§1. Existe um conflito.
Umas centenas de pessoas, através de umas milhares de empresas que estas controlam, estão a matar centenas de milhões de pessoas. Queimando combustíveis fósseis (e não só), causam a destruição das casas, das infraestruturas e dos campos. Umas centenas de pessoas, que conseguem parar isto, continuam a ser cúmplices da mesma opressão. (Por acaso, existe uma interseção significativa entre o primeiro e o segundo blocos de tais centenas de pessoas.) Seja por ação seja por inação, uma minúscula minoria da sociedade está em constante ataque contra uma esmagadora maioria, só para manter o seu poder e/ou as suas vidas de ultra-luxo. Em poucos anos, a destruição climática vai ultrapassar limites planetários e vai resultar no colapso civilizacional. As emissões continuam a aumentar e não existe nenhum plano viável para travar este processo. Este conflito é factual.
Este conflito factual não existe como um conflito social.
Não existe, porque os dois lados não o percecionam como um conflito. Depois dum tufão sem precedentes, a comunicação social não noticia um massacre orquestrado pela indústria de combustíveis fósseis. Depois dum incêndio florestal que demora semanas até ser controlado, a população não se foca em responsabilizar os ultra-ricos por terem destruído ecossistemas. Depois de meses de cheias, não estamos a achar que as milhões de pessoas deslocadas foram alvo duma guerra de qual estão a fugir.
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§2. A crise climática é e não é um conflito social. É um conflito social, porque nós conhecemos, com uma clareza assustadora, os processos físicos e químicos alimentados pelos processos políticos. Não é um conflito social porque o opressor do conflito tem tudo a ganhar em mascará-lo como um “problema social ou até natural” ou como “um problema de todos”, e porque as vítimas do conflito aceitam essa narrativa apesar do seu sofrimento e apesar de saber que algo está extremamente mal.
Uma situação semelhante aconteceu com escravatura, racismo, colonialismo e patriarcado, e até certo ponto continua a acontecer. A exploração e a segregação simplesmente faziam parte da sociedade, até que os movimentos normalizaram vê-las como conflitos. Até esse ponto, os dois lados estavam integrados no conflitos.
A matança do porco conta com o porco estar integrado na festa. É uma integração negativa no sentido em que o papel do porco é antagónico ao do resto da aldeia, mas continua a ser integração. Esta integração pode ser implícita, hegemónica ou coerciva, mas em qualquer caso a matança do porco depende da colaboração do porco.
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§3. Quando alguém nos magoa sem querer, gritamos e a pessoa para. O nosso grito é um escalamento de conflito: um conflito invisível torna-se visível, escala para a superfície e assim torna-se tratável e/ou negociável.
Às vezes alguém nos magoa por querer. Gritamos e, assim, outras pessoas reparam. Com isso, a pessoa pode parar de magoar-nos por vergonha. Senão, as outras pessoas podem ajudar-nos a parar a violência. (Talvez muitas dessas pessoas estejam a ser magoadas pela mesma violência.)
É com esta intuição natural que as pessoas fazem publicações nas redes sociais sobre um problema, assinam petições, divulgam petições, participam em marchas, divulgam marchas, organizam marchas, participam em ações disruptivas, e começam a organizar ações disruptivas. Cada um destes atos causa um reajuste das prioridades públicas. Com mais injustiça e mais indignação por falta de resposta, é a nossa responsabilidade insistir que se pare a violência.
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§4. Quando dizemos que a crise climática escala, o que queremos dizer é que o conflito entre nós e quem manda em nós vai aumentar e o nosso sofrimento vai piorar e generalizar-se.
Quando dizemos que as mobilizações pela justiça climática devem escalar em resposta, o que queremos dizer é que vamos tornar o conflito real cada vez mais visível, cada vez mais incontornável e inegável, cada vez mais prioritário na agenda pública.
Alguns de nós acreditam que a resolução do conflito é viável dentro do sistema: se criarmos pressão suficiente, os opressores vão ceder. Outros acham que o sistema não é flexível o suficiente para resolver este conflito. Mas estamos de acordo: temos de escalar o conflito até a sociedade encontrar uma resolução, porque sem resolução o conflito real vai continuar a escalar.