamos filhas bravias, mas sejamos filhas bravias de cabeça fria, coração quente e mãos abertas, para a compaixão e para o combate.


Texto escrito em seguimento do curso Leaderful Organizing & Active Solidarity no Ulex, em Novembro de 2021.

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