Eles podem tudo para não deixar nada – Diogo Silva

Enquanto nos enchem as casas de água, as serras de fogo, e os pulsos de algemas, o caminho é claro: cada vez mais vale tudo para que nada mude rumo ao caos climático

Passei a noite de Natal com medo que a lama lá fora entrasse de rompante pelo quarto do meu pai adentro, enquanto ele dormia. A chuva caía ruidosamente lá fora, o terreno inclinado alagava, nós (seguros?) dentro de casa, e na minha cabeça as cheias do início do mês. A Proteção Civil bem tinha avisado para o risco de inundações e deslizamentos de terras.

No dia de Natal soube que nos Estados Unidos, uma vaga de frio ameaçava tornar-se na tempestade de frio do século, e soube — no dia em que vos escrevo — que já matou pelo menos 37 pessoas.

E na minha memória fresca ainda está gravado número de pelo menos 20.000 mortes nas vagas de calor do Verão passado na Europa Ocidental.

Não, não nos vamos habituar, caríssimo Primeiro Ministro. Não há adaptação possível ao colapso climático. Não me consigo habituar à ideia de que isto é inevitável e que não há alternativa senão sermos condenados quando não nos resignamos à realidade a que nos condenam.

Querem-nos a protestar direito, pelas leis, bem obedientezinhos, nada que incomode, que isto de protestar é acima de tudo uma questão de má educação.

Não vos ensinaram a ser mansos? Que mania esta de se levantarem, quando o rabo serve é para aquecer cadeiras: a cadeira da escola em que aprendemos tudo sobre a “Glória dos Descobrimentos” e nada sobre a podridão da escravatura; a cadeira do trabalho em que contribuímos como deve ser para a economia (grande futuro que isso nos trouxe); a cadeira do café onde — aí sim — se pode protestar (desde que se consuma) contra uma televisão, ou até contra o vizinho cigano — que esses é que são o problema.

Esses outros, não os de cima, mas os de baixo, aqueles que ainda podemos mandar para baixo de nós, porque isto da altura é relativo. Se não chego aos de cima, posso elevar-me espezinhando mais alguém ao lado.

A luta é entre nós, não é por nós, e enquanto assim nos mantiverem o vento continuará a calar a desgraça. Vivam com medo, habituem-se a ele, atarefem-se nele, e não lutem — que isso sim dá trabalho, não paga contas, e acima de tudo incomoda.

A crise climática pode vir do céu, da terra, da água e do fogo, mas não vem do nada. A crise climática é patrocinada pela Galp, a EDP, a REN, o PS, o PSD, e tantas outras multinacionais que é preciso manter a dar gás ao lucro, a reboque e rebocando a inflação que nos esvazia a os bolsos da vida.

Até dá para fingir que os punimos, com um imposto aqui ou ali, nada que belisque mas tudo que pareça bem, que eles até lideram tabelas de sustentabilidade corporate.

Para a frente é que é o caminho! Por cima de nós, em cima de nós, connosco bem por baixo, a puxar para a frente.

Quando propomos demissões ou caminhos desfossilizados até 2030 (uma vida digna, esse luxo!), não há propostas. Alguém viu propostas? Ninguém viu propostas. Eles protestam com tudo e não propõem nada.

Esconda-se bem isso dos Empregos para o Clima ou da neutralidade carbónica até 2030. Não há alternativa à crise. Qual crise? Está tudo a ser tratado, por nós, com os nossos votos (ou melhor, dos cerca de 25% da população que votou PS).

A nossa voz conta mais do que nos querem fazer parecer. Se nos juntarmos, se lutarmos por uma vida estável e digna, com quem mais gostamos, uma vida em que não haja uma cada vez maior minoria de ricos produzidos à custa de uma cada vez maior maioria de pobres, se nos levantarmos do chão… ainda vamos a tempo.

Em 2023, desejo que venham, connosco, para a rua gritar. Neste Reveillon, brindamos a nós?


Artigo originalmente publicado no Expresso a dia 29 de Dezembro de 2022.

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